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domingo, 29 de julho de 2018

Vanguarda do atraso

Por Antonio Carlos Lua

A movimentação política para o fechamento dos acordos para as convenções partidárias com vistas às eleições de outubro não tem atraído a atenção dos eleitores, uma vez que todos sabem que o bolo já está pronto e a receita é do conhecimento daqueles que acompanham o jogo político.

Por mais que os discursos de lideranças de grandes e pequenos partidos políticos tentem mostrar autonomia, independência e orientação ideológica é no fechamento das coligações que se refletem as mazelas políticas criticadas pelos compositores-cantores Zé Ramalho (“Vida de Gado”), Zé Geraldo (“Constrói escola em que a filha não pode estudar”) e o saudoso Cazuza (“As ideias não correspondem aos fatos”).

Como não sobrou nada dos combativos vermelhos da década de 80, resta agora ao órfão eleitor observar as mesmices das práticas eleitorais recorrentes de pleitos pretéritos, com os mesmos atores protagonizando espetáculos voltados para o mal na busca insana de estratégias ilícitas e dissimuladas que possam financiar suas aventuras no ramo da politicagem.

Como disse Henry Ford (1863-1947) “o político pode ter o carro que quiser desde que seja preto, com tudo terminando na polarização de grupos para controlar 70% da classe política detentora de mandatos nos poderes Legislativo e Executivo, nas esferas federal, estadual e municipal”.

Têm também as cooptações, as ameaças de isolamento político e – dependendo da cobrança do ingênuo eleitor – os políticos recorrem a um “guru”, geralmente um metamórfósico camaleão com fortuna meteórica, responsável pelo sucesso político-eleitoral de muitos ratos de agremiações partidárias integrantes das maiores bancadas hoje existentes no Congresso, quais sejam a do boi e da da bala, que convivem em perfeita harmonia com a corrupção alarmante, que destrói a sociedade.

Não será surpresa o fechamento de possíveis alianças heterogêneas unindo “água e óleo” no mesmo frasco, repetindo-se os vícios da República Velha, com muitos se apropriando do poder para perpetuar o atraso e ratear a máquina pública entre seus representantes, colocando aliados nas posições decisórias e adotando a tese de que é preciso mudar sem que nada mude.

As promessas feitas em cada período eleitoral são as mesmas, sempre com a exposição de propostas de forma genérica e sem conteúdo, afirmando supostos compromissos com uma “ponte para o futuro”, para entreter os eleitores com pão e circo, lembrando a máxima popular beradeira “farinha pouca meu pirão primeiro”.

É neste quadro de miséria e ignorância que se fortalece o neoliberalismo orientado pelo estacionário Estado brasileiro, com o poder pessoal abarcando o Poder Público, mostrando que, no Brasil, o passado nunca passa.

domingo, 8 de julho de 2018

O amigo da Corte

Por Antonio Carlos Lua

Torna-se cada vez mais intensa na Justiça brasileira a presença de um ator, que – embora não sendo parte no processo – pede para ser ouvido nos julgamentos de grande repercussão, visando oferecer aos tribunais informações importantes sobre questões complexas cuja análise ultrapassa a esfera legal.

Trata-se do Amicus Curiae – o ‘Amigo da Corte’ – que se populariza a passos largos no Brasil e se insere no processo como terceiro, movido por um interesse maior que o das partes envolvidas inicialmente na ação, em virtude da relevância da matéria e de sua representatividade quanto à questão discutida, requerendo ao Tribunal permissão para ingressar no feito.

Seu papel é servir como fonte de conhecimento em assuntos inusitados, inéditos, difíceis ou controversos, ampliando a discussão antes da decisão dos magistrados.

A função histórica do ‘Amigo da Corte’ é chamar a atenção dos tribunais para circunstâncias ou fatos que poderiam não ser notados, trazendo um leque de informações adicionais que possam auxiliar a análise do processo antes da decisão final.

Sua manifestação se faz na forma de uma coletânea de citações de casos relevantes para o julgamento, experiências jurídicas, sociais, políticas, argumentos suplementares, pesquisa legal extensiva, que contenham aparatos importantes para maior embasamento da decisão pelo Tribunal.

O objetivo dessa figura processual é proteger direitos sociais lato sensu, sustentando teses fáticas ou jurídicas em defesa de interesses públicos ou privados, que serão reflexamente atingidos com o desfecho do processo. O Amicus Curiae está previsto na legislação brasileira desde 1976, mais precisamente no artigo 31 da Lei 6.385/76.

Há divergências quanto à origem do ‘Amigo da Corte’. A doutrina é vacilante quanto a isso. Para alguns estudiosos, o surgimento do Amicus Curiae teve como precursor o Direito Penal Inglês ou o Direito Sueco, com o instituto do Ombudsman. Para outros, seu nascedouro se deu no Direito Romano, especificamente na figura do Consilliarius Romano.

No Brasil, muito se discute sobre a natureza processual do Amigo da Corte, sendo considerado ora como uma forma de assistência qualificada por parte de um órgão ou entidade com representatividade, ora como de intervenção especial.

O jurista Cássio Scarpinella Bueno diz que a qualidade do interesse que legitima a intervenção do Amigo da Corte em juízo afasta-o da assistência. Segundo ele, embora existam fortes semelhanças entre a assistência e a intervenção, há uma marcante diferença entre elas.

Enquanto a ação processual do assistente é de caráter egoístico, ou seja, em prol da tese sustentada pela parte que, uma vez vencedora, lhe acarretará benefícios, o Amigo da Corte labora no processo com espírito altruísta.

Já o jurista Fredie Didier Jr., por sua vez, diverge a respeito da parcialidade do Amigo da Corte, ao afirmar que ele não é um postulante, parte do processo com interesse específico em determinado resultado para o julgamento, o que não quer dizer que não possa ele, em determinadas situações, atuar com certa carga de parcialidade.

Ao tratar das modalidades de intervenção de terceiros, o novo Código de Processo Civil (CPC) introduziu o ‘Amigo da Corte’ como instrumento para possibilitar melhor discussão e estudo de causas controversas e relevantes de interesse de determinados segmentos sociais e da sociedade como um todo.

O entendimento é de que sua atuação não deve ser em favor de uma das partes litigantes, mas sim em prol do melhor esclarecimento das teses defendidas, com precedentes na jurisprudência, e principalmente sua repercussão no meio social em que a decisão judicial repercutirá.

O Supremo Tribunal Federal (STF) tem uma política de portas abertas à participação do Amigo da Corte. Cerca de 90% dos pedidos de entrada na ação são feitos por pessoas jurídicas. As campeãs são as associações (40%) e entidades sindicais (19%).

Também em pouco mais de 90% dos casos o pedido do ‘Amigo da Corte’ é feito em ações de controle concentrado de constitucionalidade. As Ações Diretas de Inconstitucionalidade são as preferidas do ‘Amigo da Corte’, concentrando 84% dos pedidos de ingresso na causa.

A base de dados do STF registra a atuação do ‘Amigo da Corte’ em centenas de Ações Diretas de Inconstitucionalidade julgadas a partir de 1992. Quando há a presença de um ‘Amigo da Corte’ em uma ação no Supremo Tribunal Federal, as chances de ela ser admitida são 22% maiores do que quando não há um terceiro interessado na causa.

Nas ações julgadas procedentes, a proporção de casos com assistência do ‘Amigo da Corte’ é 18% maior do que os casos sem assistência. Nos casos julgados improcedentes a vantagem do Amicus Curiae é de 15%.

domingo, 1 de julho de 2018

Guerra pela água


Por Antonio Carlos Lua

Solucionar a questão hídrica utilizando o arsenal jurídico que regulamenta a política de sustentabilidade é hoje o maior desafio do Direito Ambiental no Brasil, onde a disputa pela água tornou-se uma categoria de conflitos que cresce vertiginosamente, num cenário de estresse híbrido, má gestão e desmatamento de matas ciliares, que preservam aquíferos.

O Brasil detém 12% da água potável do mundo e sempre foi apontado como uma das regiões do mundo com menos riscos de falta do precioso bem natural. Com 26% da água doce de superfície concentrada no território amazônico, o país é considerado a grande reserva do Planeta para os próximos mil anos. 

Porém, com a perspectiva da escassez hídrica afetar dois terços do mundo até 2050, o país tem que se mobilizar para criar as condições ideais para que o Século XXI não seja marcado por conflitos violentos em torno da água, um recurso finito e vulnerável, essencial para a manutenção da vida.

O cenário não é favorável e a abundância de água pode tornar-se uma ilusão no Brasil, que é o quarto maior exportador de águas virtuais do mundo. O país envia cerca de 112 trilhões de litros de água doce ao exterior em contêineres abarrotados de carne bovina, soja, açúcar, café, entre outros produtos agrícolas, que levam embutido um insumo invisível, cujo valor ultrapassa cálculos estritamente econômicos.

A exportação de águas virtuais – ainda que indiretamente – tende a crescer com a escassez global e o número de conflitos pela água quadruplicando com o péssimo gerenciamento das fontes hídricas, cuja escassez deverá afetar, até 2050, dois terços do mundo. 

Ao lado do petróleo, a água é o mais estratégico dos recursos. Mas, ao contrário do primeiro, ela não possui formas alternativas, sendo imprescindível para o funcionamento das sociedades. Quase 1,5 bilhão de pessoas não tem água potável no mundo, o que faz com que ela seja vista como um tesouro em razão de sua baixa disponibilidade. 

Ao longo da história, os recursos hídricos sempre motivaram disputas. No entanto, o que foi algo em menor grau no passado tornou-se a grande tônica do Século XXI, com um número sem precedentes de disputas generalizadas, envolvendo até mesmo o contrabando de água na Amazônia, fato que foi denunciado pela revista jurídica Consulex. 

Navios-tanque estariam retirando sorrateiramente água do Rio Amazonas, com captação no ponto em que ele deságua no Oceano Atlântico. Estima-se que cada embarcação seja abastecida com 250 milhões de litros de água doce, para engarrafamento na Europa e Oriente Médio. É mais barato tratar águas usurpadas (US$ 0,80 o metro cúbico) do que realizar a dessalinização das águas oceânicas (US$ 1,50).

Bolsas de água são introduzidas no transporte transatlântico no Rio Amazonas. O tamanho dessas bolsas excede ao de muitos navios juntos. A capacidade dos navios-tanques é superior à dos superpetroleiros. As bolsas podem ser projetadas de acordo com necessidade e a quantidade de água e puxadas por embarcações rebocadoras.

A captação é feita na foz do Rio Amazonas ou já dentro do curso de água doce. Somente o local do deságue do rio no Atlântico tem 320 km de extensão e fica dentro do território do Amapá. 

A previsão é de que num período entre 100 e 150 anos, as guerras sejam motivadas pela detenção dos recursos hídricos utilizáveis no consumo humano e em suas diversas atividades, com a agricultura. 

Ou seja, a importância deste reduto natural poderá ser, num futuro próximo, sinônimo de riscos à soberania dos territórios panamazônicos. Isso significa dizer que o Brasil seria um alvo prioritário numa eventual tentativa de se internacionalizar esses recursos, como já ocorre no caso das patentes de produtos derivados de espécies amazônicas. 

As águas amazônicas representam 68% de todo volume hídrico existente no Brasil. Sua importância para o futuro da humanidade é fundamental. Entre 1970 e 1995 a quantidade de água disponível para cada habitante do mundo caiu 37% em todo mundo e, atualmente, cerca de 1,4 bilhão de pessoas não têm acesso à água limpa. Hoje, somente o Rio Amazonas e o Rio Congo, na África, podem ser qualificados como limpos.

As disputas pela água envolvendo nações e civilizações são antigas. O primeiro conflito envolvendo o uso da água que se tem notícia ocorreu há cerca de 4.500 anos em duas cidades-estados da Mesopotâmia – Umma e Lagash – que disputavam áreas que abrangiam os rios Tigre e Eufrates para irrigação. Esses mesmos rios protagonizam uma tensão entre Turquia, Iraque e Síria.

Recentemente, a disputa pela água vem encontrando atuações até de grupos terroristas. No Iraque e na Síria, o Estado Islâmico vem atuando no sentido de tentar controlar algumas fontes de água, pois sabe que isso lhe dará uma maior vantagem em termos geopolíticos e bélicos. Com o controle da água – principalmente no caso do Iraque –, torna-se completamente possível impor várias sanções e estabelecer um amplo controle da área.

Em 1967, durante a ‘Guerra dos Seis Dias’, o Estado de Israel, então recém-criado, expandiu suas fronteiras e ocupou várias áreas de países adjacentes no Oriente Médio. Uma delas, as Colinas de Golã – então pertencentes à Síria –, além de apresentarem uma posição geográfica estratégica, abrangendo as nascentes do Rio Jordão, muito utilizado para a irrigação no local. 

Israel, inclusive, controla os recursos hídricos subterrâneos em suas áreas e na Cisjordânia, sendo frenquentemente acusado de impedir que os palestinos utilizem os mesmos em uma articulação notadamente estratégica. Vale lembrar que Israel, Jordânia e Palestina reúnem 5% da população mundial e apenas 1% das reservas hídricas.

Na África, tensões e conflitos acontecem em torno da posse e controle de recursos hídricos. Na bacia do Rio Nilo, há uma disputa por sua maior utilização por parte de Egito, Etiópia, Uganda e Sudão, o que pode transformar-se em um conflito generalizado de graves impactos caso acordos não sejam celebrados. O mesmo caso acontece com a bacia do rio Okavango, que abrange áreas territoriais de Angola, Botswana e Namíbia.

No continente africano, 44 milhões de pessoas que vivem em áreas urbanas não têm acesso à água. Das que vivem em zonas rurais, 53% (256 milhões) não contam com serviços de abastecimento de água. No total, 62% dos africanos não têm água. No que se refere a saneamento, 46 milhões não contam com este serviço nas zonas urbanas e 267 milhões na área rural. Ao todo, são 313 milhões sem infraestrutura de saneamento.

Na América Latina, 78 milhões de pessoas não têm acesso à água, o que corresponde a 15% da população. Em saneamento, a carência de serviço atinge 22% da população e 51% dos moradores rurais. Ao todo 117 milhões de latinoamericanos e caribenhos não têm acesso a serviços de saneamento.

A água ocupa 70% (cerca de ¾) da superfície da Terra. A maior parte, 97%, é salgada. Apenas 3% do total é água doce e, desses, 0,01% vai para os rios, ficando disponível para uso. O restante está em geleiras, icebergs e em subsolos muito profundos. Ou seja, o que pode ser potencialmente consumido é uma pequena fração.