domingo, 22 de abril de 2018

Conflito de ideologias

Por Antonio Carlos Lua

O sistema normativo processual penal brasileiro passa, no momento, por uma reforma legislativa, que – à luz da Constituição Federal – demanda uma verdadeira filtragem constitucional, eliminando dispositivos inseridos por leis extravagantes, com rupturas com o velho estilo de ver e agir, tornando o processo penal mais efetivo, para aproximar-se do ideal de Justiça exigido pelo Direito Penal pensado desde o século XVIII pelo jurista italiano Cesare Beccaria.

Elaborado sob a égide dos influxos autoritários do Estado Novo, o Código de Processo Penal é do ano de 1941. Nasceu durante o governo de Getúlio Vargas, impregnado de conceitos fascistas. Atravessou o populismo de João Goulart e o Regime Militar, numa época em que as ditaduras dominavam o mundo, com sistemas totalitários na Alemanha nazista, na Itália fascista, no Japão dos imperadores. É por isso que temos a legislação processual penal mais atrasada da América Latina.

Espera-se que a reforma proporcione uma adaptação à realidade social, promovendo mudanças importantes, principalmente no âmbito dos recursos, vistos como excessivos por entravar o andamento célere e efetivo do processo penal, causando desvirtuamentos  e um infindável número de contradições, antinomias e conflito de ideologias.

Na sistemática atual, os defensores dos acusados em processos criminais preferem muitas vezes se utilizarem das chamadas “brechas da lei”, que hoje são muitas, a se preocuparem com a defesa efetivamente de mérito dos réus.

Ou seja, em vez de procurar discutir se o réu é inocente ou culpado, muitas vezes vale mais a pena para a defesa criminal analisar as possibilidades de procrastinação do processo por meio dos diversos recursos disponíveis, atrasando a sua tramitação até desencadear na chamada prescrição penal, que hoje já progrediu para se falar até na tese da prescrição virtual.

Entre as principais mudanças trazidas pelo projeto em discussão na Câmara Federal destaca-se a  limitação aos embargos declaratórios, que não obstante sua grande importância para o processo penal e civil quando bem utilizados, hoje são vistos como um instrumento recursal que permite a fácil manipulação por parte dos operadores do Direito que desejam postergar o andamento natural do processo.

Os embargos, como se sabe, são utilizados para atacar uma decisão do magistrado (algumas interlocutórias ou mesmo sentença e acórdão) com o objetivo de sanar omissões, contradições, dúvidas ou obscuridades contidas na decisão e de propiciar o prequestionamento de matérias a serem levadas à apreciação do Superior Tribunal de Justiça ou do Supremo Tribunal Federal.

Desta forma, por serem de fácil utilização, os embargos declaratórios muitas vezes são interpostos sem a real necessidade procedimental, apenas com o intuito protelatório, uma vez que no atual ordenamento nacional não existe uma limitação para o seu uso.

O advogado de um réu pode, por exemplo, atacar uma sentença condenatória com dez embargos declaratórios seguidos, cada um atacando um ponto diferente da decisão e necessitando de um novo pronunciamento judicial, o que naturalmente demanda tempo para análise e solução por parte do juiz, já abarrotado com outros processos.

Com a mudança que poderá vir com a Reforma do Código de Processo Penal os embargos declaratórios estariam limitados a apenas uma utilização em cada instância.

Assim, utilizando-se o mesmo exemplo da sentença condenatória, seria possível que o advogado do réu opusesse apenas um embargo declaratório contra esta sentença para atacar tudo que fosse possível, o que seria resolvido em apenas uma nova decisão do juiz criminal, já exaurindo todo o feito nesta seara e atraindo a coisa julgada, caso não haja possibilidade de outros recursos.

A expectativa é de que as mudanças não parem por aí e prossigam no intuito de acompanhar a rápida evolução da sociedade moderna, buscando sempre aliar a celeridade com o devido processo legal, valores indispensáveis para o reconhecimento e respeito aos Direitos Humanos.

domingo, 15 de abril de 2018

Inimigo invisível

Por Antonio Carlos Lua

O grampo ilegal continua sendo um tema espinhoso e delicado no Brasil, onde mais de 600 mil pessoas estão com o telefone grampeado fora dos limites da lei, ou seja, de forma clandestina, sem autorização judicial, ficando vulneráveis a uma perigosa rede de chantagem, extorsão, intimidação e constrangimento da qual é difícil escapar, pois a luta é contra um inimigo invisível.

Assim como no filme “A Vida dos Outros”, na clássica obra “1984”, de George Orweell” , a vida privada, também, praticamente inexiste no Brasil, onde fazer escutas clandestinas faz parte do dia-a-dia dos criminosos, que não deixam vestígios nem impressões digitais.

A prática de chantagem, extorsão e outros crimes graves cria um clima de terror, que se projeta na promiscuidade das sombras, controlando o que se passa, vendo sem ser visto, gerando o medo, que como dizia o escritor e contista, Guimarães Rosa, é uma pressa que vem de todos os lados. Ou seja, é um medo generalizado de todos em relação a todos.

Grampear clandestinamente conversas telefônicas no Brasil se tornou tão corriqueira que é comum encontrar anúncios em jornais dos grandes centros do país em que agências de detetives prometem revelar tudo que seus clientes desejem conhecer, incluindo as anedóticas suspeitas de infidelidade conjugal.

Vivemos um período de perda de parâmetros e de princípios. Não se respeita o direito à privacidade. Chegamos a um ponto em que até as instituições máximas do país ficam sob ameaça.  

O país perdeu sua compostura. Caímos num Estado de bisbilhotagem incompatível com os próprios fundamentos da civilização, que se constitui uma grave ameaça ao Estado Democrático de Direito. 

O grampo ilegal é um retrocesso imensurável para uma nação que se diz livre e democrática. Como disse, em certa ocasião, o jurista e membro da Academia Brasileira de Letras, Celso Lafer, o direito à vida privada é uma das vertentes da liberdade.

Essa liberdade enseja a cada ser humano – dentro dos limites de um Estado Democrático de Direito – uma porção de existência independente do controle social. 

Um dos meios jurídico-políticos de garantir essa liberdade é o combate à ilícita espionagem secreta que a ameaça.

domingo, 1 de abril de 2018

Privilégio antirrepublicano


Por Antonio Carlos Lua

O Estado ainda é a principal fonte de recursos para os partidos políticos que, apesar de não poderem mais receber doações de pessoas jurídicas, vão dispor de R$ 2,6 bilhões para bancar as campanhas eleitorais este ano. 

O montante é a soma entre o valor do Fundo Partidário  de R$ 888,7 milhões   e do novo Fundo Eleitoral   de R$ 1,7 bilhão  aprovado pelo Congresso Nacional. 

O Fundo Partidário – filho da malsã ideologia que historicamente predomina no Brasil – é uma das inúmeras possibilidades oferecidas à classe política para auferir ganhos e espoliar a “Viúva”, ou seja, o Estado brasileiro, com as estratégias transformadas em lei no Congresso Nacional.

Privilégio antirrepublicano, o Fundo Partidário – com seu caráter vultoso em momento de imensas dificuldades econômicas – é gasto pelas agremiações políticas de modo obscuro e viciado sem fomentar sequer o desenvolvimento partidário. 

É dinheiro demais que sai de áreas prioritárias para alimentar grupos de privilegiados que dominam as cúpulas partidárias. A dinheirama repassada pelo Fundo Partidário às direções nacionais dos partidos políticos dificilmente chega à ponta, aos órgãos partidários municipais.

Muitos dirigentes de partidos são comprovadamente mantidos com o dinheiro do Fundo Partidário e não querem nem imaginar em largar essa generosa verba em algum momento.

Quanto menos organizada e democratizada for a estrutura de cada agremiação partidária, maiores sãos os abusos e vícios na utilização desses recursos eminentemente públicos.

A transferência de recursos públicos aos partidos políticos é juridicamente questionável, uma vez que a Constituição Federal coloca as agremiações partidárias no rol das entidades jurídicas de direito privado, uma típica sociedade civil sem fins lucrativos, inclusive com a inscrição do seu ato constitutivo – o seu estatuto – no registro civil de pessoas jurídicas.

O partido político é uma sociedade civil de pessoas com iguais direitos e deveres, unidas em torno de um ideário político comum, cujo objetivo principal é atingir o poder político, ou influenciá-lo tanto quanto for possível, para permitir a gestão e o controle do Estado. Sendo assim, como é que um ente de direito privado, mantido com verbas públicas, pode utilizar esses recursos em práticas viciadas que beneficiam tão somente cúpulas partidárias insaciáveis que nadam em nosso dinheiro?

O pior de tudo é que gostemos ou não dos partidos ou dos políticos que neles militam, quem acaba pagando pela sobrevivência dessas agremiações somos todos nós, indistintamente, independentemente de concordarmos ou não com suas linhas políticas, com as ideologias que pregam, com os programas que propõem. 

Obra surreal, o Fundo Partidário abastece os cofres dos partidos políticos com as próprias multas que essas siglas pagam quando condenados pela Justiça por práticas ilegais. Ou seja, quanto mais ilegalidades cometerem, mais multas enriquecem o Fundo para voltarem para os próprios partidos políticos. 

Embora os recursos destinados às legendas sejam para financiar campanhas, contratar funcionários, manter fundações de pesquisa, as prestações de contas quase sempre incluem despesas pessoais de dirigentes, bebidas alcoólicas, jantares em churrascarias, uso de jatinhos, ou seja, gastos irregulares.

Somente em 2018, o bilionário Fundo Partidário retirou R$ 472,3 milhões originalmente destinados para a educação e a saúde. Além do Fundo Partidário, há ainda outra grande benesse para os partidos políticos, que é o horário eleitoral “gratuito”, que, na verdade, não tem nada de gratuito. 

A propaganda partidária gratuita que invade os intervalos comerciais seguidamente e a propaganda eleitoral gratuita que buzina nossos ouvidos são exibidas sob a pecha de horário eleitoral “gratuito” porque, de fato, as legendas não precisam desembolsar um único real para exibi-las, o que não significa, é claro, que ninguém pague.

Gratuito para as legendas, o tempo de propaganda partidária é pago pelo governo federal na forma de isenção de impostos para as emissoras de rádio e televisão.