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domingo, 8 de dezembro de 2019

Euclides da Cunha: como pensar um Brasil despido de preconceitos


Antonio Carlos Lua

O jornalismo tem a capacidade de fazer a crítica social como nenhuma ciência humana, apresentando fatos, verdades políticas e potencialidades da sociedade, ajudando-nos a pensar o Brasil, um país que nunca amadureceu nem como Nação nem como democracia, sendo algo que nunca se realiza, nunca termina, nunca se concretiza, criando, com isso, um ambiente de tensão, pesadelo e violência. 

A crítica jornalística é importante para a compreensão política e social do Brasil, país racista que recalca continuamente o próprio racismo, com efeitos perversos, colocando-se na ponta de lança da vanguarda do retrocesso, diante dos paradigmas de violência sob o qual vive sua população.

Há séculos, o jornalismo relaciona – de forma híbrida e tensa – a política, a linguagem e a materialidade, para resgatar os fatos marcantes na história do país, a exemplo do livro-reportagem ‘Os Sertões’, do jornalista e escritor Euclides da Cunha, que até hoje continua fazendo perguntas ao Brasil e ao mundo.

A interpretação jornalística que Euclides da Cunha faz da identidade brasileira tornou-se, verdadeiramente, um clássico e, como tal, sofreu e sofre múltiplas interpretações. Obviamente, a cada nova interpretação, novas características de sua obra são postas em evidência. 

No livro-reportagem ‘Os Sertões’, Euclides da Cunha estabelece uma compreensão da realidade brasileira a partir da oposição entre litoral e interior. 

Para ele, dois tipos de mestiços existiam no país: o do litoral  que vivia sob uma “civilização de empréstimo”  e o do interior, que mesmo se afastando dos parâmetros tomados como certos pelo eurocentrismo científico do final do Século XIX, apresentava o que mais faltava aos brasileiros do litoral: o vínculo à terra. 

O sertanejo torna-se, antes de tudo, um forte, por estar harmonizado com o sertão, por defendê-lo na luta e não abandoná-lo na seca. Deste modo, além da oposição entre litoral e o interior, Euclides da Cunha procura interpretar o Brasil profundo a partir das lentes etnocêntricas do cientificismo de sua época. 

Ele soube, com maestria, aglutinar esteticamente a contribuição de variados conhecimentos. É neste ponto que entra sua riqueza estilística e literária.‘Os Sertões’ – que tornou-se um livro-estuário – pode ser entendida como uma resposta à questão sobre quem é o brasileiro. 

Pela lógica de Euclides da Cunha, o sertão é o cerne do interior do Brasil e a essência da Nação. Quando ele fala do jagunço, está falando, de alguma forma, de todos os habitantes do interior, dos lugares mais recônditos e inóspitos. 

Euclides da Cunha foi um homem do seu tempo. Nesse sentido, deve ser entendida a famosa referência que ele fez sobre a força "motriz da história”. 

A ideia remete a uma percepção universalista, racionalista, teleológica e ontológica do tempo histórico. Remete também à tradição iluminista, à crença da época que dizia que a História tinha um “H” maiúsculo, tinha um rumo único, etapas de desenvolvimento bem estabelecidas e universais.

As dualidades tradição/modernidade e objetividade/subjetividade não estão dissociadas na obra de Euclides da Cunha acerca da nacionalidade brasileira. Elas aparecem em dois planos: o individual e o coletivo. Ou seja, o do intelectual, do autor, e o do discurso sobre a Identidade Nacional. 

No primeiro, o individual, é fundamental perceber que Euclides da Cunha muda seu posicionamento político em relação à Guerra de Canudos, conforme ele vai se aproximando do local da Batalha e conhecendo de perto o sertanejo e o sertão. 

Seu espanto pela força indômita do jagunço, pela beleza do sertão em época de chuvas, pela diferença radical entre aquelas paragens e o centro do país vai alterando gradualmente suas certezas. 

A subjetividade de Euclides da Cunha interfere, então, profundamente na certeza do intelectual que era. No meio do caminho entre Salvador e Monte Santo, ele se ajoelha e reza num povoado simples, ao lado dos sertanejos, prenhes daquela religiosidade simples e sincrética que lhe é própria. 

Euclides da Cunha desnudou os limites da objetividade universal, e, portanto, do próprio conteúdo emancipatório da ciência, Quando afirmou que a Guerra de Canudos foi um crime, ele apontou para um problema epistemológico sério que só depois da Segunda Guerra Mundial o Ocidente começou a encarar. 

Afinal, o genocídio de Canudos foi feito em nome do Progresso Nacional, contra rebeldes monárquicos inventados, onde os liderados por Antonio Conselheiro tiveram apenas o papel de "bucha de canhão", pois foram construídos, na época, como os inimigos do país. 

Euclides da Cunha contribuiu para o debate sobre os principais dilemas que envolvem a formação histórica do Brasil e até hoje nos leva a questionar como pensar o Brasil despido de preconceitos. 

Este ainda é o nosso desafio e foi também o do jornalista e escritor Euclides da Cunha, que fez de ‘Os Sertões’ uma obra matricial para pensarmos a cultura brasileira, inaugurando a percepção desta tensão epistemológica e cultural.

domingo, 24 de novembro de 2019

Gabriel García Márquez: a literatura e o jornalismo como lugar de encontro


Antonio Carlos Lua

Quando o jornalista colombiano, Gabriel García Márquez, lançou – há meio século – o romance ‘Cem Anos de Solidão’, ainda não era reconhecida no mundo a grande matriz cultural que constitui a América Latina. 

O livro – uma das melhores obras hispano-americanas – criou paradigmas de identidade, contribuindo para a reinvenção de um continente plural, que agrega circunstâncias múltiplas e abarca uma gama considerável de culturas e práticas sociais.

Sobre a narrativa da obra mais célebre do jornalista colombiano, a primeira premissa a ser pensada é a que se refere à circularidade, com os fatos sendo sempre uma repetição com nova roupagem de fatos anteriores. Os personagens são espelhados e multiplicados uns nos outros. As histórias são releituras umas das outras.

O romance permite uma visão privilegiada sobre a Colômbia, com a exposição clara do imaginário e da simbologia que perpassa a consolidação do país, onde a vida é uma luta pelo mínimo necessário e a fratura que divide as classes pobres das elites que as desprezam.

‘Cem Anos de Solidão’ é uma busca pela identidade latino-americana, revelando sua história, decifrando suas origens, tendo a literatura e a arte como lugar de encontro. É um livro extraordinário, que exerce uma espécie de encantamento permanente, com uma narrativa impregnada de duplicidades e antagonismos. 

A crítica literária cunhou a expressão “realismo mágico” ou “realismo fantástico”, para classificar “Cem Anos de Solidão”, cuja principal característica é lidar com situações inusitadas e, até, irreais, como se estas fizessem parte do cotidiano. 

Com a obra, Gabriel García Márquez – vencedor do Prêmio Nobel da Literatura, em 1982 – fez eclodir a bomba literária na América Latina. Foi a partir do livro que a literatura mundial começou a enxergar os escritores latino-americanos, abrindo as portas da cultura ocidental.
‘Cem Anos de Solidão’ é um marco literário sem precedentes e se firmou como clássico, não apenas da literatura latino-americana, como também da literatura mundial. Publicado em 1967, foi o livro mais lido do chamado boom da literatura latino-americana. 

Sedutora pelo enredo, a obra – estudada pela crítica literária em numerosos ângulos e facetas – relaciona jornalismo, literatura, lendas e mitos da América Latina, mostrando que no universo cultural do continente o real e o irreal convivem e se complementam.

A paisagem estabelecida por Gabriel García Márquez no livro é a da coleção de histórias, lendas e mitos do continente latino-americano. Dialogando com magia, ele  busca na cultura popular os elementos de sustentação literária.

A obra é uma releitura magistral da relação que a Colômbia construiu historicamente dentro da ideia de Nação que as elites andinas representadas por Bogotá se identificavam. Nela encontramos lado a lado episódios que poderiam ser chamados de “realistas” no sentido tradicional do termo e que poderiam estar presentes em qualquer romance realista.

‘Cem Anos de Solidão’ continua sendo fundamental na criação de uma identidade da Colômbia, onde existe hoje um forte movimento cultural que se deve, em grande medida, a obra de Gabriel Garcia Márquez. Assim, podemos dizer que se Cervantes fundou a Espanha, Gabriel García Márquez fundou a Colômbia.
Além de ‘Cem Anos de Solidão’, o jornalista Gabriel García Márquez – um dos escritores mais admirados e traduzidos, com mais de 40 milhões de livros vendidos em 36 idiomas – é autor de obras clássicas como ‘O Amor nos Tempos do Cólera’, ‘Ninguém Escreve ao Coronel’ e ‘Crônica de uma Morte Anunciada’. 

Gabriel García Márquez nasceu em Aracataca e criou um território eterno chamado Macondo, onde convivem imaginação, realidade, mito, sonho e desejo. 

Assim como o escritor Guimarães Rosa e o ensaísta, escritor e músico cubano, Alejo Carpentier, Gabriel García Márquez tenta em suas obras retratar e estabelecer a cultura popular, sendo este o elemento de legitimidade de suas narrativas. 

Tanto Gabriel García Márquez como Guimarães Rosa e Alejo Carpentier fizeram viagens para dentro. Em fevereiro de 1952, Gabriel García Márquez faz a sua “mítica viagem” à Aracataca, povoado colombiano onde nasceu e de onde teria surgido sua vocação de escritor.

Em junho do mesmo ano, ou seja, três meses depois, Guimarães Rosa fez uma longa viagem pelo sertão. Nessa viagem ele desenvolveu a pesquisa para a produção do livro ‘Grande sertão: veredas’ e outras obras, a exemplo do ‘Buriti’. 

Em janeiro de 1953, o cubano Alejo Carpentier termina o seu mais importante livro, ‘Los pasos  perdidos’, obra que narra uma viagem ao interior de um país sul-americano por um artista frustrado, que teve a oportunidade de revitalizar sua força criadora. 

No livro ‘Buriti’, de Guimarães Rosa, Miguel retorna ao sertão em busca de seu passado e encontra o amor em Maria da Glória depois de uma vida vazia na cidade. 

Ou seja, dessa forma, tanto Gabriel García Márquez como, Guimarães Rosa e Alejo Carpentier colocam a viagem a razão de ser de suas obras,

Gabriel García Márquez nem sempre foi uma unanimidade como nos parece hoje. Partes de sua obra foram censuradas na antiga União Soviética, onde passou uma temporada escrevendo uma série de reportagens sobre a vida no bloco comunista, na década de 1950. 

A tradução feita nos Estados Unidos passou inicialmente despercebida, e, nos países árabes, como o Irã, os livros eram vendidos no mercado negro, pois não havia permissão para publicá-los. Até mesmo na Colômbia, ele inicialmente não foi uma unanimidade. 

Amigo de Fidel Castro, ele não era visto com bons olhos pelo governo da Colômbia, o que dificultou a aceitação da obra pelo particular posicionamento que o relacionava com o pensamento utópico de esquerda, que depois da Revolução cubana, começava a ter grande acolhida em todos os países latino-americanos e caribenhos.

Por conta de sua forte relação com a esquerda, Gabriel García Marquez teve que sair da Colômvia, na década de 1970, protegido diplomaticamente pela embaixada do México, depois da emissão de uma ordem de prisão contra ele, na qual era acusado de cooperar com a guerrilha e apoiar as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farcs), criada em 1964 numa ação política do Partido Comunista Colombiano. 

A profissão de jornalista – exercida durante muitos anos por Gabriel García Márquez – fez com que ele testasse em seus livros muitas de suas técnicas narrativas de documentário, com longas reportagens escritas em forma de romance, como ‘Notícias de um sequestro’, ‘A aventura de Miguel Littín clandestino em Chile’,’Relato de um náufrago’, entre outras publicações do jornalista.

São textos híbridos, formados pela mistura de romance e reportagem. Contudo, não se pode esquecer que Gabriel García Márquez se formou na escola jornalística norte-americana da qual saíram também nomes como o do escritor e jornalista norte-americano, Truman Capote. 

Gabriel García Márquez – que faleceu em 17 de abril de 2014 – partia da ideia de que a reportagem é uma construção linguística, que pretende ter como referencial a “realidade”. Mas como construção linguística, estaria sujeita mais à própria linguagem que aos imperativos do fato.

Gabriel García Márquez iniciou a carreira de jornalista no “El Espectador', o jornal mais importante da Colômbia. Dizia sempre que ser repórter era a melhor profissão do mundo. Ele justificava isso a partir da ideia de que o repórter escuta as histórias alheias e tem por obrigação contá-las a outros.

Ponto de vista

‘Cem anos de solidão’ é um livro sedutor pelo enredo, com várias gerações se sucedendo. É um romance com sopro épico. A obra dá notícia de um mundo fenecido, um mundo soterrado pela modernização das relações de mercado, mundo que no romance aparece na forma de uma consciência irracional, ou pré-racional, presente em grande parte dos personagens. 

Cem anos de solidão contribuiu para modificar a visão que o restante do mundo tinha da América Latina. Ele fez parte do "boom" dos anos 1960 e 1970, quando grandes escritores latino-americanos, particularmente hispano-americanos, entraram em circulação na Europa e nos Estados Unidos, algumas vezes em tradução para o francês e o inglês. 

Foi uma revelação para os europeus cansados de narrativas pálidas, autocentradas, ligadas a um mundo solipsista, de indivíduos sem rumo vivendo em cidades opressivas. 

Escritores como Gabriel Garcia Márquez sopraram nas brasas do romance e deram um novo fôlego para a narrativa ocidental, enquanto narravam as mazelas do continente americano, contando as histórias locais que estavam soterradas, que nunca tinham encontrado voz literária, porque se tratava de imaginário muito ligado ao mundo indígena, de gente miserável que não se tinha integrado à cidade moderna.

Há características que aproximam a obra ‘Cem anos de solidão’ de sagas como ‘O tempo e o vento’, de Erico Veríssimo. Há, em primeiro plano, uma multiplicidade de personagens, cujas histórias são contadas por várias gerações. 

Sob esse ponto de vista, pode-se fazer uma aproximação entre o fato de García Márquez compor a cidade de Cem anos de solidão, Macondo (que já havia aparecido, por exemplo, na obra O enterro do diabo), com características da cidade onde nasceu, Aracataca, assim como em O tempo e o vento pode-se estabelecer uma ligação entre Santa Fé e Cruz Alta.

Essas questões têm bastante relação. Um escritor e roteirista brasileiro chamado Doc Comparato  relata que García Márquez conheceu O tempo e o vento e admirou muito o modo como Erico Verissimo tinha equacionado o relato das várias gerações e tempos. 

Ele teria afirmado que depois da leitura do clássico de Erico é que ele teria encontrado o caminho para escrever Cem anos. Quanto ao aspecto biográfico, seguramente há algo de depoimento verdadeiro nas cidades imaginadas pelos dois grandes narradores.


O livro Cem anos de solidão é como uma saga familiar profundamente histórica que dá notícia interna do funcionamento da opressão e do funcionamento do choque radical entre um mundo que funciona pela lógica pré-mercantil e outro em que essa regra já está no comando, tudo isso contado com maestria, misto de lirismo, caráter épico e humor.


quarta-feira, 20 de novembro de 2019

Zumbi: símbolo de luta e resistência


Antonio Carlos Lua

O Dia da Consciência Negra, comemorado nesta quarta-feira, 20 de novembro – data da morte em combate de Zumbi dos Palmares – é o momento para rememorar as conquistas, reconhecer os avanços e refletir sobre os desafios e obstáculos ainda a superar na luta por uma sociedade mais equânime, capaz de reconhecer a sua origem e a sua história a partir da herança cultural negra

Herói negro genuinamente brasileiro que teve sua trajetória negligenciada durante muito tempo pela historiografia oficial, Zumbi foi líder do Quilombo dos Palmares, comunidade formada na Serra da Barriga, em Alagoas, que representa um dos mais significativos movimentos de resistência e luta contra a opressão.

Zumbi nasceu com o corpo e o espírito livres da escravidão. Com poucos dias de vida ele é levado por tropas militares após um ataque à sua comunidade. Recém-nascido, Zumbi é entregue a um padre que o batiza com o nome de Francisco. O religioso o educou, o alfabetizou e ensinou-lhe Latim. Considerado muito inteligente pelo padre, o menino torna-se coroinha aos dez anos.

Aos 15 anos de idade Francisco foge para o Quilombo dos Palmares, assumindo o nome africano de Zumbi. Passa então a lutar por liberdade à frente de um exército formado por negros fugidos, índios e brancos pobres. 

Em sua trajetória de lutas está Dandara dos Palmares, sua companheira de vida e de combate na defesa do quilombo. Dandara se tornou ícone da força feminina na resistência contra a escravidão, representando a importância do papel das mulheres na história.

Após décadas de combates e vitórias, o Quilombo dos Palmares foi aniquilado pelo forte armamento de fogo e grande contingente militar. No último confronto, em 20 de novembro de 1695, Zumbi foi morto lutando.

domingo, 17 de novembro de 2019

O pecado original da nossa República


Antonio Carlos Lua

Em 15 de novembro de 1889, um grupo de militares liderados pelo marechal Manuel Deodoro da Fonseca destituiu o imperador Pedro II e instalou um governo provisório republicano. 

Unindo-se aos latifundiários contrários à abolição, os militares transformaram os Estados em feudos dos coronéis da política e colocaram o Brasil sob a tutela do Estado por quase um Século. 

Ressentidos com o fim da escravidão, eles instalaram um sistema político arcaico e quase feudal, transformando o Brasil numa vulgar República de chefetes de aldeia e caudilhos regionais

Embora a historiografia tradicional ainda aponte que o marechal Manuel Deodoro da Fonseca foi o líder do movimento, sabe-se que, de fato, a República foi proclamada na Câmara-Geral do Rio de Janeiro, então capital do Brasil. Esse teria sido apenas o ponto alto de um longo movimento republicano que tensionava o Império. 

A verdade é que a celebração dos 130 anos da instalação da República não é uma festa plena. Vivemos numa grande República que ainda não pratica valores republicanos dentro do lastro dos princípios de igualdade, que nunca foi um valor, uma qualidade extensiva para o país.

Passados 130 anos da Proclamação da República, permanece um sentimento de mal-estar, de um projeto que ainda não deu certo, mesmo com os vários movimentos republicanos – Revolução Pernambucana, Guerra de Canudos e Sabinada – que tentaram trazer um legado para o Brasil. 

Na Revolução Pernambucana – movimento que eclodiu no dia 6 de março de 1817 no Estado de Pernambuco – quatorze revoltosos foram executados pelo crime de lesa-majestade, a maioria enforcados e esquartejados. Outros foram fuzilados. Centenas morreram em combate ou na prisão. 

A Guerra de Canudos ocorreu entre 1893 e 1897. Foi o maior movimento de resistência à opressão dos grandes proprietários rurais. Houve um verdadeiro massacre, com o extermínio de mulheres, idosos e crianças. Muitos foram degolados durante a invasão com o bombardeio do Exército. Quase não restaram sobreviventes. 

A Sabinada foi um movimento contrário à Regência, ocorrido entre 1837 e 1838, na Bahia, que já havia sido palco da Conjuração Baiana, em 1798, da Federação dos Guanais, em 1832, e da Revolta dos Malês, em 1835. A província já tinha um histórico de revoltas e lutas. 

O médico e jornalista, Francisco Sabino Álvares da Rocha Vieira, foi o principal mentor da revolta, que não desejava a independência da província da Bahia, mas sim a instalação de uma República independente do Império Brasileiro até o fim da Regência.

Além da Revolução Pernambucana, Guerra de Canudos e Sabinada, outros conflitos ainda ocorreram como as Guerrilhas do Tocantins, a Revolta da Armada, a Revolução Federalista, a Guerra do Contestado, as “revoluções” em 1923, 1924, 1930 e 1932 e os levantes dos comunistas e dos integralistas, numa média de um confronto militar a cada cinco anos. 

O certo é que com a Proclamação da República, em 15 de novembro de 1889, a espada de Dom Pedro mudou de mão, mas o perfil liberal inspirador das nossas primeiras Constituições – pouco amenizado em 1934, com o reconhecimento da função social da propriedade – não ficou ausente nem mesmo na Constituição de 1988. 

Isso pode ser constatado examinando-se, com cuidado, as muitas Emendas Constitucionais que a nossa Carta Magna já sofreu e o padrão predominante da sua interpretação e aplicação..

Se, antes de 1988, havia fidelidade ideológica ao liberalismo, por parte da Administração Pública, o fato de ele agora ser antecedido pelo prefixo “neo”, revigorou-o de modo desastroso. 

No artigo 170 da Constituição Federal vigente está escrito que “a ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por finalidade assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da Justiça Social”. 

A realidade, no entanto, vem atestando que a liberdade da iniciativa econômica se refletiu em liberdade garantida apenas para as coisas, as mercadorias. Dogmática, mercadocêntrica e isenta de questionamento, ela engoliu a valorização do trabalho, a segurança prevista para a existência digna dos cidadãos e não tem nenhum interesse por Justiça Social.

Isso pode ser constatado na preocupação dos governos brasileiros com as políticas sociais compensatórias. Elas visam compensar uma desigualdade social criada e reproduzida pela liberdade que sequestra as demais – a do poder superior ao do Estado, no caso, o capital. 

Reformas importantes e capazes de modificar a sua estrutura, como a agrária, a tributária e a política – indispensáveis à liberdade de todos – só caminham à custa de remendos novos em pano velho.

Ao primeiro impacto o pano se encarrega de aumentar o rasgão da nossa República, embora não faltem advertências contra essa situação, convenientemente ignoradas para não permitir libertações de muitos, em nome de “liberdades” já impostas por poucos. 

domingo, 10 de novembro de 2019

João Cabral de Melo Neto e o emblema da miséria nordestina


Antonio Carlos Lua

João Cabral de Melo Neto – poeta e escritor que viveu em luta contra as próprias emoções – tentou domar, secar, objetivar os sentimentos com a faca das palavras, com uma poesia contida, dura, sobrecarregada de dúvidas, hesitações e tensões. 

Com a alma cheia de conflitos, João Cabral de Melo Neto sempre foi um poeta impessoal. Sem poemas autobiográficos, ele deixou – em certo momento da sua vida – de ler poemas porque não suportava mais a emoção dos versos. 

Lutou muito para se conter, para se esconder, para não se confessar, para não falar de si, mas – contra sua vontade – deixou sempre muita coisa escapar. Esse aspecto de luta, de conflito extremo, é a origem da força da poesia de João Cabral de Melo Neto. 

Embora tenha escrito um poema em que cita Clarice Lispector como alguém que gostava de falar na morte, ele também tratava da questão em muitos de seus poemas, mostrando pontos em comum com a escritora, embora os dois se mostrassem, aparentemente, muito diferentes, antípodas. 

Na verdade, João Cabral de Melo e Clarice Lispector se encontram na mesma paixão pela palavra. Para Clarice, a literatura era uma espécie de religião sem Deus. Para Cabral, era uma carpintaria, uma engenharia. Para ambos, a poesia foi a coisa mais importante de suas vidas. Essa entrega absoluta à literatura conduziu aos grandes livros que os dois escreveram.

João Cabral de Melo Neto falava dos males – severidade, repressão íntima, fobias – que ficaram de sua educação com os irmãos maristas. Declarava-se ateu – embora ressaltando que acreditava no inferno. Melhor pensar que, na verdade, ele temia o inferno, isto é, o castigo. 

A melancolia ficou encoberta durante quase toda a vida de João Cabral de Melo Neto, que, indiscutivelmente, foi um dos maiores poetas brasileiro do Século XX. Em tempos de retirantes globais, podemos citar “Morte e Vida Severina” como sua obra mais marcante e significativa para a literatura brasileira.

Não há como fazer uma leitura de “Morte e Vida Severina” sem ter em mente o contexto social e econômico da época em que a obra foi escrita (1954/1955). No Nordeste da década de 1950, a morte era uma força precoce e devastadora. 

Calor, seca, desnutrição, pobreza, concentração fundiária, coronelismo. Este é o mundo árido e brutal onde o personagem Severino empreende sua epopeia trágica enunciada conforme a tradição medieval pelo escritor, que concebeu versos preferencialmente heptassílabos (redondilha maior), variando vocábulos regionais com outros de registro erudito. 

João Cabral de Melo Neto nasceu em Recife (Pernambuco) e passou sua infância nos engenhos de açúcar de propriedade de sua família. Neste ambiente arraigado na tradição fundiária e econômica do Nordeste, costumava ler cordéis para os empregados, impregnando-se de referências próprias do ambiente regional. 
A geografia, os traços regionais e as condições sociais dos anos 1950 foram decisivas para a constituição da poesia de João Cabral de Melo Neto. 

João Cabral era diplomata. Trabalhando, em Londres, em 1959, durante o governo de Getúlio Vargas, surgiu uma denúncia de que ele e outros quatro colegas estavam implantando uma célula comunista no Itamaraty, época em que o Partido Comunista do Brasil estava na ilegalidade. 

Um despacho presidencial de março de 1953 afastou ele e os outros companheiros de trabalho do serviço diplomático. João Cabral retornou para Recife, a fim de trabalhar no escritório do pai e garantir o sustento da família. Ele retomou a carreira diplomática em 1954, depois de recorrer ao Supremo Tribunal Federal. 

Nesse intervalo de tempo, encontrou Maria Clara, que era filha de Aníbal Machado, seu amigo. Ela pediu que o poeta escrevesse um auto de Natal para encenar com o seu grupo. Assim surgiu ‘Morte e Vida Severina’. Maria Clara, porém, leu o texto e o devolveu, alegando que não teria como montá-lo. 

Na época, o editor José Olympio queria lançar a primeira coletânea do poeta. Como “Morte e Vida Severina’ era extensa, o autor retirou as marcações próprias da montagem teatral e o poema integrou o livro ‘Duas águas’, lançado em 1956, sendo muito bem acolhido pelos escritores, intelectuais alinhados ao pensamento de esquerda. 

O também poeta e diplomata Vinícius de Morais ficou maravilhado com a história de Severino. A princípio, João Cabral ficou contrariado, pois sua pretensão era alcançar com sua poesia os analfabetos que ouviam cordel na feira de Santo Amaro, em Recife – o que não deixava de ser um tanto ingênuo, tendo em vista a elaboração formal do poema. 

Dez anos depois da estreia editorial, o texto ganhou mais projeção com a montagem teatral dirigida por Silnei Siqueira. Era 1966, quando João Cabral de Melo Neto recebeu a carta do jovem diretor solicitando autorização para montar um espetáculo em que ‘Morte e Vida Severina’ seria musicado por outro estreante, o compositor e cantor Chico Buarque de Holanda. 

No livro ‘A literatura como turismo’ (Companhia das Letras), a cineasta Inêz Cabral, filha do poeta, diz que ele ficou preocupadíssimo ao saber que sua poesia ganharia música. Porém, nunca se sentiu no direito de cercear qualquer criação nascida de seu trabalho.

Em 2007, na apresentação que fez da edição de ‘Morte e Vida Severina’, lançada pela Editora Alfaguara, o escritor, dramaturgo, letrista e poeta paraibano, Bráulio Tavares, aponta que, para Gilberto Freyre, havia pelo menos dois nordestes: o agrário e o pastoril; o litorâneo da cana-de-açúcar e o sertanejo das fazendas de gado. 

Estabelecendo uma lógica paralela, Bráulio Tavares propôs que, a partir da poesia de João Cabral, também se pode identificar dois Nordestes: o seco e o úmido; o da pedra e o da lama; o que é mumificado vivo pelo sol e o que é apodrecido pelo mar. 

‘Morte e Vida Severina descreve a caminhada do retirante Severino que percorre a linha do rio até Recife, o mangue e o mar, a fim de escapar da seca. Na primeira obra, a voz que emana do texto é do poeta. Na segunda, do próprio rio, que trata de si mesmo em primeira pessoa. São diversos personagens espalhados ao longo do leito que se enunciam. 

O título do poema já lança uma senha para se entender o universo descrito, ao inverter o sintagma vida e morte – a morte precede a vida – e ao adjetivar o substantivo próprio Severino. 

A esposa de João Cabral de Melo Neto, Stella Maria Barbosa de Oliveira, morreu em 1986. Depois disso, ele se casou com a poeta Marly de Oliveira. Durante toda a sua vida sofreu com intermitentes dores de cabeça, tanto que a aspirina era um traço distintivo em sua vida e mote para alguns textos. 

Ao final da vida, estava cego e deprimido. Avesso à religiosidade – mesmo que este universo seja latente em sua obra mais conhecida, que já ganhou mais de 100 edições – conta-se que, quando morreu, em 1999, estava de mãos com Marly, orando.

segunda-feira, 28 de outubro de 2019

Uma pedra irrevogável no caminho da poesia brasileira


Antonio Carlos Lua 

Poeta, contista e cronista de vários jornais brasileiros, Carlos Drummond de Andrade  – um dos mais influentes poetas do Século XX – foi o expoente da segunda geração do Modernismo brasileiro, traduzindo em sua obra a realidade social. 

Se a vocação para o jornalismo não pôde ser inteiramente cumprida, ela esteve sempre presente na trajetória de Drummond, desde a vida no interior de Minas Gerais até a notoriedade nos jornais ‘Correio Manhã’ e ‘Jornal do Brasil’, ambos do Rio de Janeiro.

Em 1945  aceitando convite do líder político de esquerda, Luís Carlos Prestes  ele assumiu a editoria do jornal do Partido Comunista Brasileiro (PCB), ‘Tribuna Popular’, do qual saiu contrariado com algumas imposições. 

A estreia de Drummond no jornalismo foi precoce. Ele era ainda estudante quando publicou seus primeiros textos em jornais de pequena circulação. Mais tarde, a imprensa diária lhe garantiria parte do sustento. Em 1921, no jornal ‘Diário de Minas’, expôs ideias renovadoras, com textos sobre o novo ideário literário e intelectual.

Dono de vasta obra literária, Drummond apoiou vários poetas brasileiros, incluindo João Cabral de Melo Neto, que o considerou a árvore, à sombra da qual muitos poetas cresceram no Brasil. 

A poesia de Drummond interage com diversos tipos de dicção, desde a mais próxima do coloquial (Alguma poesia, José, Brejo das almas), passando por uma linha mais social (A rosa do povo) e por outra mais hermética (Claro enigma, A vida passada a limpo e Lição de coisas), sem, no entanto, serem rigidamente separadas, como observam vários críticos em seus estudos sobre o poeta. 

Muitos de seus poemas ficaram populares, sobretudo alguns versos: “Quando nasci, um anjo torto; desses que vivem na sombra / disse: Vai Carlos! ser gauche na vida”;“E agora, José?”, “Tinha uma pedra no meio do caminho”.

Até hoje, sua poesia traz constantemente o choque com a modernidade e uma alteridade, que se reproduz em poemas amorosos e metalinguísticos. Boa parte da fortuna crítica de Drummond deve-se ao interesse das questões mais vivas, formuladas com tanta intensidade, que o poeta disseminou em seus discursos poéticos. 

A modernidade de Drummond não escamoteou os lados atrasados da sociedade brasileira. Ele soube tratá-los com imaginação e se relacionar criticamente com eles. 

No curso da Segunda Guerra, quando aflorou à consciência artística a necessidade de participação nos acontecimentos, Drummond não tomou o partido fácil de escolher entre os dois polos. Pelo contrário, fez do seu engajamento uma tensão permanente entre puro e impuro, poético e antipoético, entre centramento lírico e abertura do poema ao mundo.

São essas tensões que alimentam ‘A rosa do povo’, colocando sob suspeita a viabilidade de uma ou outra forma de expressão. Dessa maneira, Drummond experimentou as possibilidades da linguagem poética até o limite de suas forças expressivas. 

Drummond acompanhou e registrou os acontecimentos nacionais e internacionais mais marcantes de seu tempo. É o passado que ainda vive subjetivamente no presente, invadindo ou embaçando o olhar que se dirige ao mundo, tendo uma força de revelação inegável para melhor compreendermos o movimento modernista no Brasil. 

Mesmo sendo um poeta ligado ao seu passado patriarcal, assumiu posições socialistas lúcidas e sempre atentas às disparidades da sociedade brasileira. É difícil dizer que Drummond escreveu realmente algum poema de amor. Talvez tenha usado os temas amorosos para revelar a condição humana em sua finitude e efemeridade. 

Praticou a crítica literária e artística e o ensaísmo à sua maneira. Sua obra poética é uma indagação permanente sobre a poesia, o poema e a linguagem, sempre inserida no quadro histórico em que o poeta viveu. 

Com uma obra fervilhando de análises, Drummond problematizou os impasses do século XX e instalou-se como pedra irrevogável no meio do caminho da poesia brasileira. 

Numa entrevista concedida ao jornalista Pedro Bial o biógrafo de Drummond, José Maria Cançado, chegou a dizer que o poeta era imbiografável. De fato, a biografia, mesmo de um falecido, está sempre em movimento, em gestação, crescendo no imaginário alheio. Enquanto houver escrita e memória, as coisas que se foram voltarão sempre. 

No livro ‘O dossiê Drummond’ (Editora. Globo/1990), tem uma declaração curiosa de Carlos Drummond de Andrade feita numa entrevista concedida ao saudoso jornalista da Rede Globo, Geneton Moraes. 

Ao ser perguntado por Geneton sobre os versos de sua autoria “e como ficou chato ser moderno. Agora serei eterno!”, Drummond respondeu: “Isso, evidentemente, é uma brincadeira. Não tenho a menor pretensão de ser eterno. Pelo contrário: tenho a impressão de que daqui a 20 anos – e eu já estarei no Cemitério São João Batista – ninguém vai falar de mim, graças a Deus. O que quero é paz”. Seu pedido, obviamente, não foi atendido e ele continua vivo, vivíssimo. 

domingo, 6 de outubro de 2019

Vícios históricos


Antonio Carlos Lua

A Constituição Federal – lei fundamental suprema do país, que serve de parâmetro de validade a todas as demais espécies normativas, situando-se no topo do ordenamento jurídico – está completando 31 anos de existência, exercendo nesse período uma influência marcante em todos os ramos do Direito. 

A atual Carta Magna – que revogou antigas orientações constitucionais que regravam um Estado autoritário – foi promulgada simbolizando a liberdade democrática, com ênfase na soberania, cidadania, dignidade da pessoa humana, valores sociais do trabalho e da livre iniciativa e o pluralismo político. 

As mudanças que ocorreram ao longo desses 31 anos exigem, no entanto, uma avaliação. Assim, será possível saber se as cláusulas pétreas – fundamentais para o cidadão e para a sociedade – ainda continuam sendo o núcleo fundamental do nosso ordenamento jurídico, e se as perspectivas otimistas que existiam na época da Assembleia Nacional Constituinte foram, de fato, consolidadas. 

Nos deparamos com algumas conclusões desanimadoras. A atual Carta Magna foi a que mais sofreu alterações com as reformas de Estado, capitaneadas pela onda neoliberal, que se abateu inclusive sobre os direitos previdenciários, após mais de três décadas do início do processo de redemocratização do país. 

As garantias constitucionais não estão sendo respeitadas. A violência, a injustiça social e a corrupção se agravaram. O país ainda não conseguiu transformar direitos declarados em direitos efetivos. 

Quando a Constituição foi promulgada, acreditava-se que ela seria o suficiente para transformar a realidade do Brasil. Infelizmente, o país ainda carrega vícios históricos de injustiça social, de absoluta confusão entre o público e o privado. 

É lamentáveis verificar a falta de efetividade das leis brasileiras e admitir que ao longo desse anos o país foi palco de um verdadeiro festival de normas de todos os tipos, a maioria desfavoráveis aos cidadãos. 

São mais de 4,35 milhões de novas regras federais, estaduais e municipais editadas. Das 4,5 milhões de novas normas aprovadas nos últimos 25 anos, 155.954 mil são federais e – além das mais de 70 emendas – incluem duas leis delegadas, 80 leis complementares, 4.762 leis ordinárias, 1.162 medidas provisórias originárias, 5.491 reedições de medidas provisórias, 10.590 decretos federais e 133.793 normas complementares, o correspondente a uma média de 18,57 normas federais editadas por dia. 

A quantidade de regras editadas corresponde a 518 novas normas por dia, ou 776 por dia útil, gerando um emaranhado confuso de assuntos, trazendo instabilidade e insegurança jurídica para os cidadãos brasileiros, que ficam impossibilitados de entender conteúdo das leis, inclusive para saber seus direitos e obrigações. 

No âmbito estadual, foram editadas mais de 1.136.185 normas, sendo 259.889 leis complementares e ordinárias, 376.994 decretos e 499.301 normas complementares. Em média, foram editadas 135,28 normas por dia. Os municípios brasileiros são responsáveis pela edição de 3.061.526 normas, divididas em 542.745 leis complementares e ordinárias, 577.500 decretos, e 1.941.282 normas complementares.

Das 4,35 milhões normas criadas a partir da promulgação da atual Constituição Federal, mais de 275 mil se referem a tributos. Dessas novas normas tributárias, 29,5 mil são federais, 85,7 mil estaduais e 159,8 mil municipais. Chama a atenção a quantidade de taxas e impostos criados e modificados – na maioria dos casos, aumentados – no período.

Foram produzidas mais de 33 normas tributárias por dia, com a edição de 6,1 a cada hora útil. Ocorreram também 15 reformas parciais de natureza tributária, que resultaram na criação de inúmeros tributos, entre eles a Cofins, Cides, CIP, CSLL, entre outros.

Do total de normas editadas, 13,02% (566.847) permanecem em vigor. Atualmente, 20.082 normas tributárias estão em vigor. Cada empresa cumpre, em média, 3.507 normas tributárias. Para realizar o acompanhamento das modificações da legislação, as  empresas gastam cerca de R$ 45 bilhões por ano. Só para o ICMS, existem no país 27 legislações diferentes. 

No Brasil, para ser considerado um especialista em impostos o cidadão deve conhecer pelo menos 30.384 artigos, 91.764 parágrafos e 293.408 incisos.  Nunca o país produziu tantas leis quanto nas últimas duas décadas, muitas delas destinadas à lata de lixo da História por inconstitucionalidade ou irrelevância. 

O fracasso das regras absurdas não inibe a fúria legiferante do Poder Legislativo. Atualmente tramitam no Senado mais de 700 projetos de lei e, na Câmara Federal, mais de quatro mil proposições para criação de normas.

Foram mais de 73 emendas e mais seis emendas de revisão desde a sua promulgação. Para se ter uma ideia, a Carta Magna dos Estados Unidos, que tem 34 artigos e 225 anos, recebeu até agora apenas 27 emendas. 

Diante de tantas e tão extravagantes normatizações resultantes da compulsão na produção de regras legais, as leis essenciais também acabam negligenciadas. Falta senso de objetividade aos legisladores brasileiros, que desconhecem o ensinamento do historiador romano Cícero, para quem “o mais corrupto dos Estados tem o maior número de leis”. 

domingo, 29 de setembro de 2019

É urgente voltar a Marx

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Antonio Carlos Lua

Karl Marx – filósofo, historiador e jornalista – está mais vivo e atual do que nunca. O mundo hoje se parece, surpreendentemente, ao que ele e seu amigo Friedrich Engels prognosticaram no admirável ‘Manifesto Comunista’, conclamando pela união dos produtores de riqueza contra a elite burguesa expropriadora da mais-valia. 

Marx sofreu o destino de todos os grandes gênios, sempre incompreendido pela mediocridade reinante e pelo pensamento encadeado ao poder e às classes dominantes. 

Assim como Copérnico, Galileu, Servet, Darwin, Einstein e Freud, foi perseguido, humilhado e ridicularizado pela pequenez de intelectuais e por políticos complacentes com os poderosos, que repugnavam suas concepções revolucionárias.

Foi por isso que a Universidade cuidou muito bem de fechar suas portas a Karl Marx, Nem ele, nem seu eminente colega Friedrich Engels, jamais ascenderam aos claustros acadêmicos. No entanto, os dois produziram uma autêntica revolução nas ciências sociais. 

Depois de Marx, nem a humanidade nem as ciências sociais voltaram a ser o que eram antes, com a amplitude enciclopédica de seus conhecimentos e a profundidade de sua visão política empenhada na busca de evidências sobre a exploração do trabalho que transforma o homem numa mercadoria coisificada e alienada e sobre a desigualdade social discrepante que cresce de maneira exponencial.

Este sórdido mundo de oligopólios predatórios, de guerras, de degradação da natureza e roubo de bens comuns, da desintegração social, das sociedades polarizadas e de nações separadas por abismos de riqueza, poder e tecnologia é o mundo que Karl Marx antecipou em todos os seus escritos. 

O caráter decisivo da acumulação capitalista – estudada como ninguém mais em “O Capital” – era negado por todo o pensamento da burguesia e pelos governos, que até hoje pensam equivocadamente que a história é movida pela paixão dos grandes homens, pelas crenças religiosas, pelos resultados de batalhas heroicas ou imprevistas contingências da história. 

Karl Marx tirou a economia das catacumbas e não somente destacou sua centralidade, mas demonstrou que toda a economia é política, que nenhuma decisão econômica está despojada de conotações políticas. 

Mais do que isso, ele mostrou que não existe saber mais político e politizado que o da economia, rematando os tecnocratas, de ontem e de hoje, cujas elucubrações econométricas obedecem a meros cálculos técnicos, com as monumentais sandices de ultraliberais como Paulo Guedes e tantos outros tão ineptos quanto corruptos.

Por méritos próprios Marx está mais vivo do que nunca. O farol do seu pensamento projeta uma luz cada vez mais esclarecedora sobre a tenebrosa realidade do mundo atual.

domingo, 8 de setembro de 2019

Descaminhos da politica


Antonio Carlos Lua

Desde 1824 – logo depois que se instaurou a independência, declarada, em 7 de setembro de 1822, pelo então regente do país, Pedro de Alcântara, que se tornou o primeiro imperador do Brasil, consagrando-se como D. Pedro I – vivemos um arranjo democrático, que perdura ao longo dos anos, passando pela monarquia e os períodos de regime republicano.

O Brasil nunca foi uma autêntica democracia no sentido original da palavra na língua do poeta épico da Grécia Antiga, Homero. Entre nós, o poder supremo, ou seja, a soberania, jamais pertenceu ao povo (demos).

Embora tenhamos uma Constituição Federal, muito bem-acabada, enquanto peça legal, um código político velado vem assegurando a dominação elitista na sociedade. Nem mesmo o processo constituinte que culminou na Carta Magna de 1988 foi capaz de romper com essa lógica. 

Nossa construção democrática sempre caminhou com uma Constituição oficial, institucional, e outra ilegal, paralela, subliminar e não escrita, com a cooptação política da oligarquia nacional que, com a complacência de alguns partidos, se sobrepõe e solapa as regras democráticas.

No Brasil, a diferença entre o que está na lei e o que existe na prática não é de hoje, é de sempre. Encontramos no artigo 1º, parágrafo único, da Constituição Federal, a declaração fundamental de que todo poder emana do povo que o exerce diretamente por intermédio de representantes eleitos. 

Na verdade, o povo não tem poder algum no Brasil. Ele faz parte de um conjunto teatral, embora não sendo parte propriamente do elenco, mas ficando em torno do elenco. Toda a nossa vida política é decidida nos bastidores. 

Para mudar isso não basta mudar as instituições políticas. É preciso mudar a mentalidade coletiva e os costumes sociais, que fazem com que o povo não saiba que democracia é um regime político em que ele tem o poder, em última instância, para decidir as questões fundamentais para o futuro do país, não somente elegendo os seus representantes, mas também tendo o poder de destituí-los. 

Essa noção pouco clara de democracia é fruto de quase quatro séculos de escravidão. Quando Tomé de Souza desembarcou no Brasil, em 1549, trouxe o seu famoso regulamento de governo, no qual tudo estava previsto, mas faltando, porém, a coisa mais importante: a constituição de um povo. 

Ao longo da história, o Brasil não conseguiu constituir esse povo. Isso porque o poder sempre foi oligárquico, ou seja, de uma minoria, fazendo-nos chegar ao Século XXI a uma situação de duplicidade completa. 

A história mostra que nós nunca vivemos de modo republicano e democrático. O primeiro historiador do Brasil, Frei Vicente do Salvador, apresentou uma declaração que até hoje permanece intocável, ao dizer que “nenhum homem dessa terra é repúblico, nem zela e trata do bem comum, se não cada um do bem particular”. 

Não existe a possibilidade de democracia sem que haja uma comunidade em que o bem público esteja acima dos interesses particulares. O chamado povão, as classes mais populares e humildes já trazem há séculos essa mentalidade de submissão. 

Procuram resolver os seus problemas através do auxílio paternal de certos políticos ou através do desvio da lei. Vemos isso cotidianamente. No Brasil, o povo geralmente não se insurge contra uma lei considerada injusta, pois o costume é sempre desviar-se da proibição legal.

Essa mentalidade foi forjada por uma instituição política colonial, depois imperial e falsamente republicana, mas, sobretudo, pela vigência do sistema capitalista, que entrou em vigor no Brasil no ano do seu descobrimento. 

O sistema capitalista tem essa característica específica, com o poder sempre oculto e dissimulado. Os grandes empresários, por exemplo, dizem que não são eles que fazem a lei, mas, na verdade, são eles que fazem o Congresso Nacional. São eles que dobram os presidentes da República. 

Enquanto isso, o povo continua não tendo a menor participação, ainda que reduzida, no exercício da soberania. Isso acontece desde a proclamação da República, quando ele assistiu bestializado a tudo o que acontecia, talvez imaginando tratar-se de uma parada militar, como descreveu o jurista, jornalista e abolicionista no tempo do Império, Aristides Lobo.

domingo, 1 de setembro de 2019

Democracia sem memória

Antonio Carlos Lua

Há 40 anos era promulgada a controversa Lei da Anistia, que concedeu perdão a todos que cometeram crimes políticos, crimes conexos e crimes eleitorais entre os dias 2 de setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979. 

A anistia foi estendida ainda aos que tiveram seus direitos políticos suspensos, aos servidores públicos ligados à administração estatal, aos militares e aos dirigentes e representantes sindicais punidos pelos Atos Institucionais e Complementares durante a ditadura militar.

A Lei da Anistia não é um tema do passado, como muitos dizem. É um assunto atual, adiado por muito tempo. O debate em torno da referida Lei é extremamente  necessário, para a uma avaliação da qualidade da democracia que o Brasil vem tentando construir nos últimos 30 anos. 

A ambiguidade da Lei de 1979 teve dois ingredientes. Por um lado, significou a interrupção da perseguição política em larga escala com a capilaridade que vinha tendo através do Sistema Nacional de Informações (SNI). 

Significou também o retorno dos exilados e a libertação dos presos políticos, com a diferença de que os presos que estavam condenados pelos chamados “crimes de sangue” — como se falava à época — ou seja, os condenados por terem tomado parte na luta armada, não estavam incluídos e ficaram de fora do texto final da Lei da Anistia. 

Por outro, houve injustiças, pois aqueles agentes públicos que praticaram crimes contra a humanidade, torturaram, mataram e, portanto, também praticaram “crimes de sangue”, não viriam a ser investigados e, consequentemente, não vieram a sofrer responsabilizações sob o ponto de vista criminal. 

Assim, a seletividade que a lei estabeleceu foi prejudicial àqueles que foram perseguidos políticos. A sociedade organizada nos Comitês de Anistia queria a responsabilização dos torturadores. No entanto, a forma como o governo controlou esse processo impediu que isso viesse a acontecer.

Dessa forma, a Lei da Anistia estabeleceu um tratamento discriminatório em relação aos perseguidos políticos. Ou seja, reverberou a seletividade da perseguição política e também trouxe um bloqueio para que se pudesse investigar os crimes praticados pela ditadura, caminhando, assim, em direções ambíguas. 

A Lei da Anistia trouxe consigo um ingrediente de reposição do período de perseguição política, repetida em muitos dos seus artigos na Emenda Constitucional (EC 26/1985), que chamou a Assembleia Nacional Constituinte. 

A emenda repetiu os termos da Lei da Anistia de 1979 com uma mudança que diz respeito à definição do que seriam crimes conexos. A definição muito pouco precisa fez com que um julgamento do Supremo Tribunal Federal sobre a constitucionalidade da referida lei, em 2010, ressuscitasse essa interpretação heterodoxa do conceito de crime conexo. O entendimento do STF foi de que conexão criminal seria tudo o que se relacionaria a crime político, de qualquer natureza. 

A ditadura construiu uma interpretação para a ideia de crime conexo, afirmando que um eventual “crime” que o agente público teria cometido para perseguir quem praticava o crime político ou o crime que é conexo ao político, também seria considerado crime conexo. 

Isso é algo que não é sustentável em nenhum livro de Direito Penal ou reflexão acadêmica, teórica ou técnica, do Direito Penal. Foi um estratagema utilizado para anistiar os crimes dos agentes da ditadura sem assumi-los, sem dizer com todas as letras que estariam anistiados os crimes de tortura, de assassinato, entre outros crimes praticados, inclusive, por agentes públicos.

Essa foi a interpretação que na época da ditadura predominou, alcançando uma elasticidade impressionante, inclusive do ponto de vista temporal, valendo para trás e para frente, de maneira muito aberta e generalizada, para impedir que as investigações pudessem caminhar. 

Uma das questões atuais da Lei da Anistia de 1979 está presente, sem dúvida alguma, nessa barreira de esquecimento e de silêncio que se impôs a partir da sua promulgação, com a desculpa e a referência institucional dela. Talvez esse seja um dos aspectos atuais mais evidentes dessa herança gerada na Lei da Anistia, com as limitações da nossa redemocratização.

Como uma boa parte da nossa democracia desse período que chamamos de República Nova se estabeleceu com a crença de que estávamos num processo ascendente de fortalecimento democrático, colocamos as deficiências da lei debaixo do tapete, sem o devido enfrentamento. 

Mas, agora, vivemos um processo social e político no qual essas questões não conseguem mais ficar onde estavam. Elas estão ressurgindo sem que possamos manter escondidos os desafios que foram postergados. 

Precisamos lutar contra essa tendência, que é própria da modernidade, de querer pensar sempre para frente, no sentido de esquecer o que veio antes e de achar que o progresso é inevitável e linear. Não é. Se formos pensar numa sociedade mais justa e menos violenta, vamos olhar para trás e ver que não houve muito progresso. 

Para podermos chegar nos pontos cegos da nossa sociedade temos que ter esse compromisso de conversar com o passado e de saber que a interpretação que temos do passado é determinante para o nosso presente e para o nosso futuro. 

Se não fizermos isso, andaremos às cegas. Um país violento como o Brasil clama por essa atitude. Devemos nos colocar entre aqueles que veem na rememoração da anistia brasileira e na discussão dela não um tema do passado, mas um tema atual.