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domingo, 30 de dezembro de 2018

O futuro do jornal impresso


Antonio Carlos Lua

As potencialidades da plataforma digital e a fúria arrebatadora da Internet impulsionaram o frenético fluxo de informações, levando alguns profetas contemporâneos do Apocalipse midiático a fazer prognósticos nada positivos quanto à sobrevivência dos jornais impressos no universo da imprensa, apontando o seu desaparecimento em, no máximo, dez anos. 

A afirmação baseia-se no contexto atual dos Estados Unidos, onde o ‘The Wall Street Journal’ foi vendido, o ‘The New York Times’ reduzido no seu formato, o poderoso grupo ‘Tribune’ vivendo um doloroso processo de haraquiri corporativo, tendo ainda, na Inglaterra, o fim da edição impressa do ‘The Independent’, o primeiro jornal britânico a ser publicado apenas em versão digital. 

São antigos os rumores sobre a possível extinção do jornal impresso. Antes da Internet se popularizar no Brasil, a partir de 1994, o meio impresso era um forte páreo à TV e ao rádio, aos quais, inclusive, precedeu com competência reconhecida. 

No Brasil, pesquisas indicam que a Internet, a Televisão e o Rádio são os veículos predominantes de comunicação, mas o jornal impresso continua sendo o meio mais confiável. O foco é o conteúdo e não a plataforma, embora isso não signifique dizer que a publicação impressa é um atestado de veracidade e imparcialidade da notícia. 

Porém, há de se reconhecer que há uma tendência confirmada em estudos recentes de que o leitor acredita muito mais no que lê num veículo impresso do que aquilo que recebe pela Internet, ainda que o autor da informação seja a mesma empresa de comunicação nas duas mídias. O placar é cruel: 52% contra 27%.

No Brasil, 15% da população compra jornais todos os dias. Metade dos brasileiros usa a Internet, mas só 10% faz a leitura de jornais digitais. Ou seja, a qualidade jornalística do veículo impresso continua sendo o atributo decisivo da sua sobrevivência. 

Mesmo já inseridos no contexto digital, leitores ainda prezam pelas manchetes estampadas, o folhear das páginas, as informações que se misturam ao cheiro do café da manhã de uma geração acostumada a apalpar a notícia com atenção. As pessoas sempre necessitarão ler algo no papel, tanto faz se ele for o atual ou o provável papel eletrônico do futuro. 

Na verdade, o desafio que o jornal impresso enfrenta é o de se reinventar mais uma vez em relação a sua inserção no processo de comunicação, percebendo as mudanças no contexto informativo e adaptando-se a elas com rapidez. 

Ao longo da história, não se tem notícia de que alguma mídia importante tenha suplantado a outra. Ao contrário, as mídias estão sempre se reinventando e assimilando novos métodos para manterem-se ativas e influentes, aprendendo uma com a outra, combinando-se e tirando proveito do melhor que cada uma tem a oferecer. 

O Rádio, por exemplo, teve a sua morte anunciada quando surgiu a televisão, mas, ao contrário, ele se reinventou e atua hoje com o dinamismo de sempre, inclusive com imagem, criando raízes de fidelidade que permanecem por gerações e gerações. 

A mídia impressa está incorporada à nossa cultura e jamais será sufocada pelas novas tecnologias. Os jornais nunca deixarão de existir, embora precisem passar por um radical processo de adaptação e renovação do modelo de impressão, distribuição e logística, para baratear a planilha de custos.

No aspecto editorial, há a imperativa necessidade dos jornais impressos concentrarem sua atenção na produção de reportagens aprofundadas e na análise sistemática das notícias. 

É necessário investir em colunistas com opiniões qualificadas e bem elaboradas sobre os diferentes fatos, livres de estigmas e de funis de pensamento, criando-se, também, ferramentas de interação com o leitor, para que ele analise criticamente a notícia. 

A publicação impressa voltada para o Jornalismo não tem fim. A TV oferece estímulos precisos através de áudio, imagem e movimento. O rádio instiga a imaginação. O jornal impresso narra. Nele, não há uma comunicação instantânea como na TV e no rádio, mas há a possibilidade da interpretação particular, reforçando a relevância do seu conteúdo para a sociedade.

Embora, no momento, asfixiados economicamente, os jornais impressos não acabarão e continuarão buscando a informação rigorosa e honesta sobre o que acontece nas ruas, descrevendo o que existe, averiguando o que acontece, apalpando o sofrimento da sociedade, remexendo consciências, dando valor agregado à notícia. 

Pode parecer romantismo, mas, assim como o advento da música moderna não acabou com a ópera, a receita clássica do jornalismo impresso jamais será superada pelas novas ferramentas de comunicação digital.

domingo, 23 de dezembro de 2018

O jornalismo de imersão do escritor Euclides da Cunha


Antonio Carlos Lua

Há 109 anos morria o escritor e jornalista Euclides da Cunha, primeiro repórter a escrever, no Brasil, um livro-reportagem – a obra clássica “Os Sertões” – sobre a Guerra de Canudos, confronto entre um movimento popular de fundo sociorreligioso, liderado por Antônio Conselheiro, e o Exército da República, que durou de 1896 a 1897, sendo o fato jornalístico mais importante da época.

Saber o que significou exatamente a Guerra de Canudos e a observação da imprensa sobre o acontecimento é importante para compreender a função do repórter Euclides da Cunha, enviado pelo jornal ‘O Estado de S.Paulo’, para fazer a cobertura jornalística do que viria a ser a derrocada de Canudos. 

Euclides da Cunha viveu intensamente o contexto da guerra como repórter e como analista social, narrando a vida de um povo negligenciado pela metrópole, sofrendo diretamente as consequências do que o Brasil tinha – e, infelizmente ainda tem até hoje – de profundamente colonial, revelando um conjunto de práticas que constituem hoje preocupações do jornalismo contemporâneo.

Foi o primeiro escritor brasileiro a unir o jornalismo com a literatura e com a história, na série de reportagens enviada para o jornal ‘O Estado de S.Paulo’, relatando a campanha que exterminou a revolta dos jagunços aquartelados dentro de um mísero arraial nas paragens do fundão nordestino. 

Em parte escorado na ciência do Século XIX e por outra parte manejando sua prodigiosa capacidade de observação, Euclides da Cunha oferecia nas suas reportagens uma leitura dialética da formação brasileira: as cidades do litoral em confronto ao sertão arcaico, o exército blindado, mas impotente diante da guerrilha armada pelo sertanejo, o desastre de Canudos rasgando uma fenda intransponível entre civilização e barbárie. 

O resultado das reportagens de Euclides da Cunha na Guerra de Canudos – que inclui uma complexa investigação – mudou totalmente a maneira de ver o Brasil, constituindo o precedente incontornável de abordagens sociológicas, tocando um nervo exposto e sempre latejante da história humana. 

Sua paixão pela verdade o ajudou a transpor para as páginas do jornal ‘O Estado de S.Paulo’ as mazelas a que jamais ficou insensível. Devotamente, Euclides da Cunha foi o precursor de uma interpretação do Brasil fundada no conhecimento direto e exato da verdadeira situação do homem e da terra.

Sua viagem ao sertão baiano para contar jornalisticamente a história da Guerra de Canudos modificou até mesmo a forma de se fazer jornalismo no Brasil. 

Ao contrário dos outros jornalistas que atuavam na zona de conflito, Euclides da Cunha quis – além de narrar os fatos com precisão – compreender o que se passava naquele pedaço do Brasil. Isso incluía desvendar o ambiente, o clima e principalmente se envolver com pessoas. 

Essa postura de entrega, somada a seu texto rico e consistente, foi responsável pelo pioneirismo do chamado Jornalismo Literário no Brasil. Três características presentes no livro-reportagem “Os Sertõs” definem Euclides como um jornalista literário. A primeira delas foi o mergulho na realidade do conflito, a chamada imersão. A segunda foi a sua visão do mundo.

Culto e politizado, Euclides entendeu que o problema com o qual se deparava – e que era a sua pauta jornalística – não era simplesmente uma coincidência de fatos. Havia, em Canudos, um contexto histórico, humano e geográfico e ele queria compreender textualmente aquela realidade dramática. 

Nenhum outro escritor deixou marcas tão fortes quanto Euclides da Cunha, pelo testemunho que trouxe, mesmo a Guerra de Canudos não sendo a única na nossa história, embora ela simbolize todas as outras rebeliões reprimidas na ponta da espada no Brasil. 

Obra rica, “Os Sertões” quebra a cabeça de bibliotecários. É encontrado nas seções “geografia”, “romance”, podendo, também, ser classificado como uma grande reportagem, mostrando que Euclides da Cunha cumpriu um papel decisivo ao demonstrar que é possível praticar a literatura da realidade de maneira competente sem recorrer apenas a recursos de ficção.

O livro “Os Sertões”, traduzido para várias línguas, influenciou grandes escritores brasileiros, como Guimarães Rosa, e autores como o peruano Mario Vargas Llosa (A guerra do fim do mundo-1981); e o húngaro Sandor Marai (Veredicto em Canudos-2002). 

Além de marcar o jornalismo literário no Brasil, “Os Sertões” tornou-se a obra autêntica, mostrando que, na verdade, o jornalismo sempre esteve ligado, se não à literatura, aos literatos. Escritores como Daniel Defoe, Charles Dickens e Jack London estão entre os muitos que são citados tanto no campo da ficção quanto na história do jornalismo.

Na tradição americana, esse tipo híbrido de narrativa tem várias denominações: jornalismo literário, literatura de não-ficção, ensaio, jornalismo de autor, novo jornalismo. Os especialistas exigem alguns requisitos para que uma obra possa ser classificada como pertencente ao Jornalismo Literário. 

Ela precisa estar ancorada em fatos. Sua matéria-prima é o trabalho de grande apuração: muitas entrevistas, muito bate-pé de repórter, pesquisa em arquivos, exaustiva investigação de fatos, levantamento de dados. Essa técnica é chamada de “reportagem de imersão”. 

Os representantes do novo jornalismo fizeram dela um de seus dogmas, a tal ponto que George Plimpton treinou em times profissionais de beisebol e de futebol americano e lutou com um ex-campeão peso-pesado para se sentir qualificado a escrever sobre esportes. 

No momento em que o jornalismo, por força das mudanças acentuadas da vida contemporânea, encontra-se em fase de redefinição, uma volta aos clássicos do jornalismo literário pode ser útil para se desenhar alguns modelos, principalmente para aqueles que acreditam que o futuro dos jornais e das revistas de papel está na diferenciação pela qualidade, não só da informação e da análise, mas também do texto.

sábado, 15 de dezembro de 2018

Andrea Pasin: um missionário em busca da verdade

Um périplo pelos quatro continentes para ajudar os excluídos e as vítimas diretas da desigualdade social se tornou uma missão para o italiano Andrea Pasin, autor do livro ‘Venha comigo’, que retrata a realidade social cruel de países da América Latina, em especial o Brasil. 

Mestre de Taekwondo, escritor, Andrea Pasin vive em constante itinerância, buscando a verdade, não a verdade dos palacetes e da riqueza, mas a verdade das ruas, das favelas, onde crianças, mulheres e idosos passam fome e não sabem o que é cidadania.

Para cumprir sua missão, Andrea Pasin decidiu tirar um tempo para si mesmo e, decididamente, subiu com sua mochila em um avião certo de que a viagem não teria um roteiro definido e nem uma programação sobre o que poderia acontecer, pois a verdade a ser encontrada poderia estar em qualquer lugar onde ele resolvesse fazer sua imersão social em prol da dignidade das pessoas..

Depois de viver com os pobres nas ruas em São Paulo e em fazendas brasileiras onde afloram os conflitos pela posse da terra, Andrea Pasin está agora na cidade de São Luís, ajudando os mais pobres, que precisam ecoar sua voz por mais respeito, mais atenção das autoridades, mais saúde, mais educação e mais implementação de políticas públicas para que todos tenham o respeito e a dignidade humana garantidas pelos princípios elencados na Constituição Federal.

Determinado em sua desafiadora missão, Andrea Pasin já passou pelos quatro continentes tentando capturar a profunda verdade de cada país, de cada cidade, de cada  comunidade, numa experiência humana valiosa.

Ele fala cinco idiomas. Há onze anos mora entre a Itália e o Brasil, sendo voluntário nas missões em São Luís, onde fundou o projeto "Albaredo", que, além de ajuda prática, oferece o ensino de artes marciais em bairros humildes, como método de educação e desenvolvimento psicossocial.

“Cheguei na primeira missão com os frades em 2007 no bairro Coroadinho. Imediatamente me apaixonei por São Luís e seus habitantes acolhedores. Depois da primeira viagem à capital maranhense retornei por onze vezes. Fico vários meses na cidade, todos os anos”, explica Andrea Pasin, que é responsável pela captação de recursos, tanto econômicos como materiais para os bairros pobres, como Alto do Pinho, Pão de Açucar, Vila Luizão, Pirâmide, Divinéia, Coroadinho, entre outros. 

O missionário também ensino o Taekwondo itf e é o único professor do Maranhão dessa arte marcial, que desenvolve o equilíbrio e o método social. 

O projeto de Andrea Pasin é formar professores que possam treinar e educar os pobres e excluídos, eliminando qualquer forma de violência, uso de armas ou qualquer comportamento que represente desrespeito aos direitos humanos.

“É um projeto que necessita de investimentos para o  financiamento de treinamento de professores encarregados de expandir a educação em artes marciais”, ressalta  Andrea Pasin.

Ele afirma que o projeto já está em desenvolvimento, trazendo excelentes resultados, deixando as comunidades pobres bastante confiantes com o sucesso da iniciativa.

“Já temos excelentes e maravilhosos resultados, mas precisamos de investimentos para treinar e pagar os professores que necessitam manter suas famílias”, afirmou Andrea Pasin.

domingo, 9 de dezembro de 2018

Inteligência artificial no Direito: uma realidade a ser desbravada

Antonio Carlos Lua

Os investimentos com inteligência artificial para potencializar a capacidade humana no Direito no Brasil chegarão a US$ 47 bilhões, em 2020, prometendo mudar a prática jurídica de forma irreversível, rompendo com o tradicionalismo no campo jurídico.

O conjunto de inovações tecnológicas e a implantação de sistemas prepara o alicerce para um salto ainda maior com a informática jurídica de decisão, que pode ser viabilizada com a utilização de inteligência artificial.

A realidade faz ver que já convivemos com a inteligência artificial, que apenas iniciou seus primeiros passos com algoritmos altamente inteligentes com suporte racional suficiente para resolver os mais intrincados problemas que o ser humano demandaria muito tempo para equacioná-los.

É importante frisar, no entanto, que por mais sofisticadas e inteligentes que sejam, robôs não poderão jamais substituir o homem nas atividades criativas, embora o avanço incansável na área da inteligência artificial, que cada vez amplia mais as interrogações a respeito de suas fronteiras, venha causando certa inquietação à humanidade. 

Pelo que se anuncia, em pouco tempo o corpo humano será dotado de sensores para, numa rápida leitura biométrica, fornecer informações a respeito de todos os estímulos, emoções, sensações que passam no interior da pessoa, fazendo revelações até mesmo desconhecidas pelo próprio ser humano. 

Sem falar dos carros autônomos que transitarão pelas ruas sem a convencional figura do motorista; os drones que riscarão os céus para se incumbirem de entregas de produtos; e os robôs que substituirão os serviçais. 

Sem cogitar, ainda, da criação da memória afetiva para a máquina, que passa a ser programada para uma superinteligência artificial e, a partir daí, disputar espaços com seu criador, destronando-o com facilidade, vindo a assumir o controle do universo. 

Isso nos faz lembrar a peça do teatrólogo checo Karel Tchápek, “A Fábrica de Robôs”, escrita em 1920, em que os robôs criados com a finalidade de executar todas as funções de uma indústria, após atingirem altíssimo índice de produtividade, revoltaram-se e destruíram o sistema. Com traços humanoides, eles assumiram a linha de frente e extinguiram a sociedade que os projetou, considerando-a sem importância.

Uma vez que o Direito tem por finalidade estabelecer regras a respeito não só do comportamento social, idealizando-o como um espaço harmônico de convivência, mas também de regulamentar as relações sociais e comerciais entre pessoas e Estado, as novas leis devem ter um escopo mais realista com os dispositivos relacionados com a inteligência artificial para que os operadores do Direito possam desenvolver uma distribuição da justiça mais condizente com a nova era que se apresenta.

Apesar dessa reflexão parecer distante, sugere-se a formatação de raciocínios jurídicos diferentes e, principalmente, coadjuvados por algoritmos de última geração, visando encontrar uma solução que seja adequada para a correta avaliação do fato novo. Os tempos mudam e os homens com eles. O Direito, obrigatoriamente, segue com ambos.

domingo, 11 de novembro de 2018

Um veneno contaminador na política


Antonio Carlos Lua

Falta interlocução política no Brasil, que vive uma grave crise de representatividade simbolizada por um racha no diálogo entre os políticos e a sociedade. São políticos analógicos que só sabem falar e não sabem ouvir, e eleitores digitais, que não querem só ouvir, querem ser ouvidos. 

Nenhum cidadão se sente representado hoje no Brasil. A classe política só fala para a própria classe política, com um conjunto de interesses próprios distanciados dos anseios da sociedade, ignorando as demandas cada vez mais radicais da cidadania nas ruas. 

A ausência de uma linha de atuação política saneadora que estabeleça uma cláusula de representação causa uma desordem geral no sistema democrático, faltando aos políticos a luminosa coerência para uma intervenção positiva nas causas que envolvem o supremo bem do povo.

Há nessa prática um veneno contaminador, levando a equivocada crença de que a representação política – longe de ser compreendida como serviço – é simplesmente a conquista de benesses e de posições que facilitem o enriquecimento a partir da corrupção.

Além de causar perplexidade, esse posicionamento atinge fortemente a tênue democracia brasileira, colocando em risco seus propósitos e funcionamento.

A representação política no país não é balizada em parâmetros éticos. Se essa dinâmica não for vencida, permanecerá aberta a ferida na democracia brasileira, que continua sendo objetivada apenas aos limites eleitorais.

Essa distorção faz com que os cidadãos deixem de ser atores na vida política, para tornarem-se consumidores de determinados partidos, com o exercício da cidadania limitado apenas o voto, sem participação no processo decisório. 

É um quadro desolador. Transformaram a democracia original num mercado eleitoral, colocando em xeque a legitimidade da representação política, com os partidos agindo como máquinas de poder. 

Precisamos encarar com urgência e ousadia esse grave problema, que se evidencia cada vez mais e cuja solução ainda não é visível com o perigoso fosso existente entre as agremiações políticas e a cidadania, num estranhamento que se generaliza cada vez mais.

É hora de rever estratégias para eliminar esquemas perniciosos que fragilizam a democracia, cuja vitalidade só é possível com cidadãos ativos e instituições políticas fortes, numa permanente relação construtiva. 

domingo, 4 de novembro de 2018

Excrescência autoritária



Antonio Carlos Lua

A Constituição Federal brasileira chega aos 30 anos em um momento crítico, com o Brasil vivendo uma crise institucional sem precedentes. Sobram incertezas. Assim, torna-se inevitável a pergunta diante da efeméride: a Carta Magna teve o mérito de manter o regime democrático diante de todos os percalços?

Para aqueles que, ao longo desses 30 anos, não cumpriram o seu dever no Parlamento e se preocupam apenas em atender agendas específicas para aumentar seus privilégios e lançar o país em novas aventuras de desfecho imprevisível, visando romper com o pacto democrático, a resposta é não.

Mais do que falhas dos parlamentares membros da Assembleia Constituinte ou no texto aprovado por eles, em 1988, os maiores tropeços são de legisladores que vieram depois e deveriam ter transformado em leis os valores constitucionais que foram as maiores conquistas na elaboração da Lei Suprema do país.

Antes de qualquer diagnóstico impressionista, a Constituição Federal deve, na verdade, é ser respeitada e cumprida de forma adequada. A proposta de mudar a Carta Magna é uma excrescência autoritária, de quem saiu de uma bolha e entrou desavisadamente no debate democrático. Nesse ritmo, caminharemos para um colapso, para uma crise de Estado.

Nas atuais circunstâncias, seria um retrocesso mudar a Constituição Federal. Não porque ela esteja acima de críticas. Apesar de ter um texto extenso demais, abarcar uma infinidade de assuntos que poderiam muito bem ser objeto de legislação ordinária e criar uma série de direitos sem deveres correspondentes, há de se admitir que a proposta apresentada para convocar uma nova Constituinte é totalmente infundada.

A ideia vem de uma leitura mágica da realidade brasileira atual. É uma proposta superficial que está sendo testada como balão de ensaio. Falta um debate honesto e racional sobre a questão. Num momento de turbulência, necessitamos de um ponto de apoio sólido. Querer uma nova Constituição em um momento sensível, de intempéries, é levar o Brasil a instabilidade total.

A Carta Magna de 1988 é filha de seu tempo. Após a redemocratização, era sumamente necessário dar ao Brasil uma nova Constituição e, como reação aos 21 anos de autoritarismo, os constituintes buscaram consagrar no texto todos os direitos que puderam conceber, muitos dos quais haviam sido tirados dos brasileiros durante a Ditadura.

Com ela, o país mudou nos últimos 30 anos. Evoluímos na compreensão do funcionamento das contas públicas e identificamos as bombas-relógio fiscais que podem comprometer o Estado brasileiro no futuro. Dobramos uma esquina importante no combate à corrupção.

Por enquanto, a atual Carta Magna traz os mecanismos que permitem sua alteração em diversos pontos, podendo estes serem modificados para que ela se torne mais enxuta, equilibrando melhor os direitos e deveres, plenamente adaptada à realidade atual, com o respaldo da vontade popular.

domingo, 21 de outubro de 2018

Império da lei

Antonio Carlos Lua

Neste exato momento, algum brasileiro, em algum lugar do País, está cumprindo ao menos uma lei que não deveria ter entrado em vigor, por ser inconstitucional.

Oito em cada dez leis julgadas – no mérito –  pelo Supremo Tribunal Federal (STF), são consideradas inconstitucionais no todo ou em parte. A forma de editar uma lei, mais do que o seu conteúdo, está entre os principais erros cometidos. 

É pública e notória a constatação de um número infindável de leis inconstitucionais. O Poder Legislativo aprova uma lei e sabe que depois tem um encontro marcado com o Poder Judiciário para rediscuti-la.

No Brasil, é comum que leis sejam editadas para atender interesse de poucos, que não teriam o direito que conquistaram se certas normas não estivessem no ordenamento jurídico. 

Tal situação apenas escancara aquilo que já vem acontecendo há muito tempo e que acaba sendo paradoxalmente desprezada pelo Poder Legislativo, responsável pela criação e edição de diplomas legais.
O Brasil supera as democracias do mundo em número de leis questionadas, colocando o Poder Judiciário como a terceira arena de discussão, por ter que apreciar medidas legislativas e do Executivo, sendo bastante demandado para a verificação de possíveis inconstitucionalidades que viciam inúmeras legislações. 

A despeito da inconstitucionalidade de leis federais, a criação de leis estaduais e municipais denuncia uma série de fatores já conhecidos de todos, mas que, até agora, não foram resolvidos. 

Nessa direção, é possível detectar leis totalmente inconstitucionais, ora pela falta de competência das instâncias legislativas para a sua edição, ora pelo desvio de finalidade de atos normativos com o objetivo de favorecer demandas de caráter ilícito. 

Como consequência óbvia da ineficiência dos órgãos que compõem o Poder Legislativo e Executivo, o Poder Judiciário encontra-se abarrotado com a chegada de inúmeras Ações Diretas de Inconstitucionalidade, Arguições de Descumprimento de Preceito Fundamental, além dos Mandados de Injunção. 

Isso acaba prejudicando os processos, cujas demandas sofrem com a duração alongada de seus julgamentos, além de fazerem brotar outros processos correspondentes aos desvios de finalidade de atos de agentes públicos, definidos como atos de improbidade administrativa.

Assim, o aumento da demanda e a consequente perda da qualidade na criação de leis remetem à necessidade de um controle jurisdicional da sua constitucionalidade, promovendo um crescente protagonismo do Poder Judiciário em todas as suas instâncias. 

É importante ressaltar que todos esses fatores que provocam a inconstitucionalidade de diplomas legais, são responsáveis pela crescente judicialização da política. 

De acordo com o sistema jurídico adotado no Brasil, as leis gozam de presunção de constitucionalidade e, por isso, tão logo publicadas, passam a integrar o ordenamento jurídico, entrando em vigor na forma de suas próprias prescrições.

Sabe-se que as referidas leis, em seus respectivos processos de produção, quanto à forma e conteúdo, são servis à Constituição Federal. Quando assim não ocorre, cabe aos interessados, na forma constitucionalmente prevista, questionar a sua constitucionalidade. 

No mundo moderno, a lei é o princípio da autoridade. É a lei que define os limites da particularidade dentro da universalidade. É o império da lei o garantidor da liberdade. Fora da lei, reina a arbitrariedade. 

No Brasil, infelizmente, as leis, em sua maioria, são elaboradas sem se analisar se respeitam ou não os princípios constitucionais. Isso causa um problema, pois depois que uma lei é sancionada passa a ser necessária uma análise do Judiciário para declarar sua inconstitucionalidade. 

Assim, cria-se uma rotina em tribunais para descartá-la, sendo mais um ingrediente dentro de um universo com mais de 100 milhões de processos em tramitação no conturbado contexto de questionamento de normas.

Muitas leis sancionadas não se encaixam à realidade social pela centralização de poder e pela distância dos legisladores do cotidiano das pessoas. 

Embora a quantidade de leis aprovadas possa ser um termômetro para medir o protagonismo do Poder Legislativo, não há relação entre muitas leis aprovadas e um bom Parlamento, até porque o legislador também tem função de fiscalizar o Poder Executivo. 

A explicação para a significativa produção de leis inconstitucionais está em nossas raízes. Se fizermos uma análise histórica de nossa formação cultural, constataremos que o estatismo brasileiro não é um acaso, e sim uma obra de séculos. 

Isso se reflete na opinião dos cidadãos. Nos sites que pedem a opinião popular sobre proposições dos parlamentares, é comum observar que a maioria delas são aprovadas pelo público – e as redes sociais comprovam isso. Muitas vezes são leis inúteis, inconstitucionais, irrelevantes e ruins. 

O parlamentar sabe que o projeto é absurdo, mas, para não ‘passar em branco’ diante dos eleitores, propõe sugestões descabidas. Dessa forma, a associação entre aprovar inúmeras leis e ser um congressista eficiente tem sido tratada como absolutamente natural.

Outro fator que estimula a indústria legislativa é a denominada legislação-álibi. Ela ocorre diante de certa insatisfação da sociedade perante algo, sendo uma resposta pronta e célere do ente governamental. 

Trata-se de uma aparente solução, transmitindo a mensagem de um Estado que responde normativamente aos problemas reais da sociedade, podendo, até mesmo, introduzir um sentimento de bem-estar nas pessoas, mesmo não tendo efeito prático naquilo que se propõe solucionar. 

Muitos Projetos de Lei gerados nas casas legislativas não apresentam argumentos ou justificativas técnicas e são, na verdade, resultado de negociações partidárias e trocas de favores políticos. 

É necessário um freio à frequente criação de normas jurídicas desconectadas da realidade que, além de revelar uma profunda fragilidade do processo legislativo, denota uma despreocupação do legislador quanto aos impactos e constitucionalidade da norma promulgada. Algo precisa ser urgentemente mudado nesse sentido. 

sexta-feira, 12 de outubro de 2018

A reinvenção da política


Por Antonio Carlos Lua

As eleições desenharam uma nova coreografia política no Brasil. Aqueles localizados à esquerda do espectro ideológico habitam e sentem na pele o mal-estar social e, assim, procuram saídas coletivas para a crise na qual todos nós fomos jogados, apesar das nossas resistências cotidianas.

Aqueles que se colocam ideologicamente à direita – ou seja, os nostálgicos da Ditadura – fazem do mal-estar social um desejo de destruição, alimentando um neoliberalismo ultraconservador que flerta com elementos de um fascismo clássico e com o colonialismo racista, disseminando o ódio de classes para estabelecer uma sociedade neurótica, jogando uns contra os outros, numa competição permanente.

Na contramão da história, fazem movimentações incontidas em defesa da tortura, em discursos de violência misógina e de racismo explícito, desenhando propostas ultraautoritárias, tendo como guru econômico Paulo Guedes, ex-colaborador da Ditadura do general Pinhochet, no  Chile. 

É por isso que a política configura-se como o cerne e o pilar central de um sistema que apodrece a céu aberto no Brasil, tendo como situação aflitiva o aprofundamento da crise política, num país com milhões de desempregados, péssimos serviços públicos e questões comportamentais mal discutidas e mal resolvidas.

Esses fenômenos nos ajudam a entender a extrema desmoralização do sistema político, impondo às forças progressistas o desafio da reinvenção, formulando contraposições às propostas reacionárias que se apresentam como outsiders, ‘contra tudo o que aí está’.

Os perigos agora se concretizam com notável dramaticidade.Teremos pela frente dias difíceis, tormentosos, a exemplo do que ocorreu nas ascensões meteóricas de Jânio Quadros (1960) e Fernando Collor (1989), cujos resultados não foram nada edificantes para a população brasileira.

Um regime antidemocrático, baseado no arbítrio e na prepotência representa uma ameaça à democracia. É hora de decidirmos se queremos salvá-la e aperfeiçoá-la ou se queremos assistir a sua destruição. As opções estão em aberto e as circunstâncias decidirão.

domingo, 30 de setembro de 2018

Tempos sombrios


Por Antonio Carlos Lua

O nível do debate entre os candidatos sem agendas propositivas vem aviltando o processo eleitoral, com a perda dos referenciais de natureza ética e moral, num retrocesso deplorável, com a perda de parâmetros em tempos sombrios de pós-verdade.

Eleições não se bastam a si próprias. Não podemos permitir que o medo continue sendo catapultado ao patamar de larga escala no país, abrindo caminho para que o ódio se coloque como elemento central da política, levando para as urnas uma experiência dramática.

Como os políticos não estão tendo capacidade de canalizar as insatisfações da sociedade, os oportunistas capturam as angústias dos eleitores e se aproveitam do momento de crise para mobilizar as massas, pulverizando a raiva e colocando o povo em fúria, com a inversão da verdade e desprezo pelos sistemas legais. 

Se não tivermos uma percepção das diferenças ideológicas que permeiam a política, abriremos caminho para que a intolerância penetre de forma determinante no país,  abrindo as portas para a barbárie.

É necessário que nos reinventemos enquanto seres coletivos, para impedir a ascensão do autoritarismo e de políticos raivosos que se apropriam do discurso progressista, para levar os eleitores a perderem o senso de realidade.

Diferenças ideológicas não podem ser combustível para o discurso do ódio, que vem diluindo a sociedade no caldo da política raivosa, arrastando multidões, numa narrativa onde é irrelevante discutir os meios para se chegar ao fim maior. 

Cabe ao eleitor responder a essa provocação de forma inteligente. Na política há uma lei que diz que “quando não se gosta da forma como a mesa está posta, vira-se a mesa”. É isso que os eleitores devem fazer, exigindo que os candidatos digam, com clareza, quais os objetivos e pontos de vista políticos prevalecem em suas ideias e projetos. 

É preciso ficar claro para os candidatos que, além do contexto político-eleitoral, há um conjunto de pessoas reais que está por trás das intenções de votos e que a sociedade não quer mais um Brasil controverso em si mesmo, vivendo, em pleno Século XXI, no quase primitivismo. 

Não interessa ao eleitor a retórica de um político desqualificando o opositor, colocando do seu lado o “bem” absolutamente puro e imaculado para situar do outro lado – o do opositor – o mal absolutamente impuro e degradado, como se a política fosse um campo de batalha numa disputa entre o supremo bem e o mal essencial.

Nada mais pernicioso ao processo democrático do que a conduta de quem pretende fazer política moralizando a si mesmo como “o bem” e o oponente como “o mal”, com a mentira impulsionando as ações políticas. A agressividade com que um candidato julga o oponente só não é maior do que a forma benevolente com que analisa o seu próprio comportamento. 

A mentira, a ofensa e a fanfarronice, que se repetem em nível abundante com muita intensidade na campanha eleitoral, causam efeitos colaterais nos eleitores já retraumatizados com o mau cheiro de decadência moral que acompanha há algum tempo a política brasileira.

Políticos que esbravejam a retórica perversa e desumanizante de “nós contra eles” estão criando um Brasil dividido e perigoso. Essa postura tem alimentado o retrocesso, enfraquecendo uma resposta firme às atrocidades causadas pela manipulação política.

domingo, 16 de setembro de 2018

Convergência de demagogias


Por Antonio Carlos Lua

Flagelados pela pior crise política desde a redemocratização, os brasileiros voltam às urnas para decidir uma eleição disputada por várias lideranças populistas autocráticas, que utilizam as ferramentas de comunicação para manipular multidões e oferecer respostas simples a problemas extremamente complexos. 

São os clássicos salvadores da pátria moldados na cultura política altamente personalista do Brasil, onde sobra campo para a ascensão de políticos populistas que emergem em eleições a cada quatro anos, tratando o povo como um conjunto homogêneo, sem senso crítico, fazendo a este “ofertas irresponsáveis”, numa argumentação que vira uma espécie de doutrinamento.

Embora se apresentem como defensores do povo, os populistas são intrinsecamente antidemocráticos e buscam desqualificar os oponentes empregando as dicotomias “nós versus os outros”, “tradição versus progresso”, “a nova política versus a velha política”, para dividir a sociedade e fazer com que a base da pirâmide social passe a lhe admirar.

Os candidatos de perfil populista reivindicam a ideia de democracia, mas – numa grande convergência de demagogias – agem contra o país e, em nome de uma ideia difusa de “libertação”, submetem as instituições à irracionalidade das multidões.

É por isso que o Brasil funciona sob um pêndulo que puxa todos os atores políticos para um de seus polos, transformando-os em repetições de atores passados, nos assombrando a cada momento com a repetição e a reincidência contínua do populismo, que segue manipulando o eleitor, alimentando medos e anseios, reduzindo a população a uma massa politicamente amorfa e suscetível aos interesses daqueles que banalizam a cidadania..

O populismo é pernicioso e oblitera as questões que afetam a vida comum, usando as massas como extensão de seus quintais para tirar proveitos pessoais e colocar em prática projetos escusos, sem qualquer preocupação com a criação de um Estado eficiente, neutro e previsível.

sábado, 25 de agosto de 2018

Brisa de intolerância


Por Antonio Carlos Lua

Paira na atmosfera eleitoral uma brisa de intolerância cravada na irracionalidade e no menosprezo em relação aos valores condensados no conceito de democracia, numa abstração impossível de se encontrar em qualquer atividade humana.

Nenhuma democracia é compatível com os projetos e os interesses colocados agora na disputa eleitoral. Eles estão distantes do consenso básico da democracia e colocam novamente o povo no caminho da frustração e desilusão.

A retórica adotada no processo eleitoral nega por completo o que é inextricavelmente imperfeito e limitado, com os políticos perdendo por completo a noção adequada da realidade, contribuindo para o nefasto rebaixamento da disputa eleitoral.

Em um momento, nos deparamos com a moralização do discurso político, com sérios defeitos de julgamento, numa pureza inexistente mesmo no mais recluso dos mosteiros beneditinos.. Em outro, observamos a injustiça com a política, sendo a mesma analisada e diagnosticada a partir de uma perspectiva exclusivamente detratora. 

Essa é a causa da recusa explícita ou implícita dos cidadãos em participar das escolhas de representantes, entendendo que a política é meio impróprio para cidadãos honestos, com os personagens que habitam, no momento, o mundo político. 

Isso é preocupante. Apesar de toda a decepção com a política, o abandono dela não é a solução. Na verdade, é a raiz de muitos males. Quanto mais a política é deixada de lado pelos cidadãos, menos ela serve aos interesses públicos. 

Sem a participação do povo, a representação política fica sob monopólio de desonestos que se tornam seus únicos protagonistas, ‘donos’ de suas regras e de seus resultados, embora pedindo muito e dando muito pouco em troca.

A política só faz sentido quando os cidadãos agem unidos e organizados, compreendendo que ela é um sítio de convivência social, onde todos estão imersos como sujeitos, sendo afetados direta ou indiretamente. 

A política está entre os homens, é de alguém com os outros. Isso é imperativo nas sociedades plurais, com diversos interesses em jogo. Ela não pode ser exclusividade de castas e sim ambiente de convivência e comunicação de cidadãos diferentes na sociedade. 

Ademais, a política deve sempre interessar a todos, pois é dela que o status de cidadão ganha concretude. É na política que podemos escolher, avaliar, criticar e reprovar nossos representantes, bem como interferir na gestão da coisa pública. 

Isso não implica que os cidadãos devam se filiar a partidos políticos. O que eles devem fazer é se comprometer com o público e encontrar meios que preencham a distância entre a comunidade e o poder. 

Em tempos de desilusão com a política, o discurso apolítico soa encantador. Todavia, isso é mais alienação. A vida política tem que existir. É nela que os cidadãos alcançam Justiça. 

É por meio da política que os brasileiros podem impedir que corruptos se instalem no poder público. 

Em vez de menos política, devemos buscar mais política, porque só assim poderemos ser agentes de transformação da realidade que nos cerca.

domingo, 29 de julho de 2018

Vanguarda do atraso

Por Antonio Carlos Lua

A movimentação política para o fechamento dos acordos para as convenções partidárias com vistas às eleições de outubro não tem atraído a atenção dos eleitores, uma vez que todos sabem que o bolo já está pronto e a receita é do conhecimento daqueles que acompanham o jogo político.

Por mais que os discursos de lideranças de grandes e pequenos partidos políticos tentem mostrar autonomia, independência e orientação ideológica é no fechamento das coligações que se refletem as mazelas políticas criticadas pelos compositores-cantores Zé Ramalho (“Vida de Gado”), Zé Geraldo (“Constrói escola em que a filha não pode estudar”) e o saudoso Cazuza (“As ideias não correspondem aos fatos”).

Como não sobrou nada dos combativos vermelhos da década de 80, resta agora ao órfão eleitor observar as mesmices das práticas eleitorais recorrentes de pleitos pretéritos, com os mesmos atores protagonizando espetáculos voltados para o mal na busca insana de estratégias ilícitas e dissimuladas que possam financiar suas aventuras no ramo da politicagem.

Como disse Henry Ford (1863-1947) “o político pode ter o carro que quiser desde que seja preto, com tudo terminando na polarização de grupos para controlar 70% da classe política detentora de mandatos nos poderes Legislativo e Executivo, nas esferas federal, estadual e municipal”.

Têm também as cooptações, as ameaças de isolamento político e – dependendo da cobrança do ingênuo eleitor – os políticos recorrem a um “guru”, geralmente um metamórfósico camaleão com fortuna meteórica, responsável pelo sucesso político-eleitoral de muitos ratos de agremiações partidárias integrantes das maiores bancadas hoje existentes no Congresso, quais sejam a do boi e da da bala, que convivem em perfeita harmonia com a corrupção alarmante, que destrói a sociedade.

Não será surpresa o fechamento de possíveis alianças heterogêneas unindo “água e óleo” no mesmo frasco, repetindo-se os vícios da República Velha, com muitos se apropriando do poder para perpetuar o atraso e ratear a máquina pública entre seus representantes, colocando aliados nas posições decisórias e adotando a tese de que é preciso mudar sem que nada mude.

As promessas feitas em cada período eleitoral são as mesmas, sempre com a exposição de propostas de forma genérica e sem conteúdo, afirmando supostos compromissos com uma “ponte para o futuro”, para entreter os eleitores com pão e circo, lembrando a máxima popular beradeira “farinha pouca meu pirão primeiro”.

É neste quadro de miséria e ignorância que se fortalece o neoliberalismo orientado pelo estacionário Estado brasileiro, com o poder pessoal abarcando o Poder Público, mostrando que, no Brasil, o passado nunca passa.

domingo, 8 de julho de 2018

O amigo da Corte

Por Antonio Carlos Lua

Torna-se cada vez mais intensa na Justiça brasileira a presença de um ator, que – embora não sendo parte no processo – pede para ser ouvido nos julgamentos de grande repercussão, visando oferecer aos tribunais informações importantes sobre questões complexas cuja análise ultrapassa a esfera legal.

Trata-se do Amicus Curiae – o ‘Amigo da Corte’ – que se populariza a passos largos no Brasil e se insere no processo como terceiro, movido por um interesse maior que o das partes envolvidas inicialmente na ação, em virtude da relevância da matéria e de sua representatividade quanto à questão discutida, requerendo ao Tribunal permissão para ingressar no feito.

Seu papel é servir como fonte de conhecimento em assuntos inusitados, inéditos, difíceis ou controversos, ampliando a discussão antes da decisão dos magistrados.

A função histórica do ‘Amigo da Corte’ é chamar a atenção dos tribunais para circunstâncias ou fatos que poderiam não ser notados, trazendo um leque de informações adicionais que possam auxiliar a análise do processo antes da decisão final.

Sua manifestação se faz na forma de uma coletânea de citações de casos relevantes para o julgamento, experiências jurídicas, sociais, políticas, argumentos suplementares, pesquisa legal extensiva, que contenham aparatos importantes para maior embasamento da decisão pelo Tribunal.

O objetivo dessa figura processual é proteger direitos sociais lato sensu, sustentando teses fáticas ou jurídicas em defesa de interesses públicos ou privados, que serão reflexamente atingidos com o desfecho do processo. O Amicus Curiae está previsto na legislação brasileira desde 1976, mais precisamente no artigo 31 da Lei 6.385/76.

Há divergências quanto à origem do ‘Amigo da Corte’. A doutrina é vacilante quanto a isso. Para alguns estudiosos, o surgimento do Amicus Curiae teve como precursor o Direito Penal Inglês ou o Direito Sueco, com o instituto do Ombudsman. Para outros, seu nascedouro se deu no Direito Romano, especificamente na figura do Consilliarius Romano.

No Brasil, muito se discute sobre a natureza processual do Amigo da Corte, sendo considerado ora como uma forma de assistência qualificada por parte de um órgão ou entidade com representatividade, ora como de intervenção especial.

O jurista Cássio Scarpinella Bueno diz que a qualidade do interesse que legitima a intervenção do Amigo da Corte em juízo afasta-o da assistência. Segundo ele, embora existam fortes semelhanças entre a assistência e a intervenção, há uma marcante diferença entre elas.

Enquanto a ação processual do assistente é de caráter egoístico, ou seja, em prol da tese sustentada pela parte que, uma vez vencedora, lhe acarretará benefícios, o Amigo da Corte labora no processo com espírito altruísta.

Já o jurista Fredie Didier Jr., por sua vez, diverge a respeito da parcialidade do Amigo da Corte, ao afirmar que ele não é um postulante, parte do processo com interesse específico em determinado resultado para o julgamento, o que não quer dizer que não possa ele, em determinadas situações, atuar com certa carga de parcialidade.

Ao tratar das modalidades de intervenção de terceiros, o novo Código de Processo Civil (CPC) introduziu o ‘Amigo da Corte’ como instrumento para possibilitar melhor discussão e estudo de causas controversas e relevantes de interesse de determinados segmentos sociais e da sociedade como um todo.

O entendimento é de que sua atuação não deve ser em favor de uma das partes litigantes, mas sim em prol do melhor esclarecimento das teses defendidas, com precedentes na jurisprudência, e principalmente sua repercussão no meio social em que a decisão judicial repercutirá.

O Supremo Tribunal Federal (STF) tem uma política de portas abertas à participação do Amigo da Corte. Cerca de 90% dos pedidos de entrada na ação são feitos por pessoas jurídicas. As campeãs são as associações (40%) e entidades sindicais (19%).

Também em pouco mais de 90% dos casos o pedido do ‘Amigo da Corte’ é feito em ações de controle concentrado de constitucionalidade. As Ações Diretas de Inconstitucionalidade são as preferidas do ‘Amigo da Corte’, concentrando 84% dos pedidos de ingresso na causa.

A base de dados do STF registra a atuação do ‘Amigo da Corte’ em centenas de Ações Diretas de Inconstitucionalidade julgadas a partir de 1992. Quando há a presença de um ‘Amigo da Corte’ em uma ação no Supremo Tribunal Federal, as chances de ela ser admitida são 22% maiores do que quando não há um terceiro interessado na causa.

Nas ações julgadas procedentes, a proporção de casos com assistência do ‘Amigo da Corte’ é 18% maior do que os casos sem assistência. Nos casos julgados improcedentes a vantagem do Amicus Curiae é de 15%.