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segunda-feira, 28 de janeiro de 2019

Os muros estavam chorando

Se os muros físicos que separam países simbolizam a nossa incapacidade de resolver diferenças usando os instrumentos das democracias modernas para a Justiça, solidariedade e a Paz Social, a destruição dos muros de celebração de amizades provocam angústia, por nos conduzir a fazer rupturas profundas, difíceis de consertar, quebrando liturgias, vínculos e valores civilizatórios de convivência humana.

É o que podemos interpretar com a leitura do poema carregado de sentimento e sensibilidade “Os muros estavam chorando”, da lavra do renomado advogado e ex-presidente da Seccional Maranhense da OAB, Raimundo Marques

O poema expressa o drástico retrocesso não só na paisagem urbana, como também humana, nos levando a perder o desejo de andar e apreciar a cidade, exercendo o nosso direito consagrado de observação livre da vida e das coisas que fazem parte do nosso cotidiano. 

Muros sem vida, sujos, mal cuidados, com concepção estética caracterizada pela propaganda de banalidades pregando valores sociais não generosos, comprometem o desenho urbano, destroem a beleza da cidade, num cruel retrocesso social, cultural e humano.

São simulacros de paisagem fortalecidos pela aculturação ditada por uma política exploratória e destrutiva, evidenciando os sintomas de um urbanismo sem qualquer coesão social com o tecido humanístico.

Leia, abaixo, o poema: 

OS MUROS ESTAVAM CHORANDO

Raimundo Marques

Os muros estavam chorando.
Por pouco tempo, é verdade.
Detive-me olhando a rua Coronel Lago.
Inevitável surto de saudade.
Cadê a casa? as casas? o muro? A mim mesmo indago.
Mas que muro? O do seu Bena?
A separar a nossa, da casa do vizinho amigo?
Sim, só podia ser este, viva lembrança, que pena!
Uma farmácia agora, no local, nenhum sinal do antigo
Até a casa, grande, morada inteira, gente amiga.
Agora, lojão do famoso “sucesso em qualquer lugar”.
Nenhum resquício da mansão antiga.
Continuei procurando outro silente muro.
Não encontrei nenhum, “limpo e puro”.
Mas ví alguns que expressavam dores.
Agredidos e humilhados , pelos   pichadores.
Tolas propagandas comerciais.
Anúncios, ainda visíveis, banais.
Mal apagados, de políticos profissionais.
Enfim, a mudez dos muros, bem olhando.
Sem pinturas, tintas mortas, no seu lugar, gotas lacrimais.
Os muros estavam chorando.

domingo, 27 de janeiro de 2019

Muros do medo


Antonio Carlos Lua

Durante uma entrevista coletiva com jornalistas o Papa Francisco foi questionado por um repórter sobre a construção do muro fronteiriço que Donald Trump insiste em construir entre os Estados Unidos e o México, para impedir a entrada de imigrantes. “O muro entra no mar, para que ninguém consiga passar nem a nado”, comentou o jornalista. O Papa respondeu: “É o medo que enlouquece. São os muros do medo”. 

O Sumo Pontífice – que já tinha visto o projeto do muro que ia até o oceano, logo depois acrescentou: “A marca mais vendida atualmente em nosso mundo é, de fato, o medo. Ele recebe audiência. Recebe votos. Gera cliques”. 

O Papa Francisco sempre defendeu "construir pontes e não muros" e já afirmou inúmeras vezes que não é cristão quem constrói barreiras para dividir os povos. 

“Construtores de muros semeiam o medo e procuram dividir e restringir as pessoas", assinalou o primeiro Papa oriundo da América Latina e filho de imigrantes italianos, que tem colocado a questão da imigração entre os temas centrais do seu pontificado, se posicionado contra as “barreiras de separação” que proliferam no mundo, caracterizando uma brutal arquitetura da vergonha.

Em geral, os Papas relutam a se pronunciar sobre disputas políticas externas, mas Francisco não é apenas mais um. Ele tem afeição pelos imigrantes. 

A sua primeira viagem como Papa teve como destino a ilha no sul da Itália chamada Lampedusa, onde o religioso lançou uma coroa de flores no mar para celebrar as 20 mil pessoas que, acredita-se, morreram na tentativa de fazer a travessia do norte da África para a Europa durante as duas últimas décadas. Na ocasião, ele falou sobre aquilo que chamou de “globalização da indiferença”. 

Desde o início do seu pontificado, Francisco vem sendo um Papa do evangelho social, tornando equivalentes prioridades como a diminuição da pobreza, a resolução de conflitos, o tráfico humano, bem como os direitos dos imigrantes. 

O seu objetivo parece expandir a noção do que vale como uma questão “pró-vida”, ou seja, uma questão em que a dignidade humana está em jogo e onde a Igreja se obriga a responder. 

Seu gesto simboliza um grande exemplo para a humanidade, pois mais de um quarto de século depois da queda do Muro de Berlim – símbolo da Guerra Fria – ainda persiste, espalhada pelo mundo, uma série de fronteiras muradas construídas para separar povos. 

Enquanto isso, na contramão da história, os apologistas do neoliberalismo não se cansam de glorificar os méritos da globalização com um discurso maniqueísta e perverso amplificado pelo sistema midiático, que constrói permanentemente a política do medo, efetuando associações diretas entre a figura do imigrante e do refugiado à violência e ao terror.

Frustrando as esperanças de um mundo sem as sequelas da segregação, o Velho Continente parece mais decidido do que nunca a blindar seu território soberano. 

Baseando-se em estereótipos discriminatórios e tendenciosos, os países europeus estabelecem marcadores geográficos para repelir os indesejáveis, construindo muros que crescem por todo lado, formando uma imensa barreira. 

São muros de pedra, arame farpado, concreto. Muros por terra, mar e ar. Muros do medo, que nem sequer se veem, mas se fazem notar. 

A obsessão da Europa em se fortalecer e evitar a chegada massiva de imigrantes se materializa na construção de cerca de 1.000 quilômetros de barreiras físicas e virtuais, fomentando-se as bases da "Europa Fortaleza”, que passou de dois muros na década de 1990 para uma quinzena deles na escalada da estratégia de blindagem do continente. 

Nos últimos três anos, foram erguidas sete novas barreiras. Quase a metade dos 28 estados-membros da União Europeia reforçaram suas delimitações territoriais: Espanha, Grécia, Hungria, Bulgária, Áustria, Eslovênia, Reino Unido, Letônia, Estônia e Lituânia. A essa lista se soma a Noruega, fora da organização comunitária, mas membro do espaço Schengen. 

Na bancada, destacam-se ainda a Espanha e a Hungria, que levantaram muros para controlar migrações, assim como a Áustria e o Reino Unido, que delimitaram o espaço em suas fronteiras compartilhadas com países do espaço Schengen. A Eslováquia também optou por esta medida, no seu caso com fins de segregação racial. 

No contexto dessa exuberância defensiva devem ser contabilizadas também as barreiras marítimas, especialmente no Mediterrâneo. 

Para culminar a contagem da logística ultraprotetora, temos os muros mentais, aqueles que não podem ser apreciados, mas vão silenciando o imaginário coletivo nas costas da narrativa do medo difundidas pelos partidos de extrema direita. 

Formações políticas em ascensão apontam os imigrantes como ameaças potenciais para o equilíbrio e o bem-estar futuro das sociedades nativas. 

Já são dez os Estados da União Europeia que têm partidos xenófobos com presença representativa no panorama político local, o que lhes garantiu no mínimo meio milhão de votos em pleitos eleitorais nos últimos oito anos. 

Na sequência desta tendência, justifica-se a aparição de programas de restrição da circulação de pessoas e daqueles que se centram no recolhimento de dados biométricos pelo centro europeu de controle de impressões digitais para identificar os solicitantes de abrigo e os imigrantes irregulares, e que é utilizada no estabelecimento de pautas e padrões dos movimentos de pessoas. 

Aumentam as suspeitas sobre o recém-chegado, o desconhecido, que neste cenário passa a se converter em uma ameaça, legitimando-se, assim, uma série de obstáculos sociais, políticos e físicos acoplados a uma engrenagem de políticas xenófobas, que consolidam problemas estruturais de violência global e desigualdade econômica. 

Manipula-se a opinião pública para criar temor e receios irracionais em relação às pessoas refugiadas e se estabelecem, assim, muros mentais nas pessoas que, mais adiante, exigirão a construção de muros físicos.

domingo, 20 de janeiro de 2019

O marxismo independente do jornalista e escritor Graciliano Ramos


Antonio Carlos Lua

O relógio marcava 19h, quando, no dia 3 de março de 1936, durante a ditadura de Getúlio Vargas, um jovem tenente do Exército Brasileiro, sob as ordens do general Newton Cavalcanti, chega à casa do jornalista e escritor Graciliano Ramos, em Maceió (Alagoas), para prendê-lo, sob a acusação de suposta participação na Intentona Comunista. 

De Maceió, Graciliano Ramos foi levado no porão de um navio para a temida Colônia Correcional da Ilha Grande, no interior do Estado do Rio de Janeiro, onde ficou encarcerado com outros 115 presos sofrendo humilhações até 1937, sem qualquer interrogatório no período.

Da experiência na prisão escreveu o livro “Memórias do Cárcere”, publicado, postumamente, sem o último capítulo, em 1953, relatando as situações sórdidas vividas em porões imundos, sofrendo privações provocadas por um regime ditatorial chamado de Estado Novo, período em que os jornalistas foram vítimas dos mandos e desmandos ditatoriais que assolavam o país. 

Em um trecho do livro “Memórias do Cárcere”, Graciliano Ramos diz: “o mundo se tornou fascista. Num mundo assim, que futuro nos reserva? Provavelmente não há lugar para nós, somos fantasmas, rolaremos de cárcere em cárcere, findando num campo de concentração”.

Na verdade, ele ficou sem entender porque tinha sido preso como transgressor e no próprio livro “Memórias do Cárcere” pergunta a si mesmo: "Havia qualquer suspeita contra nós? Não havia. Tínhamos entrado em desordem? Não tínhamos. Éramos inimigos de barulhos? E então? Porque estávamos ali? Hem? E porque essa história de colônia correcional?" 

O mesmo questionamento ele fez ao advogado e ferrenho defensor dos direitos humanos, Sobral Pinto, que lhe respondeu que “nos seus livros – com concepção marxista, revelando críticas à mentalidade reacionária – havia razão suficiente para qualquer fascismo razoável o encarcerar”. 

Suspeito ou não, o fato é que Graciliano Ramos só se livrou da prisão devido à pressão política exercida por outros escritores como José Lins do Rego, Jorge Amado e Raquel de Queiroz, e também por causa do “Prêmio Lima Barreto” que o jornalista alagoano recebeu da conceituada ‘Revista Acadêmica’, que lhe dedicou uma edição especial com treze artigos e retratos de Portinari e Adami. 

O verdadeiro motivo da prisão de Graciliano Ramos foi a sua manifestação contra o absoluto domínio exercido pela classe latifundiária, relatada no livro “São Bernardo”, cujo cenário de fundo era o problema da reforma agrária, com a visão socialista do escritor emergindo das contradições como saída para os conflitos sociais e humanos retratados. 

O livro revela, de forma rigorosa e direta, os conflitos entre o campo e a cidade sem se deter em nenhum deles, já que o estabelecimento de uma estrutura nova – a da cidade – não implicou na derrocada da antiga – o campo – mas antes colocou-a em situação de desequilíbrio. 

O quadro brasileiro denunciado que se delineia na obra é o final do regime monárquico português e o início da República brasileira. Com a liquidação do regime monárquico por falta de apoio dos proprietários de terra com o fim da escravidão, os fundadores da República formaram um novo esquema de composição de poderes, por meio do qual aparecem os primeiros grupos empresariais capitalistas que desequilibram o reinado vigente da classe fundiária. 

No entanto, fortificados pela cultura do café – a maior riqueza do país – a aristocracia volta a afirmar-se em torno da "política dos governadores", mantendo uma estrutura colonial, apesar das concentrações urbanas, do aparecimento da classe operária e da evolução da classe média emergente. 

O início da primeira guerra mundial, a importância adquirida pela indústria na economia nacional, a transformação dos quadros sociais, a politização efetiva do operariado e a quebra da bolsa de Nova York, em 1929, serviram de cenários interdependentes para o movimento tenentista que, embora com um perfil conservador, combatia a corrupção, a ação política do Governo e dos representantes das oligarquias cafeeiras (coronelismo), pedindo também reformas políticas e a moralidade no país.

Graciliano utiliza esses elementos para destacar a ascensão e o declínio de Paulo Honório, um famoso proprietário de terras que vivia de desmandos e impunidade. Ao focalizar o "coronel" sem tradição, o autor desmonta completamente a estrutura fundiária imperante no sertão nordestino, desagradando o poder político da época.

Embora ele não colocasse nenhuma bandeira política nos seus personagens, não inserindo questões normativas características do comunismo na construção de suas obras, a percepção de mundo de Graciliano Ramos se alicerçava no marxismo, embora de forma independente, como disse, em certa ocasião, o ensaísta e historiador austríaco, Otto Maria Carpeaux. 

Graciliano Ramos só se tornou comunista em 1945, após a fase áurea do PCB de Luis Carlos Prestes, que vai do movimento tenentista até ao início do Estado Novo, sob a ditadura cinzenta de Getúlio Vargas. Em 1952, ele viajou para os países socialistas do Leste Europeu e registrou a experiência no livro “Viagem”.

Nunca faltou a Graciliano Ramos coragem intelectual para falar de si com segurança e desprezar aparências e ilusões literárias. Sempre colocou limites nítidos entre as coisas do mundo. Como jornalista foi sempre um apreciador da exatidão, precisão e clareza. 

Meticuloso, eliminava tudo o que não era essencial no texto. Era capaz de eliminar páginas inteiras, sendo um implacável inimigo do vago e do impreciso. Odiava gorduras desnecessárias e derramamentos insuportáveis em textos jornalísticos. 

Do ponto de vista formal, Graciliano Ramos – que tem o livro “Vidas Secas” como obra mais famosa – talvez seja o escritor brasileiro de linguagem mais sintética. Em seus textos enxutos, a concisão atinge seu clímax. Não há uma palavra a mais ou a menos. Trabalha a narração com a mesma mestria, tanto em primeira como em terceira pessoa.

Vítima de câncer no pulmão, Graciliano Ramos faleceu no dia 29 de março de 1953. Seu grande amigo, o escritor paraibano José Lins do Rego, o apontou como sendo o maior romancista brasileiro dizendo ser o jornalista alagoano “um escritor de vida eterna”.

domingo, 13 de janeiro de 2019

Lima Barreto: um jornalista em guerra com o seu tempo


Antonio Carlos Lua

No dia 13 de março de 1888, a Princesa Isabel se preparava para assinar, em praça pública, a Lei Áurea, instituindo a Abolição da Escravatura. Entre as pessoas que acompanhavam o ato estava o menino negro Lima Barreto que, aniversariando naquela data, olhava uma multidão de escravos aguardando a liberdade. 

Anos depois, essas recordações marcaram a sua obra como jornalista e escritor, quando ele se contrapôs à versão da “história oficial”, afirmando que, mais uma vez, os negros foram objetos, e não sujeitos, de sua própria história, quando uma “bondosa” princesa os libertou da escravidão. 

Como jornalista e escritor, Lima Barreto mostrou que a verdadeira história – a que não se conta – é bem outra, e inclui séculos de lutas pela liberdade, com milhares de quilombos colocados em pé contra a tirania escravocrata. 

Lima Barreto, na sua heroica e ininterrupta luta, deu uma contribuição fundamental à literatura e à imprensa brasileira, apesar do imenso racismo contra ele. Denunciou as injustiças sociais e apontou as dificuldades das primeiras décadas da Primeira República. 

Na sua militância na imprensa, dizia sempre que o jornalismo, pelas exigências do imediatismo, jamais poderia está calcado na superficialidade e que nem tudo que é provável pode ser considerado verdadeiro. 

A notícia – afirmava ele – é um produto que, da mesma forma que o pão comprado diariamente na padaria, necessita estar com todo frescor que se exige ou que se espera, com o jornalista cartografando o dia a dia, destrinchando-o para o leitor sequioso da realidade. 

Com relação à literatura, Lima Barreto falava que sua missão era fazer as almas se comunicarem umas com as outras, contribuindo para o perfeito entendimento entre elas, ligando-as mais fortemente, reforçando, assim, a solidariedade humana, ajudando as pessoas a se entenderem melhor, no único intuito de sua felicidade. 

O ponto intermediário entre o escritor e o jornalista drenou e selecionou as marcas da trajetória de Lima Barreto, cuja obra é indispensável a quem se propõe estudar o jornalismo no Brasil na Primeira República. 

Com as barreiras do preconceito racial, do seu alcoolismo, da falta de reconhecimento literário, dos parcos rendimentos financeiros e da loucura que marcou a sua luta pela sobrevivência, colocou em seus ombros o peso da humanidade, fardo que os jornalistas e escritores são obrigados também a carregar diante dos incontáveis desafios. 

Como jornalista, Lima Barreto procurou sentir o que realmente se desenhava na alma brasileira, estendendo seu olhar perspicaz sobre tudo que afetava a sociedade. 

Foi quando o escritor deu vez ao seu talento como jornalista para expressar sua indignação. O jornalista, por sua vez, também cedeu espaço para o escritor colocar seu trabalho em prol daquilo que acreditava ser correto. 

Dessa forma, o jornalismo e a literatura se entrelaçaram na vida de Lima Barreto. Ele percebeu que mesmo que o jornalismo e a literatura tivessem alguns pontos de bifurcação – criando afluentes que originam áreas que lhe são próprias – era impossível ignorar suas ligações. Com esse entendimento, seguiu reunindo o que estava disperso no jornalismo e na literatura. 

Entre tantas decepções sociais na sua vida, a segunda recusa da Academia Brasileira de Letras ao seu nome, nem chegou, na verdade, a surpreendê-lo. Apesar de lhe concederem uma certa projeção como jornalista e escritor, as instituições culturais o mantinham à distância, ao passo que ele continuava parodiando-as e ridicularizando-as.

As críticas à Academia Brasileira de Letras levaram seus membros a se posicionarem contra o seu ingresso naquela casa de cultura, por entenderem que o seu modo de pensar, estilo de vida e de escrita não correspondiam à imagem de um escritor comme il faut, respeitador das conveniências, digno do prestígio da categoria e merecedor de consagração. 

O interessante é que hoje os escritores que consideravam Lima Barreto indigno de ingressar em seu ilustre círculo, caíram em absoluto esquecimento. 

Enquanto isso, os livros do antigo subversor e outsider Lima Barreto são bastante procurados em livrarias e bibliotecas, principalmente “Triste Fim de Policarpo Quaresma”, romance que transcende o âmbito estritamente literário, sendo uma obra indispensável para o Brasil compreender a si mesmo. 

“Triste Fim de Policarpo Quaresma”, fez Lima Barreto ser bastante discutido e celebrado como redescobridor do país no ano 2000, por ocasião da comemoração dos 500 anos do “descobrimento” do Brasil pelo navegador português Pedro Álvares Cabral. 

O romance – publicado em série no folhetim do ‘Jornal do Commercio’ – mal foi levado em consideração pela crítica, recebendo, porém, aprovação unânime, em 1915, ao ser lançado como livro. 

O primeiro livro de Lima Barreto – “Memórias do Escrivão Isaías Caminha” – também é uma obra marcante e traça uma radiografia da sociedade brasileira, com um detalhado quadro do jornalismo e de suas reverberações na vida das pessoas. O romance é uma passarela na qual desfilam os mais variados tipos envolvidos com a prática jornalística. 

“Memórias do Escrivão Isaías Caminha” mostra a rapidez de pensamento de Lima Barreto como escritor e como jornalista. Aliás, a palavra jornalista é a que define a sua profissão no registro de entrada no Hospício Nacional do Rio de Janeiro, em 1919, quando foi internado para tratamento em decorrência do alcoolismo e dos fantasmas da própria loucura.

Lima Barreto sempre criticou o racismo, bem como as outras ideologias dominantes da época, como o positivismo de Augusto Comte, inspirador da República dos marechais e inscrito até hoje no lema “Ordem e Progresso” da bandeira brasileira. 

Se posicionou contra os valores da classe dominante e tinha o entendimento de que literatura devia ser sincera, dando destaque aos problemas humanos e sociais, trazendo ideias, concepções de mundo. 

No seu rico repertório de crônicas e artigos jornalísticos, nunca escondeu sua classe, sua cor, sua origem, enfrentando todas as adversidades colocadas em seu caminho. 

Foi um jornalista e escritor em guerra com o seu tempo, enxergando melancolicamente longe. Com suas convicções e sentimentos atacava a corrupção, batia no conservadorismo dos jornais e clamava por uma literatura de combate que incomodasse os poderosos.

Não se censurava, agindo sempre pelo coração, por impulso, por emoção, por vocação, sendo sempre direto e implicante, não deixando escapar nenhuma oportunidade de denunciar os desmandos sociais, dando valor à radical veracidade do que ao refinamento de linguagem e composição. 

Lima Barreto morreu jovem, com apenas 41 anos, deixando-nos uma obra fundamental, um marco da literatura e do jornalismo. 

domingo, 6 de janeiro de 2019

Machado de Assis: a crônica literária tecida pelo jornalismo


Antonio Carlos Lua

Até hoje, muitos escritores se perguntam se o jornalismo é um fator bom ou ruim para a literatura. O que se sabe é que – benéfica ou não – essa relação é, inegavelmente, estreita e vem movimentando algumas redações brasileiras, desde os Séculos XVIII e XIX, quando escritores de prestígio tomaram conta dos jornais e descobriram a força da imprensa como espaço público. 

Na época, a união entre o jornalismo e a literatura proporcionava – como benefício aos donos de jornais – um significativo aumento na venda de periódicos, possibilitando uma diminuição dos preços, o que aumentava o número de leitores. 

Em contrapartida, os escritores conquistavam notoriedade e elevavam seus nomes na medida em que os textos eram publicados com destaque na imprensa, com a união, em texto, de ferramentas literárias aliadas ao discurso jornalístico.

Machado de Assis, por exemplo, foi um dos escritores que, utilizando-se da imprensa, fez propagar suas ideias escrevendo para jornais, estreitando o foco da observação e análise crítica de seu tempo, conforme exigia a natureza das suas crônicas publicadas em jornais como o “Diário do Rio de Janeiro”, “Correio Mercantil”, “A Marmota”, “Gazeta de Holanda”, entre outros. 

Unindo literatura e jornalismo em suas crônicas, ele fez algo que, para a imprensa, significou mais do que crítica ou resenha literária. Na verdade, ele guiou a literatura e elevou a qualidade da imprensa, fazendo do jornal um aparato máximo de uma revolução do conhecimento, o que ele definia como “democracia prática pela inteligência”.

O período de estabilidade, declínio e queda do Império brasileiro foi marcado pelo jornalismo literário crítico e sutil de Machado de Assis, que transformou um público de cultura de comunicação oral em leitores assíduos de jornais, abrindo uma oportunidade rara para jornalistas, num país – à época – com pouco leitores. 

Embora tenha se consagrado apenas como romancista e contista, ilustrando a galeria dos grandes nomes da literatura brasileira, há de se reconhecer que Machado de Assis exerceu, também, grande influência na configuração e legitimação do jornalismo político e cultural no Brasil.

Homem de seu tempo, esteve vigorosamente envolvido com as questões que mobilizavam o jornalismo, levando o público oitocentista a se habituar a ler, pensar, refletir e agir. Fez do jornalismo sua prática de ação política. Ora se empolgava com a dialética do esclarecimento prometida pelo ideal de jornalismo, ora reprovava editoriais que enalteciam aspectos hegemônicos de uma sociedade escravocrata. 

Convicto entusiasta do jornalismo, Machado de Assis acreditava no poder revolucionário da imprensa num país marcado pela escravidão. O papel social do jornalista e os seus limites éticos, que buscam o equilíbrio entre a liberdade de informar e a responsabilidade no exercício profissional, apareciam com bastante frequência em suas crônicas. 

No jornal “Gazeta de Holanda”, em 1887 – época em que o escravo só era citado nos anúncios publicitários para venda ou como recompensa para quem o entregasse ao senhor – Machado de Assis teve a coragem de dar voz, em uma de suas crônicas, a um escravo de ganho, Pai Silvério, principal alvo nos debates que antecederam a Abolição da Escravatura. 

Nas crônicas intituladas “O jornal e o Livro”, “O Folhetinista” e “A Reforma de Jornal” – publicadas em 1859 – ele mostrou que como afrodescendente não foi indiferente ao drama dos seus semelhantes, acreditando no poder revolucionário da imprensa contra a escravidão, o analfabetismo e a rede nefasta de privilégios provenientes de uma sociedade com estrutura no sistema feudal, onde a posição do indivíduo no meio social dependia de sua origem familiar, ou seja, quem nascia servo, morria servo. 

Machado de Assis realizou, à sua maneira, um fazer jornalístico marcado pela reflexão crítica acerca da profissão, práticas que o tornaram – além de excepcional romancista e cronista – uma referência na imprensa brasileira do Século XIX. 

Atento na execução dos registros jornalísticos dos fatos, Machado de Assis definia os jornais como a “república do pensamento”, revelando a figura do jornalista destemido, que não mede esforços para trazer a verdade dos fatos à tona, tornando explícitas as suas marcas interpretativas ao olhar atento da sociedade.