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domingo, 31 de março de 2019

Marcas da Ditadura


Antonio Carlos Lua

Transita no Planalto Central a sombra de um comando que evoca uma narrativa heroica sobre os crimes cometidos na ditadura militar, escondendo a verdade na tentativa de enterrar um passado não resolvido.

Há exatos 55 anos do Golpe Militar, o Brasil continua negando-se a prestar contas de um triste passado e desatar o nó que vem alentando o retorno da barbárie, o abuso de poder e outros instrumento intimidatórios.

O primeiro passo para efetivar a justiça exige fazer memória do acontecido. Sabe-se, por triste experiência, que a impunidade caminha na mão do esquecimento. 

Os torturadores não querem acertar as contas com o passado e até hoje não assumiram os crimes de lesa-humanidade. Sabem eles que a melhor estratégia para ocultar a injustiça é seu esquecimento.

Para tanto, dissimulam a injustiça conexa perpetrada nos anos de chumbo. Ao atingir esse objetivo, cometem uma dupla injustiça contra as vítimas. A primeira no ato da violação e assassinato e a segunda no seu esquecimento. 

De modo inverso ao esquecimento, a memória apresenta-se como práxis da justiça. Ela atualiza um passado de injustiça que nos interpela. O passado que os militares tentam negar pelo esquecimento, sobrevive como demanda de justiça para o presente. 

A memória é uma forma de trazer uma justiça possível às vítimas da ditadura, com o reconhecimento de suas lutas. Trazê-las até nós como parte de nossa contemporaneidade é um ato de justiça e reconhecimento. Sabemos que isso é insuficiente, sem dúvida, porém necessário para os passos subsequentes.

Somente com a memória das vítimas da ditadura militar poderemos garantir justiça a todos aqueles que sofreram com a repressão, com a tortura. A verdade sobre o terrorismo de regime militar precisa vir à tona. 

Não é plausível promover o esquecimento da barbárie praticada durante os largos anos de ditadura que, no engodo de proteger o Brasil da ameaça comunista, torturou e matou sem o menor constrangimento centenas de brasileiros.

Fala-se muito hoje em reconciliação da sociedade brasileira. Ocorre que para haver uma verdadeira reconciliação, faz-se necessário os autores dos crimes reconhecê-los como de sua autoria.

Não se deve confundir o perdão com o esquecimento. Assim seria uma nova forma de violência à memória e à história das vítimas torturadas pelo regime militar.

O fato de as vítimas do regime militar estarem mortas não muda a dignidade delas. Suas histórias de luta não se extinguiram com a morte. Como vítimas, elas continuam sendo credoras de uma justiça que o conjunto social ficou lhes devendo. 

No momento, não há tema mais atual do que resgatar a memória, pois entender o passado como morto é o caminho mais rápido para eliminarmos nosso futuro. Trata-se de um momento importante para passar o Brasil a limpo.

O silêncio que segue impedindo acesso aos principais arquivos da ditadura alimenta uma das maiores dívidas com a sociedade. Os poucos arquivos abertos pela Comissão da Verdade foram todos remexidos, invadidos e desmanchados antes de se tornarem públicos. 

Enquanto é negado à sociedade o acesso aos documentos, os militares abrem seus arquivos à pessoas escolhidas, para que a história seja contada da maneira deles. 

Os militares costumam dizer que muitos documentos foram incinerados. Não é verdade. O que pode ter sido incinerado é o papel, mas os arquivos já foram microfilmados e hoje, provavelmente, estão digitalizados. 

Nas mãos do Exército, Marinha e Aeronáutica, os arquivos seguem inacessíveis até hoje. Por que esse pacto de silêncio? Medo! Covardia! 

O general chileno Augusto Pinochet – ditador chileno de 1973 a 1990 – ainda estava vivo quando a história de tortura no seu governo começou a ser contada no Chile. 

No Brasil, ninguém teve coragem de fazer isso. Nada aconteceu. Não tiraram o ônus da prova. Não bancaram a busca de corpos. Ao contrário, houve tentativas de impedimento, levando a sociedade brasileira a ter pouco interesse pelo passado triste e vergonhoso da nossa história. 

A Lei 9.140 (Lei dos Desaparecidos Políticos) concedeu uma indenização às vítimas do regime militar, mas não disse onde estão os corpos das vítimas, como morreram, quem matou e qual a punição aos responsáveis. 

A história precisa ser contada honestamente, para que os torturadores não continuem a outorgar o perdão a si mesmos, mesmo com a memória dos mortos os interrogando com toda a veemência. . 

Punir quem cometeu crimes contra a humanidade não se trata de vingança, mas de justiça. Punir torturadores significa fazer justiça tão somente. 

Na Europa há toda uma conscientização sobre o que significou o Holocausto. Já no Brasil, os anos de chumbo da ditadura são maquiados, para dizer o mínimo. 

A ausência do passado na consciência coletiva é o que vem alimentando discurso para a perpetuação da violência nos dias atuais.

domingo, 17 de março de 2019

Planeta de plástico


Antonio Carlos Lua

Desde o pós-guerra, quando a natureza passou a sofrer com os impactos do derrame de petróleo no mar, os problemas com os oceanos não pararam, com a enorme quantidade de peixes contaminados por poluentes. 

Com o tempo, novos poluentes se agregaram aos já existentes, a exemplo dos plásticos que hoje ameaçam a sociedade humana. Seus efeitos podem afetar os ecossistemas durante centenas ou até milhares de anos.

São 13 milhões de toneladas de plástico jogadas a cada ano em nossos oceanos, ameaçando a vida marinha, os ecossistemas e a nossa saúde, já que o produto contamina nossa água.

Os microplásticos – fragmentos de polímeros inferiores a 5 mm – já não são mais um problema apenas para as criaturas que vivem nos oceanos atulhados. 

Os mosquitos ou as libélulas ingerem os microplásticos, que entram na cadeia alimentar de outras espécies quando estes insetos são comidos por animais, disseminando o consumo de resíduos plásticos entre os seres vivos da Terra.

Cerca de  83% da água da torneira contém partículas de plástico e seus químicos tóxicos podem ser encontrados em nossa corrente sanguínea. A quantidade desse tipo de resíduo aumentou em 100 vezes no Oceano Pacífico.

Pesquisa da Universidade de Reading, no Reino Unido aponta que, em 2050, a quantidade de lixo plástico nos oceanos deverá superar a de peixes. Partículas de microplástico hoje presentes no oceanos superam as estrelas de nossa galáxia.

Assim, o domínio do egoísmo humano sobre o novo período geológico – no limiar de uma nova era (Antropoceno) – está provocando a sexta extinção em massa das espécies, acelerando a degradação dos ecossistemas. 

O consumismo compulsivo está destruindo o processo civilizatório iniciado deste o surgimento do homo sapiens até a sua transformação em homo economicus

É um problema global e onipresente. Assim como uma baleia morta não tem nacionalidade, o lixo que a mata também não tem passaporte, vem de qualquer lugar do mundo, levado pelos ventos e pelas correntes marítimas. 

O Brasil é quatro país que mais produz plástico no mundo, gerando 11,3 milhões de toneladas desse resíduo – número três vezes maior que sua produção anual de café. 

Fica atrás apenas dos Estados Unidos (70,8 milhões de toneladas), China (54,7 milhões) e Índia (19,3 milhões). Na Europa Ocidental, a liderança é da Alemanha (8,2 milhões).

O superpetroleiro de nome ‘Knock Nevis’ foi o maior navio já construído pelo homem na história mundial da navegação. Desmontado em 2010, ele tinha um comprimento equivalente a quatro campos de futebol e a largura de um prédio de 23 andares. 

Era capaz de transportar, de uma só vez, uma carga com peso máximo de 564 mil toneladas. Mesmo um colosso dessa magnitude se apequenaria se tivesse que desempenhar a inglória tarefa de transportar o lixo domiciliar gerado anualmente no mundo. 

Uma montanha de lixo de 730 milhões de toneladas necessitariam de 1,3 mil viagens do ‘Knock Nevis’. Isso tratando-se só do rejeito gerado nos domicílios. 

Se o ‘Knock Nevis’ tivesse que transportar a somatória do lixo que é gerado anualmente por todas as atividades humanas levadas a cabo no mundo – estimadas em 30 bilhões de toneladas – ele precisaria fazer mais de 53 mil viagens. 

Nossa insana e insone máquina de acumulação de riqueza e capital funciona na base do modelo “Extrai-Produz-Descarta”, levando os resíduos a ocuparem um nexo central nas preocupações humanas. 

É bom saber que as batatas de Marte não são acessíveis à maioria dos humanos. Portanto, uma temporada em solo vermelho para fugir de uma calamidade civilizatória na terra soa improvável. 

Sendo assim, a saída é fazermos da era do homem a era da sustentabilidade e não a era do lixo plástico que agora vivemos. A avalanche de lixo está dominando o planeta e é a nova fronteira da evolução humana. 

domingo, 10 de março de 2019

Quem foi de aço nos anos de chumbo

Antonio Carlos Lua

A Estação Primeira Mangueira – a tradicional verde e rosa do Carnaval carioca – trouxe a memória dos heróis brasileiros marginalizados para a Sapucaí, no Rio de Janeiro.

Os versos do samba-enredo fazem memória a “quem foi de aço nos anos de chumbo”. Em outros tempos bicudos, o escritor, ensaísta e dramaturgo brasileiro, Oswald de Andrade, certamente afirmaria que “a alegria é a prova dos nove!”. 

A verdade é que se a nossa atual política causa espanto mundo afora, o Carnaval continua sendo nosso apogeu estético e – por que não, político – onde as feridas de um país machucado sangram sob os pés dos passistas, que no esplendor de sua arte popular revelam o Brasil da diversidade étnica, religiosa e cultural.

Dos versos do samba-enredo da Estação Primeira Mangueira – “História para ninar gente grande” – sobram referências à história oficial que é colocada em contraste com as violações às mulheres, à população negra e à personagens marcantes como Dandara.

Mulher guerreira, obstinada por liberdade, Dandara – mulher de Zumbi com quem teve três filhos – se suicidou, em 1694, para não voltar novamente à condição de escrava. Até hoje não se sabe a sua verdadeira origem. Não há registro histórico que confirme se ela nasceu em terras brasileiras ou na África. 

Presume-se que sua ascendência tem ligação com a nação africana de Jeje Mahin, culto dos Voduns da região Mahi a noroeste de Abomei. Dentre os daomeanos escravizados, uma mulher chamada Ludovina Pessoa, natural da cidade Mahi foi escolhida pelos Voduns para fundar três templos na Bahia.

No dia em que Zumbi teve a cabeça decepada num golpe à resistência negra, um ano e nove meses já teriam transcorrido desde a morte igualmente trágica de Dandara, face feminina do Quilombo de Palmares, que se tornou um importante símbolo da resistência à escravatura.

Além de Dandara, existiram outras mulheres guerreiras no tempo da escravidão, a exemplo de Maria Felipa – heroína da independência da Bahia e, por conseguinte, do Brasil – e Luísa Mahin, líder dos Malês e participante da Sabinada. 

Porém, o olhar racista dos livros didáticos ignoram e não reconhecem o papel dessas mulheres, cuja história é diretamente associada à resistência protagonizada pelo povo negro durante mais de 400 anos de escravidão. 

terça-feira, 5 de março de 2019

A atuação política e eclesiástica de dom Ivo Lorscheiter

Antonio Carlos Lua

As recentes notícias sobre a espionagem na Igreja Católica do Brasil pelo Palácio do Planalto relembram o período ditatorial do país – 1964 a 1985. 

O general Augusto Heleno, ministro do Gabinete de Segurança Institucional da Presidência da República, disse que o Governo Bolsonaro está “preocupado e quer neutralizar” o debate do Sínodo da Amazônia. 

O evento  que tem como tema “Amazônia: novos caminhos para a Igreja e para uma ecologia integral"  é uma resposta do Papa Francisco à realidade daquela porção do Povo de Deus, especialmente os indígenas, frequentemente esquecidos e sem perspectivas de um futuro sereno por causa da crise da Floresta Amazônica, pulmão de capital importância para nosso planeta.

O fato nos faz lembrar os tempos da ditadura militar, quando alguns religiosos como dom Ivo Lorscheiter, dom Paulo Evaristo Arns e dom Hélder Câmara eram vistos como possíveis inimigos a serem vigiados e perseguidos pelo governo militar.

Quando as medidas mais repressivas dos Anos de Chumbo estavam instauradas, dom Ivo Lorscheiter – ex-bispo auxiliar de Porto Alegre (RS) e ex-bispo da Prelazia gaúcha de Santa Maria – optou claramente por um lado e definiu sua atuação como oposição e resistência a um governo autoritário, discordando das torturas e violações dos direitos humanos.

Seus movimentos o tornaram visado tanto para aqueles que viam nele um porto-seguro contra a ditadura, como para os militares que viam nele um ferrenho opositor, pela sua atuação eclesiástica, política, social, e pela sua luta em defesa dos direitos humanos.

Dom Ivo Lorscheiter foi o último bispo brasileiro nomeado pelo papa Paulo VI, no decorrer do Concílio Vaticano II, em 1965. Foi secretário-geral e depois presidente da CNBB, durante o período mais obscuro do Regime Militar Brasileiro.

Na época, apoiou vários defensores da Teologia da Libertação, além de bispos e sacerdotes progressistas, entre eles o seu próprio primo, o cardeal Aloísio Lorscheider, que foi por muito tempo arcebispo de Forlaleza (Ceará). 

Em sua gestão na CNBB, assuntos como reforma agrária, orientações sobre atuação política, organizações populares, comunidades eclesiais de base (CEBs), Teologia da Libertação, entre outros, pautavam os diálogos institucionais na Igreja. 

Um bom número de bispos, entre eles o poeta, profeta do povo e bispo emérito da Prelazia de São Félix do Araguaia (Mato Grosso), dom Pedro Casaldáliga, apropriavam-se destes temas sociais e tinham dom José Ivo Lorscheider como um referencial.

Dom Ivo Lorscheiter adotou verdadeiramente o seu lema episcopal 'Nova et Vetera', ou seja “Coisas novas e Velhas”, passagem bíblica extraída de Mateus 13,52. Desafiou-se ao “novo” e discordou quando o papa João Paulo II e o cardeal Ratzinger manifestaram-se contrários à Teologia da Libertação e à atuação do então frei Leonardo Boff no Brasil.

Seu maior desafio foi o de defender seus posicionamentos diante de um governo autoritário, tendo a coragem de dizer o que pensava com a audácia profética, apoiar as causas dos pobres, dos perseguidos, dos injustiçados, desafios permanentes em um período de chumbo.

Ele fez a CNBB assumir uma audaciosa coragem, sem com isso perder a Caridade. Sua vida se dividiu em anunciar, denunciar e esperançar. Anunciou o Amor de Deus para todos e todas, denunciou as injustiças que o povo sofreu pelos ditadores e esperançou tempos de paz, solidariedade, fraternidade, vida digna. 

Esse tripé de anúncio-denúncia-esperança são os mais célebres ensinamentos de dom Ivo Lorscheider em vida. Mesmo depois de 12 anos de sua Páscoa definitiva, completados nesta terça-feira (5), seus exemplos repercutem na vida daqueles que acompanharam a sua trajetória.