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domingo, 31 de dezembro de 2017

A onda de suicídios na Polícia Federal

Por Antonio Carlos Lua

Sonho de ascensão profissional de muitos jovens e referência nacional no combate à corrupção e ao crime organizado e elite de uma categoria cada vez mais imprescindível para a sociedade, a Polícia Federal possui um lado sombrio. 

Nos últimos 11 anos foram registrados 51 casos de suicídio entre policiais federais. Somente nos últimos três anos, 20 membros da corporação usaram a arma de trabalho para tirar a própria vida.

Esses dados, porém, estão subestimados, uma vez que casos de suicídios ocorrem também em operações quando os agentes 'buscam a bala' do inimigo. Na estatística, o registro de ocorrência indica ‘morte em ação’, mas se sabe que ali existiu um impulso suicida. 

A Polícia Federal é o serviço público onde mais ocorrem suicídios.O cenário de pressão excessiva e ambiente de trabalho sem boas perspectivas de melhoria na atividade profissional é a principal causa dos suicídios na PF, que mesmo exigindo nível superior, não reestruturou a carreira, diante de atribuições complexas.

Pesquisa da Universidade de Brasília (UnB) mostra que por trás do colete preto, do distintivo, dos óculos escuros e da mística que transformou a PF no ícone de polícia de elite existe um quatro grave e preocupante.

Depressão e síndrome do pânico são doenças que atingem um em cada cinco dos 11.817 agentes da Polícia Federal, que se submetem a um regime de trabalho militarizado, sem que tenham treinamento militar para isso.

Relatos de entidades sindicais representativas da categoria atribuem os suicídios a assédios morais e pressões constantes por produtividade por parte de superiores hierárquicos. 

Essas ocorrências – aliadas a fatores genéticos, à formação de agentes, à falta de perspectivas profissionais – são tratadas por especialistas como desencadeadoras dos distúrbios mentais, geralmente invisíveis na estrutura da Polícia Federal.

Uma das causas seria também a forma como a estrutura da PF está montada, causando sofrimento patológico em agentes, havendo dificuldades para enfrentar a organização hierárquica do trabalho, além de sentimentos de desgaste, inutilidade e falta de reconhecimento.

Ainda que seja errado apontar para responsabilidades individuais, a tragédia na Polícia Federal chegou a um nível muito grande, o que cobra uma resposta de cada parcela do Estado brasileiro que convive com esse drama.


Fruto de uma especial combinação de fatores negativos – internos e externos – o suicídio nunca foi uma tragédia de fácil explicação para a área médica nem para estudiosos da vida social.

O sociólogo, antropólogo, cientista político, psicólogo social e filósofo francês, Émile Durkheim (1858-1917) demonstrou que o suicídio é a expressão mais grave de fracasso de uma comunidade e que raramente pode ser explicado por uma razão única. 

domingo, 24 de dezembro de 2017

O tendão de Aquiles do Direito Digital


Por Antonio Carlos Lua

A privacidade e a proteção de dados na Internet – que quando violados podem gerar responsabilidade civil e criminal para os autores – é hoje o tendão de Aquiles do Direito Digital, com os novos desafios que colocam em cheque o tradicionalismo do Direito frente aos avanços galopantes da tecnologia.

Como não existem fronteiras com relação aos assuntos relacionados ao Direito Digital, é necessário aprofundar a discussão sobre privacidade e Internet com foco no cenário atual da sociedade tecnológica.

O ponto central da questão é como viabilizar a operacionalização de um Direito eficaz no tempo e na garantia da privacidade sem limitar o avanço da tecnologia digital.

O cenário aponta que os operadores do Direito contemporâneos têm nas mãos um infinito de oportunidades advindas da tecnologia, mas também um infinito de desafios a serem enfrentados no presente e no futuro, diante da necessidade premente de conscientização dos riscos e oportunidades da vida digital.

E por isso que nos Estados Unidos e na Europa a educação digital já faz parte do currículo de aprendizado básico, com uma autoridade reguladora. Esse é o caminho que precisa ser traçado no Brasil, para que não fiquemos a reboque no bom aproveitamento das tecnologias.

O mundo virtual está tão umbilicalmente presente em nossas vidas que já não conseguimos nos imaginar sem ele. Somos dependentes dele e nele temos que saber nos conduzir com segurança.

Como a maioria da população não percebe as implicações que o simples ato de estar conectado à Internet pode representar, é recomendável que os internautas tenham consciência de que seus atos podem gerar consequências.

Além das leis já existentes no nosso ordenamento jurídico, muitas normas foram aprovadas nos últimos anos com o intuito de modernizar e adaptar a nossa legislação ao mundo digital.

Para dar diretriz aos diversos assuntos relacionados à Rede Mundial de Computadores, foi aprovada, em abril de 2014 – a Lei do Marco Civil da Internet (Lei 12.965/14) –, que estabeleceu princípios, garantias, direitos e deveres para o uso da Internet, representando, em diversos pontos, um avanço ao ordenamento jurídico.

A regra que rege o mundo virtual é o da liberdade de expressão. No entanto, o direito à privacidade também deve ser respeitado por não existir no ordenamento jurídico um princípio superior ao outro. 

Havendo conflito entre eles, a questão deverá ser resolvida levando-se em conta o princípio da dignidade da pessoa humana e o da proporcionalidade.

Como na Internet as informações se multiplicam rapidamente, a observância ao direito à privacidade deverá ser maior. Assim, se um internauta se sentir lesado, poderá responsabilizar juridicamente o seu ofensor e ser indenizado por isso.

Infelizmente, o relato de práticas de ilícitos cometidos pela Internet tem se tornado comum. Isso ocorre porque muitos internautas acreditam que não serão punidos. 

Acham que por não estarem frente a frente fisicamente com a sua vítima, não poderão ser identificados. Esse fato, porém, é equivocado, visto que a maioria dos internautas podem hoje ser facilmente identificados e punidos com base na legislação existente.

Na esfera criminal, temos a Lei 12.737/2012, que ficou nacionalmente conhecida como “Lei Carolina Dieckmann”, que tipificou alguns crimes informáticos, como a invasão de dispositivos eletrônicos.

O Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 8.069/1990) também contribuiu positivamente ao aprimorar, em seu artigo 241-A (Lei 11.829/2008), o crime de pedofilia infantil pela internet.

Verifica-se, portanto, que a Internet não é um território sem leis. Porém, resta um questionamento: será que as leis brasileiras conseguirão acompanhar a rapidez com que a Internet se revela de forma a garantir a sua eficácia na aplicação do caso concreto?

O recente caso envolvendo o Whatsapp que, por ter descumprido uma determinação judicial teve os seus serviços bloqueados por 48 horas, demonstra o quão sensível e delicado é o cenário digital atual.

domingo, 17 de dezembro de 2017

Os ‘ciborgues’ nas eleições


Por Antonio Carlos Lua

Um exército virtual de perfis falsos com fotos roubadas, nomes e cotidianos inventados poderão influenciar ativamente o debate político durante o processo eleitoral de 2018 com o chamado 'comportamento de manada', que permite a manipulação da opinião pública pelos chamados ‘ciborgues’.

‘Os ‘ciborgues’ representam uma evolução tecnológica dos robôs, sendo uma mistura entre pessoas reais e ‘máquinas’, dotados de partes orgânicas e cibernéticas, com rastros de atividades mais difíceis de serem detectados no universo virtual devido ao comportamento mais parecido com o de seres humanos.

Estudos da British Broadcasting Corporation (BBC) e do Oxford Internet Institute, da Universidade de Oxford, da Inglaterra, apontam que a estratégia de manipulação dos ‘ciborgues’ junto à opinião pública nas redes sociais é similar à usada pelos russos nas eleições americanas para favorecer Donald Trump.

Essa mesma estratégia foi usada também nas eleições gerais de 2014, no Brasil, embora não se saiba, com precisão, se chegou, de fato, a ter algum efeito decisivo no pleito. O que se sabe é que a prática vai ser bastante explorada nas eleições de 2018 que, ao que tudo indica, serão muito polarizadas.

Os ‘ciborgues’ geram cortinas de fumaça nas redes sociais, orientando discussões para determinados temas conjunturais, atacando adversários políticos e criando rumores, com clima de 'já ganhou' ou 'já perdeu'.

Eles exploram o "comportamento de manada", coordenando campanhas de ódio e desinformação tanto no Brasil como em vários países do mundo. O robô faz a parte automática e uma pessoa real cria ‘tweets’ (publicações feitas na rede social do Twitter), para confundir os algoritmos. É um jeito de se esconder uma conta, e ao mesmo tempo criar uma outra muito mais inteligente.

O Facebook prometeu sistemas de checagem de fatos e o Twitter continua perseguindo contas falsas, mas deter a manipulação dos algoritmos parece um objetivo distante. É uma disputa de gato e rato. As pessoas criam técnicas para manipular os algoritmos e os programadores criam novos algoritmos num ciclo infinito.

Se a interferência de contas falsas em discussões políticas nas redes sociais já representava um perigo para os sistemas democráticos, sua sofisticação e maior semelhança com pessoas reais têm agravado o problema pelo mundo.

O uso dos ‘ciborgues’ revela um desafio para uma futura legislação. A dificuldade de identificar e rastrear o uso de robôs nas redes sociais torna quase impossível a proibição e a punição.

Os ‘ciborgues’ evoluem muito rapidamente. Está cada vez mais difícil e complexo diferenciar conteúdo produzido por uma pessoa real ou uma máquina. Os robôs mais modernos funcionam automaticamente. Os menos evoluídos agem sempre sob o comando de alguém.

Sendo assim, as eleições não podem ser mais reguladas só no aspecto físico das campanhas, sem considerar o mundo virtual, uma vez que o mau uso das redes sociais pode distorcer a democracia e os resultados de uma eleição.

Para alcançar seus objetivos, os ‘ciborgues’ garantem uma quantidade de posts superior ao do público que geralmente apresenta contraposições políticas aos argumentos trazidos nas notícias falsas.

Para isso, estimulam pessoas reais e militâncias políticas a encamparem suas opiniões, criando uma noção de maioria, se constituindo, assim, um perigo para a democracia, que só funciona bem quando há informação correta circulando nas redes sociais.

Há evidências relevantes de que os ‘ciborgues’ são usados em eventos políticos como eleições para silenciar oponentes e impulsionar mensagens em plataformas como Twitter e Facebook.

Perfis falsos criam "reputação" e parecem ser legítimos adicionando pessoas aleatórias com o objetivo de colecionar amigos reais. Ao confundir e envenenar o debate político on-line, os robôs ameaçam a democracia e fortalecem a mão de Estados autoritários.

Pessoas reais chegam a dar parabéns aos ‘ciborgues’ em aniversários e fazem comentários elogiosos a fotos de perfil, ajudando a criar a sensação de que são verdadeiros. É desta forma que, inadvertidamente, usuários reais contribuem para a criação de "reputação".

Os perfis falsos interagem entre si. Quando um ‘ciborgue’ é "desmascarado" por algum usuário das redes sociais ou desativado pelas plataformas tecnológicas, logo surge outro para substituí-lo, vindo de um grande banco de perfis falsos mais sofisticado.

Os perfis falsos representam uma crescente preocupação no mundo ao lado das ‘Fake News’ (notícias falsas), facilmente compartilhadas nas redes sociais. Nos Estados Unidos, os resultados das análises quantitativas confirmam que os ‘ciborgues’ alcançaram posições de influência mensurável durante a eleição presidencial, em 2016, no ferrenho embate entre Hillary Clinton e Donald Trump.

Tanto na campanha derrotada de Hillary Clinton como na de Donald Trump, foram usadas contas automáticas no Twitter, mas a rede democrata tinha apenas um quinto da atividade da republicana. Na Rússia, cerca de 45% da atividade no Twitter é controlada por contas automáticas controladas por campanhas de desinformação.

Especialistas alertam que deve haver maior transparência e regulação nas plataformas como o Facebook, que deve começar a agir como se fosse um Estado, já que virou a nova esfera pública onde acontecem discussões e interações entre as pessoas.

Ou seja, a plataforma deve começar a se autorregular, se não quiser ser regulada pelos Estados, um cenário também não livre de polêmicas, tendo em vista a ameaça à liberdade de expressão.

domingo, 3 de dezembro de 2017

Uma questão de justiça

Por Antonio Carlos Lua

A falta de sensibilidade dos grandes empresários de comunicação que, com uma visão obscurantista do Jornalismo, apostaram nas políticas desregulamentadoras neoliberais, gera hoje efeitos perversos nas já vilipendiadas prerrogativas dos jornalistas profissionais.

A evolução das mídias exige jornalistas qualificados e a desregulamentação da profissão beneficia apenas aqueles que buscam a fama da bazófia e querem fazer do Jornalismo uma atividade inútil e sem relevância, engessando a informação. De lead por lead, o Jornalismo não vai a lugar nenhum e castiga os leitores e a sociedade.

A crise e o declínio de grandes jornais com tradição na imprensa são reflexos do Jornalismo hipertélico. Com mais produtores do que consumidores, ele ultrapassa os seus próprios fins, perde a capacidade de autocrítica e reduz o Jornalismo a uma encenação de pluralismos.

Restabelecer a ordem jurídica na profissão e exigir formação acadêmica para o desenvolvimento de uma atividade profissional importante como o Jornalismo é uma questão de justiça e não significa cercear a liberdade de expressão de alguém, como alegam os proprietários de grandes complexos de comunicação no Brasil.

É razoável exigir que exerçam o Jornalismo apenas profissionais graduados, preparados para os desafios de uma atividade tão sensível e fundamental, que repercute diretamente na vida do cidadão. Sem isso, a sociedade deixa de contar com uma salvaguarda mínima.

Jornalistas profissionais têm uma visão particular da função que exercem, tendo uma deontologia própria para circunscrever os limites de sua atuação no campo social do trabalho.

Não é uma questão só de talento. É uma questão de rigor, de critérios, de vontade, de vocação, habilidade de escrita, agilidade no raciocínio, formação crítica e disciplinamento ético. Desenvolver uma atividade complexa e dinâmica como o Jornalismo depende muito da formação técnica de quem a exerce.

O mundo muda constantemente, as sociedades tornam-se mais complexas, o trabalho passa a ser dividido cada vez mais e certos conhecimentos se desenvolveram de tal forma que se constituem hoje terrenos próprios do saber.

Portanto, escrever um texto jornalístico é atividade exclusiva do jornalista. Da mesma forma, fazer petições, preparar uma defesa ou representar um cliente nas barras de um tribunal são funções de um advogado.

Assim como outras profissões, o Jornalismo tem o seu valor social e é fundamental para a construção da cidadania, até porque a sociedade se sente representada e assistida pelos jornalistas, que denunciam os males presentes na vida política do país, revelando as práticas daqueles que ainda alimentam hábitos enraizados na inversão dos meios e do fim da coisa pública.

Sem profissionais que cumpram a sua relevante função social de produzir cultura respeitando normas, valores e princípios focados nos interesses da sociedade, o Jornalismo tende a retroceder.

Jornalismo de verdade se faz optando pela informação de qualidade e assumindo efetivamente a agenda do cidadão, separando a notícia do lixo declaratório. O centro do debate tem que ser sempre o cidadão, permitindo à sociedade uma análise dos eventuais descompassos nas questões sociais, políticas, econômicas e culturais.

Jornalismo de registro, pobre e simplificador não interessa à população, pois ele oculta a verdadeira dimensão dos fatos e beneficia os “plantadores de notícias” que agem em defesa de interesses escusos.

Como agentes de comunicação, os jornalistas têm responsabilidades profissionais maiores e, para exercer a profissão, prescindem de formação congruente com o papel que assumem no mundo do trabalho.

O Jornalismo exige uma entrega total, passando sempre pelo manejo criativo e respeitoso da língua. A língua, por sinal, é o registro do mundo do jornalista e o seu elo com os leitores e a sociedade. Quem não vive a palpitação sobrenatural da notícia não pode ser jornalista.

domingo, 26 de novembro de 2017

Inverdades sobre a Previdência

Por Antonio Carlos Lua

Seguindo a ideologia política da escola neoliberal brasileira, o Governo Federal tenta impor aos brasileiros o "estado mínimo", forjando o chamado "Rombo da Previdência”, com a lógica de que sem a aprovação de uma reforma no sistema de seguridade social, não haverá dinheiro para pagar a aposentadoria, colocando o trabalhador como o burro da “Fábula de La Fontaine”, sendo ele sempre o culpado de tudo.

Propagandear contra a Previdência Social e desacreditá-la com o passionalismo de uma ofensiva publicitária que raia pela chantagem, vem sendo o mais significativo dos feitos maléficos do atual Governo, que aponta um “rombo” de cerca de R$ 258,7 bilhões, no sistema previdenciário.

O Governo Federal tenta empurrar a reforma sem considerar os números e sem explicar que as dívidas previdenciárias de governos estaduais e municipais, empresas e fundações alcançaram, no ano passado, R$ 426 bilhões, e que o desvio de recursos públicos para promover a farra das isenções fiscais concedidas a empresas retiraram da seguridade social recursos na ordem R$ 230 bilhões.

O fato de termos 20% das contribuições desviadas para o Orçamento Fiscal e o pagamento da dívida com juros altos, em proporções insuportáveis, afetaram também a Previdência Social. É inacreditável que gastemos o equivalente a 100% do Orçamento com juros e apenas 30% com Seguridade Social.

Mesmo com a contestação de conceituados especialistas e da própria Associação Nacional dos Auditores Fiscais da Receita Federal do Brasil (Anfip), o Governo insiste em apresentar a reforma como panaceia para o déficit fiscal, ignorando as pessoas por trás dos números e seus direitos de aposentados, pensionistas e beneficiários.

O Brasil tem um problema crônico de desvio de recursos destinados ao financiamento da Previdência, que sempre foi o “Caixa 2” dos sucessivos Governos, desde Juscelino Kubitschek (1956/1961), que direcionou verbas da instituição para Brasília prometendo devolvê-las, mas morreu sem cumprir a promessa.

Um rio de dinheiro, cuja cor os segurados nunca viram e jamais verão, e cujo montante é hoje impossível avaliar, sobejaram e foram desviados para a implantação de megausinas hidrelétricas, passando pela abertura de estradas como aquela onde os caminhões hoje atolam aos milhares.

O sistema previdenciário brasileiro está sustentado em pilares tanto econômicos quanto sociais, de forma que qualquer pretensão de mudança deve seguir planejamento equilibrado, com transição gradativa, considerando os seus limites e respeitando o núcleo central da proteção social.

Previdência não é imposto, mas contribuição para beneficiar o trabalhador, sendo o Governo Federal seu fiel depositário. Em qualquer circunstância, quando um fiel depositário foge à sua responsabilidade ele é obrigado, pela lei, a repor o desviado.

domingo, 19 de novembro de 2017

Robotização do jornalismo

Por Antonio Carlos Lua

Com os pés no presente e os olhos voltados para o futuro, grandes veículos de comunicação dos Estados Unidos e da Europa – entre eles os jornais norte-americanos The New York Times, The Washington Post e a agência de notícias britânica Press Association – já utilizam sistemas tecnológicos de inteligência artificial na produção jornalística.

A suposta substituição de jornalistas por robôs em veículos de comunicação é um tema delicado e muito polêmico. De acordo com cientistas da Oxford University, do Reino Unido, o sistema de inteligência artificial já ameaça 35% dos atuais empregos de jornalistas, sendo esta a questão mais visível trazida por essa nova tendência tecnológica que constitui hoje o maior dilema existencial para o futuro dos jornalistas.

Investimentos milionários do Google para integrar tecnologias de inteligência artificial na produção de notícias seguem a todo vapor. Além do robô-jornalista (Reporters and Data and Robots - Radar), que produz 30 mil notícias por mês, o gigante da Internet desenvolveu também um programa que sistematiza trabalhos relacionados aos principais desafios do jornalismo de dados e do jornalismo imersivo.

A previsão de especialistas em tecnologia digital da Karlstad Universitet, da Suécia, é de que até 2025, 90% das notícias produzidas com o uso de inteligência artificial trarão conteúdo narrativo automatizado. As matérias não se resumirão apenas ao lançamento de dados. Elas oferecerão também análises econômicas, políticas, sociais, culturais. Metade da interação entre os indivíduos e os computadores será feita através de voz.

Há, porém, uma certa dose de exagero no anunciado aniquilamento dos jornalistas pelos robôs, com a total destruição do campo de trabalho dos profissionais de imprensa. É importante enfatizar que a evolução do jornalismo não se limita a robótica. Jornalista é um ser pensante e seus textos são frutos de vivências, pesquisas, imersões políticas e muito faro, qualidades e características que certamente um robô não pode oferecer.

É claro que com a inteligência artificial o mundo da informação passa a ter fronteiras menos rígidas, mas, no entanto, será mais seletivo, oferecendo a quem o habita a oportunidade de se reinventar, abandonando esquemas obsoletos, o que é comum numa profissão que nunca foi estanque, imutável e que passa sempre por uma constante metamorfose, tendo como matéria-prima a realidade social, infinita em fatos e em constantes mutações.

Embora o processo de automação no jornalismo seja absolutamente irreversível, a inteligência artificial não é um elixir mágico para todas as situações na produção jornalística.  As competências humanas dos jornalistas continuarão sendo vitais no processamento da notícia.

O que a inteligência artificial vai viabilizar, na prática, é o aumento do volume de notícias escritas a um patamar que seria impossível de ser alcançado manualmente apenas com uma redação formada por trabalhadores humanos.

segunda-feira, 13 de novembro de 2017

Cenário de crise

Antonio Carlos Lua

A advocaciacarreira famosa e atraente pela possibilidade de altos ganhos – também vive seus momentos de crise, ameaçando a sobrevivência de muitos profissionais da área em todo o país.

A crise não atinge somente os pequenos escritórios. Ela alcança também as bancas tradicionais, médias e grandes que, pelo volume e qualidade de seus clientes, demoram a perceber que algumas causas jurídicas pagam por outras. Ou ainda – o que é pior – serviços consultivos pagam por serviços do contencioso.

Renomados escritórios já diminuem suas dimensões, fundem-se com outros, como imperiosa necessidade de sobrevivência. Atentos para os problemas que já se esboçam, já começam a surgir tentativas para controlar melhor gastos, despesas e reembolsos.

As razões dessas dificuldades que muitos advogados e escritórios vêm sofrendo nos últimos anos podem ter relação com o constante aumento de preços que se elevaram estratosfericamente na última década, impactando significativamente nas despesas.

Nesse aspecto, tem que ser levado em consideração a renovação de equipamentos do escritório, as despesas com o imóvel e o tempo empenhado em orientações e informações prestadas ao cliente, além do ônus financeiro pelo adiantamento de custas processuais.

Tem que ser levado em consideração também que todas as despesas e serviços disponibilizados para acompanhar os processos em andamento são pagas pelos honorários, que ainda devem pagar, lá no final, depois de tudo, o trabalho intelectual do advogado, a sua remuneração, o seu “salário”.

Dessa forma, para fazer frente às necessidades financeiras mensais, é preciso contratar novas causas jurídicas para poder receber novos honorários. Essas outras causas serão diligentemente acompanhadas até o final, quando há muito tempo não acontecem mais recebimentos de honorários advindos delas, num ciclo que se renova, somente quando as primeiras causas terminam.

O tempo para o encerramento do processo acaba por gerar um aumento exponencial de trabalho sem o correspondente aumento de receita.

As causas jurídicas exigem um trabalho contínuo, de custo assustador e muito variável. As características da ação, do cliente geram fatores que deságuam sempre em custos significativos.

Diante dessa realidade, os advogados enfrentam situações em que os honorários recebidos ao final do processo não cobrem sequer as despesas de acompanhamento. Ou seja, muitas vezes o profissional de advocacia, literalmente, paga para trabalhar.

Com este quadro alarmante, especialistas indicam mecanismos que podem ajudar na busca de soluções. Um deles é implantar, dentro dos escritórios, uma nova filosofia de remuneração que inclua todas as despesas.

Os honorários devem ficar destinados exclusivamente ao trabalho intelectual do advogado, enquanto as despesas de acompanhamento devem passar a ter dotação própria, como todas as demais despesas reembolsáveis.

A medida pode trazer um resultado positivo. A implantação do sistema pode significar a diferença entre a sobrevivência, crescimento, sucesso ou a morte do escritório.

A aplicação desta nova estratégia vai mostrar que a transparência nos gastos e despesas com o processo, em conjunto com a adoção de outras ações complementares, pode melhorar a relação de confiança entre cliente e advogado, além de refletir profundo profissionalismo e seriedade, o que significa enorme vantagem competitiva.

sábado, 4 de novembro de 2017

Tragédia silenciosa


Por Antonio Carlos Lua

Em silêncio, traficantes de órgãos humanos seguem enganando, viciando, extorquindo, transportando, recrutando e coagindo pessoas para realização de transplantes ilegais no Brasil, sem que nada seja feito efetivamente para evitar que, em pleno Século XXI, o homem se comporte como um manipulador tecnicista, vendendo o próprio homem ou pedaços dele, como se fosse mercadoria.

Dados da Organização Mundial da Saúde (OMS) apontam que o Brasil inclui-se entre os países integrantes da zona cinzenta do mercado do tráfico de órgãos humanos e transplantes ilegais.

Os criminosos intermediam todas as preliminares que antecedem os procedimentos para recrutar e controlar o potencial dos doadores que são coagidos a venderem um rim, uma córnea, pedaços do fígado, do intestino e outras partes do corpo que o homem pode dispor sem morrer, embora com mutilações graves e dramáticas.

Difícil de ser rastreado e caracterizado pela sua subjetividade, o comércio ilegal de órgãos humanos no mercado negro cresce exponencialmente, atingindo a dignidade de pessoas vulneráveis.

O crime merece um combate sem tréguas pelas autoridades brasileiras, que devem tomar cuidado para que casos relacionados a mafiosos não comprometam o programa nacional de transplante de órgãos que vem salvando e dando um sopro de vida a centenas de pessoas.

No mercado de tráfico de órgãos humanos, homens, mulheres, crianças adolescentes são vendidos vivos ou em partes desde o primeiro minuto em que são considerados potenciais doadores de órgãos. 

Vivendo em situação de extrema pobreza, muitas pessoas vendem um rim para comprar um fogão, um colchão e, às vezes, até alimentos para a família.

Geralmente, a primeira pessoa da família a vender um órgão é o pai, depois a mãe e posteriormente o filho mais velho. Muitos são assassinadas para a remoção e posterior comércio dos seus órgãos, em uma barbárie que expressa a coisificação do corpo humano. 

As consequências psíquicas são irreversíveis para aqueles que sobrevivem. É uma mistura de culpa com estigma social, medo, vergonha espiritual, morte psicológica.

Há décadas a Organização Mundial de Saúde vem alertando o Brasil sobre a atuação de traficantes internacionais de órgãos humanos no país.

Uma Comissão Parlamentar de Inquérito da Câmara Federal constatou, em 2004, inúmeros casos de transplantes ilegais, entre eles o do menino Paulo Veronesi Pavesi, considerado o marco zero das investigações da CPI.

O caso aconteceu em Poção de Caldas (MG) quando médicos comunicaram aos pais a morte encefálica de Paulo Veronesi Pavesi e a família consentiu a doação dos órgãos. 

Após uma investigação para apurar valores cobrados indevidamente pelo hospital, o pai do menino foi comunicado que seu filho foi assassinado pelos médicos e que, desde o momento que deu entrada para o tratamento, foi visto como um doador em potencial.

O ato criminoso envolvendo Paulo Veronesi Pavesi foi apenas um entre muitos da tragédia silenciosa registrada no País, a exemplo das crianças evisceradas em Pernambuco, Estado em que o Israelense Gedalya Tauber recrutava pessoas para a retirada dos órgãos e as levava para o sul da África, onde pacientes Israelenses já esperavam para o transplante. 

Outro caso que ganhou repercussão ocorreu em Taubaté, no Estado de São Paulo, quando foram presos e processados os médicos cirurgiões Rui Sacramento, Mariano Fiore Jr. e Pedro Torrecillas, por envolvimento em transplantes ilegais.

O tráfico de órgãos humanos caminha sobre rodas no Brasil, deixando rastros de dor nos familiares de pessoas levadas cruelmente à morte. 

A falta de investimentos em estrutura hospitalar, ausência de logística, filas gigantescas, longa espera por um transplante e a supervalorização de órgãos têm chamado a atenção de criminosos internacionais. 

Não é à toa que 5% dos órgãos humanos utilizados em transplantes no mundo provêm do mercado negro, com o Brasil fazendo parte dessa estatística.

Relatório da Organização das Nações Unidas, com o tópico “Turismo do Transplante”, aponta a existência de muito hospitais em que podem ser encontradas pessoas vindas de outros países aguardando órgãos humanos, frutos do tráfico. A maior parte dos órgãos vendidos por doadores no mercado negro é constituída de rins.

Quem decide se submeter a um transplante ilegal corre duplo risco. Antes de tudo pela condições sanitárias nas quais quase sempre são efetuadas essas intervenções e pelas escassas garantias sobre o estado de saúde dos órgãos transplantados, que podem ser veículo de infecções e de várias doenças, tais como o HIV e a hepatite.

Desaparecimentos ou homicídios de crianças e jovens estão muitas vezes ligados ao tráfico de órgãos humanos, tendo em vista a comprovação da existência de organizações internacionais recrutando pessoas em vários Estados brasileiros, num esquema criminoso que infelizmente permanece fora do radar dos serviços de inteligência brasileiros.

A doação de órgãos no Brasil é normatizada pela Lei dos Transplantes 9434/97 que – respaldada no artigo 199, parágrafo 4, da Constituição Federal – tem 25 artigos norteando os assuntos tanto para doação Inter vivo e como para post-mortem.

domingo, 29 de outubro de 2017

Fake News: Máquina de manipular multidões


Por Antonio Carlos Lua

Doze milhões de pessoas difundem hoje, no Brasil, notícias falsas com conteúdo deliberadamente produzido para ferir reputações, atacar instituições, criar convicções equivocadas e levar pessoas a tomarem decisões baseados em inverdades, soterrando versões confiáveis e fidedignas do jornalismo.

São as chamadas 'fake news', que transformaram os meios digitais de comunicação em um campo minado, diante da ausência de mecanismos eficazes para contenção de material ardiloso que desvirtua deploravelmente o caráter dialético do jornalismo, cuja razão de ser é a descoberta de importantes verdades.

Revestidas de artifícios que lhe conferem aparência de verdade, as 'fake news' mostram o lado caliginoso do ser humano e chegam à enésima potência no Brasil, com práticas torpes de viés explicitamente suspeito. Elas sugam os recursos jornalísticos para se legitimarem como verdade diante de pessoas que – acreditando estar em contato com uma informação verídica –  são usadas como elo para compor uma corrente difusora de notícias falsas.

As 'fake news' surgiram com o advento das redes sociais, um espaço onde qualquer usuário pode ocupar a posição de produtor de informação e alcançar um público imensurável. Assim, posts em blogs, no Facebook, twitter, vídeos no YouTube e inserções em outras mídias e formatos digitais dão suporte a notícias, opiniões e comentários de pessoas comuns, pulverizando o que antes era exclusividade dos jornalistas.

Nesse jogo, há interesses econômicos – como a monetização de cliques – e políticos – como a destruição de reputações. Uma pesquisa da Universidade de São Paulo (USP) identificou vários sites brasileiros especializados em notícias falsas no mundo da política. Eles atendem às audiências da direita e da esquerda, mostrando que a ingenuidade do público acontece dos dois lados do espectro ideológico.

Esses sites fazem de tudo para justificar uma mentira, conceito que ficou conhecido como “pós-verdade”. A novidade associada a esse neologismo consiste na popularização das crenças falsas e na facilidade para fazer com que os boatos prosperem.

A disseminação de notícias falsas gera implicações gravíssimas no campo jurídico. No aspecto penal, caso a divulgação da notícia falsa seja praticada com ciência do embuste e intenção de ofender alguém, poderá configurar crime contra a honra – calúnia, injúria ou difamação –, conforme previsão do Código Penal.

A disseminação de informação capaz de gerar pânico ou desassossego público, por sua vez, é tipificada pelo artigo 30 do Decreto-Lei 4.766/42. Provocar alarme, anunciar desastre, perigo inexistente, ou praticar qualquer ato que produza pânico são condutas classificáveis como contravenção penal, nos termos do artigo 41 da Lei de Contravenções Penais.

Entretanto, se as implicações penais atingem apenas os que, dolosamente, espalham falsidades pelos meios de comunicação, os efeitos civis podem ser mais abrangentes, alcançando também aqueles que, de forma imprudente, compartilham informações inverídicas.

De acordo com o Código Civil, qualquer pessoa que causar prejuízos – materiais ou morais – a outro, ainda que por negligência ou imprudência, comete ato ilícito, passível de responsabilização, implicando em pagamento de indenização, multa em caso descumprimento, retratação, entre outras penalidades.

Ou seja, mesmo que a pessoa não tenha a intenção de causar danos, se não agir com razoável diligência para confirmar as informações que compartilha –em especial aquelas que atribuem fatos ou falas a terceiros – poderá ser chamada a responder por eventuais danos causados.

domingo, 22 de outubro de 2017

Indústria de bacharéis


Por Antonio Carlos Lua

O Brasil continua negligenciando na questão da educação superior, em especial no ensino jurídico, cuja proliferação desenfreada de faculdades de Direito vem trazendo efeitos maléficos na formação profissional de bacharéis, deixando a sociedade apreensiva quanto à atuação dos futuros operadores do Direito.

O alto índice de reprovação de bacharéis em Direito no Exame de Ordem aplicado pela OAB (Ordem dos Advogados do Brasil) é o diagnóstico da grave crise no ensino jurídico brasileiro, mostrando que as políticas adotadas pelo Ministério da Educação (MEC) são equivocadas.

Novas diretrizes precisam ser elaboradas para garantir a qualidade do ensino de Direito no Brasil, onde até mesmo as faculdades consideradas modelo estão com dificuldades em adaptar grades curriculares para acompanhar as novas exigências de um mercado jurídico dinâmico e exigente.

Nos últimos anos, as faculdades de Direito se multiplicaram no país. É assustador o número de acadêmicos em cursos de comprovada má qualidade que não incentivam a formação humanista e geral dos bacharéis e tampouco qualificam estes para o ingresso no mercado de trabalho.

São mais de 1.300 cursos funcionando como linha de produção em escala elevada pelo país inteiro, sem nenhum comprometimento com as mudanças sociais e a concretização da Justiça.  Os compromissos são meramente mercadológicos e desvirtuam a função da universidade no ensino de Direito.

Nenhum país no mundo possui tantos cursos de Direito quanto o Brasil. Temos mais faculdades de Direito do que todos os outros países juntos. No resto do planeta a soma chega a 1.100 cursos de Direito. Nos Estados Unidos, com uma população de 323, 1 milhões de habitantes, são 232 faculdades de Direito.

Temos hoje mais de quatro milhões de pessoas formadas em Direito, mas apenas 800 mil conseguiram aprovação no exame da OAB, que habilita bacharéis para o exercício da advocacia. De acordo com o Censo de Educação Superior, mais de 106 mil pessoas se formaram em Direito no país em 2016 – 88% em faculdades particulares.

A má qualidade do ensino oferecido por esses cursos vem sendo demonstrada não só pelo elevado índice de reprovação no exame aplicado pela OAB, como também na péssima performance dos bacharéis em concursos de carreiras jurídicas, cujas vagas muitas vezes não são preenchidas devido ao baixíssimo desempenho de candidatos nas provas.

Na medida em que aumenta o índice de bacharéis reprovados no exame da OAB, o Ministério da Educação (MEC) autoriza cada vez mais pedidos de autorização para funcionamento de novos cursos de Direito, cujas bases de sustentação nem sempre são estáveis e perenes.

A indústria de bacharéis cresce de forma impressionante, com uma educação jurídica deslocado da realidade, alheia às necessidades sociais e incapaz de formar profissionais habilitados para enfrentar os desafios profissionais que a carreira jurídica impõe.

Em termos concretos, isso significa que falta massa crítica no âmbito do ensino jurídico, cuja baixa qualidade traz drásticas consequências para toda a sociedade, principalmente aqueles que precisam de um sistema jurídico formado por valores equânimes.

O ensino jurídico precisa ser encarado como um bem social e não mais como uma mercadoria, com uma legislação educacional permissiva e faculdades voltando-se para a criação de cursos de Direito apenas porque estes dão status e trazem expressiva lucratividade.

A influência política não pode continuar prevalecendo na criação desenfreada de cursos, muitos deles funcionando até mesmo em galpões de armazéns, comprometendo a formação de bacharéis para o exercício de uma profissão que exige, por princípio, o saber jurídico.

O MEC não pode continuar permitindo a mercantilização do ensino jurídico com faculdades sendo transformadas em fábricas de diplomas para que seja passada ao mundo a falsa ideia de que no Brasil existe um relatório estatístico de escolaridade superior semelhante aos dos países desenvolvidos.

domingo, 15 de outubro de 2017

Contrabando legislativo


Antonio Carlos Lua

A Teoria da Divisão de Poderes, consagrada na obra ‘O Espírito das Leis’, do pensador francês Montesquieu, que – baseado na obra ‘Política’, do filósofo Aristóteles, e no livro ‘Segundo Tratado do Governo Civil’, de John Locke –  instituiu o Sistema de Freios e Contrapesos, para afastar governos absolutistas e evitar a produção de normas tirânicas, não vem tendo efeito prático no Brasil, com a acintosa supremacia do Executivo Federal em relação ao Congresso Nacional, na aprovação de Medidas Provisórias incompatíveis com os preceitos constitucionais.

Acobertado por uma pseudolegalidade à qual o Congresso Nacional se curvou, o Executivo Federal, enquanto detentor do poder político, vem subjugando o Legislativo, transformando o Parlamento brasileiro num almoxarifado da Presidência da República.

Valendo-se do artifício conhecido como “contrabando legislativo”, o Executivo Federal enfia sistematicamente penduricalhos – as chamadas “emendas jabutis” – em Medidas Provisórias que versam sobre assuntos que não guardam nexo algum com o objeto principal da matéria analisada.

As Medidas Provisórias ganharam uma proporção gigantesca no Brasil e vêm sendo editadas ao bel prazer do presidente da República. Essa prática ditatorial à qual espantosamente o Brasil se acostumou mostra o autoritarismo do Executivo Federal que – aproveitando-se da preguiça do Congresso Nacional em legislar – insere no ordenamento brasileiro dispositivos casuísticos, gerando sérios danos à sociedade.

De acordo com o artigo 62 da Constituição Federal, em caso de relevância e urgência, o Presidente da República poderá adotar Medidas Provisórias, com força de lei, devendo submetê-las, de imediato, ao Congresso Nacional, quando não existirem outros instrumentos jurídicos capazes de atuar sobre um determinado problema que exija a adoção do mecanismo.

Nesse aspecto, verifica-se flagrante violação à Constituição Federal, evidenciando um desvirtuamento na edição de atos provisórios a serem votados no Congresso Nacional que – abandonando por completo os valores éticos que lhe seriam próprios – vem renegando a sua atribuição institucional de suprimir os excessos e abusos do Presidente da República por meio dos ditos diplomas legais.

O processo legislativo brasileiro é muito complicado. Existe uma tradição de muita barganha, de envolvimento político na tramitação de leis no Congresso Nacional. Embora seja tarefa primordial do Parlamento a elaboração das leis, a agenda legislativa no Brasil está nas mãos do Executivo.

O próprio Parlamento se responsabiliza pela distribuição de poderes que favorecem o Executivo, cuja influência na aprovação de normas é nociva e gera instabilidade no sistema legal, causando uma verdadeira erupção de sentimento de litigiosidade e insegurança jurídica.

Embora saibamos que nenhum governante contemporâneo pode prescindir de instrumentos legislativos ágeis que lhe permitam enfrentar situações de urgência que tragam prejuízos graves à sociedade, ao Estado e à Nação, não é plausível que o Poder Executivo continue usurpando atribuições típicas do Legislativo, cuja pauta hoje é dedicada à alteração ou aprovação de Medidas Provisórias, deixando em segundo plano o seu papel constitucional e prioritário.

O Poder Legislativo precisa encontrar uma forma de conter a voracidade legiferante do Poder Executivo, diante da avalanche de Medidas Provisórias. Em que pese a provisoriedade dessas medidas, enquanto elas estão vigência deixam a sociedade apreensiva, uma vez que os abusos legislativos trazidos em seus textos têm mais caráter particular do que coletivo, beneficiando grupos políticos atrelados ao poder em detrimento da sociedade.