domingo, 29 de março de 2020

Um divisor de águas em nossas vidas

Antonio Carlos Lua

Vivemos um trauma coletivo que despedaça violentamente a nossa representação comum do mundo, com a dimensão angustiante do inesperado, do imprevisível, do ingovernável, num evento mundial traumático, que impossibilita qualquer forma de defesa, nos fazendo redescobrir que, além do individualismo, somos um conjunto e temos responsabilidades coletivas. 

Ninguém poderia imaginar que o mundo poderia parar e a morte desenfrear-se. Ninguém estava preparado para uma emergência como a que estamos vivendo. Um divisor de águas foi cavado nas nossas vidas. Como será depois? Somos  convidados, decididamente, a pensar no tempo do pós-trauma. 

Embora fechados em nossas casas e petrificados pelo medo que restringe forçosamente o nosso horizonte de mundo, vamos olhar além, para responder de forma poderosa à lição do trauma do coronavírus, extraindo dessa inesperada potência negativa uma força nova e libertadora. 

Afinal, as crises profundas sempre nos revelam uma oportunidade extraordinária de reinício, que na frente nos possibilitará gastar todo o tempo que resta das nossas vidas com apenas o essencial, eliminando o supérfluo e a utopia abstrata, para, assim, cultivarmos a potência vital do essencial.

Após o trauma, o reinício deve ser audacioso para que a experiência negativa do coronavírus possa se converter em uma oportunidade afirmativa, inspirando a dimensão generativa das nossas escolhas políticas futuras e assim nos livrar do insustentável vírus hospedado no Palácio do Planalto que infecta a sociedade, com teorias da conspiração paranoicas e explosões de racismo.

A orientação do presidente da República, Jair Bolsonaro, para quebrar a quarentena está localizada no extremo oposto do espectro de alternativas de combate ao Covid-19, ao levar em consideração apenas os aspectos econômicos nos cálculos voltados a estabelecer as políticas de saúde pública, mesmo que isso possa custar centenas de milhares de vidas.

Em uma era da mobilidade rápida, uma resposta inadequada de um presidente da República ameaça todos os brasileiros. O que precisamos é de uma liderança eficaz no topo, uma liderança que atenda à ciência, trabalhe de maneira colaborativa e foque no bem comum, levando em consideração os diagnósticos e os pareceres médicos e científicos.

Enquanto as pessoas estão morrendo, o Governo Federal foge da sua obrigação ética de dar uma resposta robusta e objetiva diante da pandemia e passa a dirigir sua preocupação apenas para o golpe na economia, a recessão, a falta de crescimento do Produto Interno Bruto e coisas do tipo.

Nada pode nos dar certeza de que o coronavírus não possa se tornar mais letal ou contagioso, embora estejam sendo feitos esforços para evitar isso pela comunidade científica que, mesmo com verbas públicas minguadas para pesquisas, pode ser a estrada mestra para nos reconectar com uma realidade em constante mudança. 

Nada garante que quando as medidas de emergência expirarem a situação retorne à normalidade. Continua sendo vital fazer agora todo o possível para esmagar a curva de contágios, diluindo e distribuindo o impacto das pessoas severamente afetadas pelo vírus ao longo das semanas, para que nossos hospitais possam atender elas.

Em tempos de emergência sanitária, é essencial continuar a confiar nos números e acreditar na ciência, que tem o método para estudar o fenômeno do contágio e descobrir a cura e a vacina. 

Nesse sentido, o Brasil poderia organizar uma força-tarefa permanente para estar pronta a enfrentar emergências semelhantes no futuro, otimizando os procedimentos sanitários e aprimorando as tecnologias. 

Para isso, é necessário ouvir a ciência e os cientistas com senso de responsabilidade e seriedade, respeitando e adotando, com transparência, medidas drásticas, para evitar que a situação piore.

terça-feira, 24 de março de 2020

Desenvolvimento predatório favorece a emergência de doenças


Antonio Carlos Lua

Em meio ao medo e à emergência para encontrar saídas para a crise gerada pela pandemia do coronavírus, o Sistema Único de Saúde (SUS) tem sido posto na arena federal como a grande arma institucional para enfrentar o caos. 

Na verdade, o SUS é o eixo da resposta brasileira e a única e grande esperança diante da presença do coronavírus, por tratar-se de um sistema com acesso universal, capilaridade e notável cobertura geográfica.Porém, há uma contradição gritante do governo brasileiro na hora de definir o que é prioridade. 

Da pandemia de H1N1, em 2009, até a chegada do coronavírus, o Brasil perdeu 34,5 mil leitos de internação, destinados a pacientes que precisam ficar por mais de 24 horas dentro de um hospital. Essa estrutura poderia atender uma boa parte dos casos mais graves de contágio pelo coronavírus.

A injeção de recursos anunciada pelo Governo Federal pode tornar o Sistema Único de Saúde mais apto a esta resposta pontual. No entanto, não podemos esquecer que nos últimos anos o SUS vem sofrendo impactos negativos contínuos. Os investimentos e ações pontuais de agora não resolverão os problemas estruturais. 

Logo que terminar a emergência, é preciso investir no  fortalecimento da saúde de maneira contínua e prioritária, até porque não devemos esquecer que outras emergências virão, cada vez mais e com maior frequência, exigindo clareza sobre o que compõe investimentos e ações concretas que, de fato, venham garantir segurança em termos sanitários e de saúde. 

A saúde tem determinantes sociais poderosos e sem democracia, sem ciência, sem educação, sem renda, sem políticas sociais e sem direitos, seguiremos muito doentes, em diversos sentidos.

As dificuldades enfrentadas com o coronavírus no Brasil mostram que com um sistema de saúde gerador de grandes iniquidades, as doenças podem jogar rapidamente milhares de pessoas para a morte. 

Quando a detecção de uma doença depende do pagamento de uma consulta, fica evidente que não há segurança sanitária para ninguém, nem mesmo para os ricos cuja segregação social voluntária raramente consegue ser completa.

O Brasil não possui um sistema de saúde eficiente devido ao efeito devastador das políticas de austeridade sobre os sistemas de saúde, que implicam na desvalorização dos profissionais de saúde e no descrédito da ciência, que não  vem tendo no país o devido respaldo oficial 

No Brasil, é avassalador o potencial de destruição de vidas causado pela ascensão ao poder de líderes messiânicos cujos interesses eleitorais primam sobre a proteção da saúde pública, área na qual não deve haver teto de gastos por ser uma prioridade nacional. 

O desenvolvimento econômico predatório favorece a emergência de doenças pela produção massiva de alimentos derivados de animais criados em condições degradantes e extremamente favoráveis ao desenvolvimento de doenças sérias e mortais.

As atuais prioridades do governo brasileiro não coincidem com as da população. Mesmo com os avanços tecnológicos, vários fatores sociais comprovam que o Brasil não é capaz de responder aos desafios da proteção médica da população, com a redução drástica de investimentos e a privatização sorrateira do sistema de saúde. 

Sucateado ao longo dos anos, nosso sistema de saúde gera filas, disfunções, sofrimento e mortes evitáveis. Abriga profissionais mal remunerados, impotentes diante da escassez de meios materiais e de valorização social, assomados pela enorme demanda social.

O descrédito das autoridades sanitárias vem gerando uma crise sem precedentes no campo da ordem pública. Antes do coronavírus, o Brasil sofreu com dengue, zika, chikungunya e se viu às voltas com doenças que pareciam erradicadas, como, por exemplo, o sarampo. 

O reaparecimento dessas doenças revela erros na condução de políticas públicas em saúde no país. Um dos maiores erros tem sido o enfraquecimento dos programas de prevenção, com a desvalorização de seu escopo e cortes de financiamento. 

A estratégia de saúde da família, os agentes comunitários de saúde e de endemias, os programas de imunização e os equipamentos de saúde em regiões periféricas foram desprestigiados nos últimos anos e estão ameaçados em diversos lugares do país, sem que seus efeitos fossem discutidos com a merecida seriedade.

domingo, 22 de março de 2020

A bolha protetora de riqueza foi destruída.

Antonio Carlos Lua

O coronavírus não conhece fronteiras e se espalhou pelos países afetando a todos, sem distinção entre ricos e pobres. Ao contrário das tragédias do passado, como a ‘Peste Negra’ e a ‘Gripe Espanhola’, a atual pandemia afeta a humanidade inteira, sem diferença de nacionalidade, cultura, língua e religião, confirmando, de forma dramática, a nossa vulnerabilidade.

O contágio espalha o vírus temido por toda parte, nas mãos, na boca, no dinheiro, nas maçanetas das portas, nas roupas, nos transportes públicos, enfim, em todos os objetos do mundo. 

Dos seus efeitos devastadores podemos constatar que a presumida bolha protetora de riqueza está sendo destruída. Mas não é boa a ideia de que se deva aprender com as desgraças, depois de esbarrarmos nelas. Ficará sempre na nossa memória essa difícil experiência que estamos vivendo juntos.

É quase impossível saber como sairemos disso. Apesar do crescimento das riquezas e das conquistas tecnológicas, continuamos expostos às catástrofes, algumas delas provocadas por nós mesmos com a poluição irresponsável e outras pelas pandemias que consistem em calamidades.

Emergência Global 

Todos estamos inseridos num contexto de emergência global, que exige também uma resposta igualmente global, com medidas eficazes, a fim de evitar que a variedade dos procedimentos adotados favoreçam o contágio e multipliquem os danos para todos. 

Nos mostramos despreparados para essa emergência. O coronavírus acabou com a dissimulação de gestões públicas catastróficas submissas ao capitalismo financeiro dominante, mostrando que sempre há mais dinheiro para os bancos e cada vez menos leitos e profissionais da saúde para os hospitais. 

Há décadas que o bem público está comprometido com o setor hospitalar, pagando o preço de uma política que favorece os interesses financeiros em detrimento da saúde dos cidadãos. 

Ameaça iminente

Diante do perigo, nossa primeira reação é a fuga, afastando-se da ameaça iminente o mais rápido possível, mobilizando nosso distanciamento. Mas no caso do Coronavírus a ameaça não é localizável. Ela foge de qualquer determinação. Sua presença é invisível. 

Por outro lado, há uma expectativa de que este seja um momento de redescoberta dos valores primários, do diálogo e da união. Há uma esperança para a qual todos somos chamados a colaborar, reconhecendo e protegendo os valores da existência, não somente quando estamos em extremo perigo. Afinal, somos todos iguais. Não temos receitas de salvação. 

Os países se movem de modo esparso, cada um adotando estratégias diferentes, cujas consequências se tornam visíveis nos terríveis números de mortos e infectados. 

As nações aplicam medidas diferentes, às vezes totalmente insuficientes como as tomadas nos Estados Unidos e na Inglaterra, cujos governos estão subestimando o perigo para não prejudicar as suas economias. 

Ruptura antropológica

Estamos diante da passagem forçada da angústia ao medo, diante de fenômeno ameaçador. O perigo é percebido em todos os lugares. A estratégia de evitar o perigo se torna quase impossível justamente por causa da indeterminação do fato ameaçador. 

A crise do coronavírus é pós-moderna e provoca uma ruptura antropológica no estatuto geral da pessoa. Nosso contato com o mundo hoje é semelhante ao que acontece com o fenômeno ‘hikikomori’, onde adolescentes japoneses vivem isolados e se recusam a sair de casa, mas se comunicam de forma intensa com o mundo inteiro através das redes sociais. 

Não vemos mais os rostos por trás das máscaras. A própria voz está suspensa, pois as interações vivas se dão à distância. Não há mais cara a cara. 

Quando a crise acabar, haverá uma alegria por existir. As primeiras horas serão muito intensas. Será um momento de encontro com os sentidos e com o mundo exterior. Vamos nos dar conta de que se locomover é um grande privilégio que havíamos esquecido.

Elemento perturbador

Não é por acaso que já estão sendo encontradas em pacientes a multiplicação das crises de pânico ou de comportamentos fóbicos caracterizados por afastamento social, autorreclusão, isolamento, medo de qualquer forma de contato. 

Do ponto de vista estritamente relacionado ao medo, a pandemia põe em xeque qualquer forma coletiva poderosa de defesa contra ameaças. Diante do alto risco mortal, todos se sentem impotentes e expostos ao flagelo da doença, tendo a  morte como protagonista absoluta e perturbadora da cena.

Por outro lado, a pandemia nos mostra que a ideologia da fortaleza autossuficiente é ilusória, frustrando impiedosamente aqueles que se empenham arduamente para bloquear os processos rumo a uma maior integração entre os países. O coronavírus frustra a evidente paixão de alguns governantes pelos muros, pelas barreiras, pela militarização de fronteiras. 

Se a presença do estrangeiro não habita o além de nossas fronteiras, ela se espalha entre nós e se insere em nossos corpos. Mais do que nunca, são necessários esforços comuns – hoje para combater o vírus, amanhã para se recuperar economicamente. 

A defesa paranoica diante da ameaça dos imigrantes se desmembrou, dando origem a uma fragmentação da massa e, consequentemente, aos fenômenos do pânico e do retiro social. O sentimento sólido produzido pela defesa paranoica foi substituído pela fragilidade e na falta de ação, com a presença inconsciente ou consciente da morte. 

Virtude heroica  

A crise do coronavírus expôs contradições quando o médico chinês, Li Wenliang, do Hospital Central de Wuhan, foi impedido de cumprir seu dever de fazer seu alerta sobre o poder destrutivo do coronavírus. Cumprindo o seu dever profissional, ele foi punido e considerado culpado de espalhar mentiras perturbadoras na China. 

A figura do jovem oftalmologista – que morreu da doença que tentara, sem sucesso, impedir de se transformar em pandemia – marca época. O caso do coronavírus eclodiu após uma longa série de escândalos na área da saúde na China. 

A virtude heroica do médico Li Wenliang expôs os erros políticos de Xi, o grande imperador. Para um presidente que acumulou todos os poderes como nunca desde Mao Tsé Tung, esse é obviamente o estado máximo de alerta.

Li Wenliang foi a primeira pessoa a alertar o público sobre o surto de coronavírus de Wuhan. Em 30 de dezembro, o médico enviou uma mensagem para colegas alertando sobre um possível surto de doença respiratória com sintomas semelhantes aos da Síndrome Respiratória Aguda Grave, (SARs-CoV), que matou mais de 700 pessoas no início dos anos 2000. 

Li Wenliang recomendou aos companheiros de trabalho que usassem equipamentos de segurança para evitar a infecção. O médico fez o alerta após perceber que, naquele fim de ano, o hospital no qual trabalhava já tinha recebido sete casos de infecção com sintomas graves. 

Em 3 de janeiro de 2020, a polícia de Wuhan convocou Li Wenliang e o advertiu por estar fazendo comentários falsos na Internet. Ele foi forçado a assinar uma carta na qual prometia não divulgar informações sobre a doença. 

Em 6 de fevereiro de 2020, ele morreu de uma infecção por coronavírus em uma sala de unidade de terapia intensiva (UTI). Li Wenliang foi contaminado enquanto tratava uma paciente infectada. 

Ele contou em seu perfil numa rede social, que, em 10 de janeiro de 2020, começou a tossir. No dia seguinte passou a ter febre e, dois dias depois, foi para o hospital. Seus pais também ficaram doentes e foram internados.

Li Wenliang disse que os primeiros exames deram negativo para coronavírus. Mas, em 30 de janeiro de 2020 ele postou novamente dizendo que um teste mais específico identificou o vírus. 

No fim de janeiro, o médico publicou em uma rede social chinesa um pedido de desculpas do governo chinês, que admitiu falha na resposta à epidemia do novo coronavírus.

segunda-feira, 9 de março de 2020

Uma nova cultura política


Antonio Carlos Lua

Diante de uma das maiores crises políticas já enfrentadas no país, a tarefa mais urgente no momento é repensar o Brasil, revendo, com serenidade, consciência, lucidez e — acima de tudo — com conhecimento, nossa experiência nacional. 

Esta é uma tarefa básica, fundamental. Temos de nos conhecer cada vez mais, em vez de ficar repetindo clichês falsificadores da nossa trajetória no tempo.

A crise política brasileira — que tem uma de suas raízes fincadas nos partidos políticos — é fortalecida pelas forças populistas que se convertem num rito vazio na hora da formulação das políticas públicas. Elas corroem a representatividade e fragilizam a democracia, ao dizer uma coisa e fazer outra, num jogo cínico e manipulador.

Essas forças retrógradas impedem que viremos a página para entrarmos no capítulo inaugural de uma nova cultura política e de um novo sistema de poder, construindo um país diferente, coisa que não interessa àqueles que tiveram a oportunidade histórica de dar o pontapé inicial nessa partida e não o fizeram por incompetência, rasurando o mapa político da democracia.

O que se defende de maneira rápida  mas nem por isso irrelevante — é a necessidade de configuração de uma política com a cidadania se constituindo como tendência à autorrepresentação, aposentando os velhos expedientes surrados e apodrecidos. 

A mudança até agora não foi concretamente sinalizada, mas há uma reivindicação adormecida, não extinta, que mais cedo ou mais tarde, promete subir acesa ao centro do palco político nacional, para nos levar a repensar a sociedade e reinventar o Brasil como Nação.

Não estamos realmente encarando, em toda a sua complexidade, a experiência nacional, com a história oficial substituindo mentiras antigas por mentiras novas. 

No quintal da política brasileira, as plantas crescem, mas não se sustentam. O agricultor remove as plantas e coloca novas mudas, mas o problema persiste, pois a terra não foi revolvida e o substrato continua comprometendo o pleno desenvolvimento da planta. 

Vivemos uma crise política sem precedentes, que coloca em xeque todo o sistema político estabelecido. Nossos partidos se renderam à lógica do corporativismo. Eles não representam os interesses da sociedade e tão somente os seus próprios interesses. 

A queixa não é apenas relativa à baixa qualidade da nossa atual representação política, que é, sobremaneira, entristecedora, com o deficit democrático. Na verdade, nós não temos partidos políticos. Temos partidos eleitorais — e só. 

Muitos fatores parecem nos levar a um descolamento da realidade social, que culmina na falta de adesão da população aos programas partidários, uma vez que estes não procuram saída alguma para a crise nacional.

Os partidos não encarnam o interesse nacional e parecem querer tudo, menos pensar. O pensamento — principalmente, o pensamento livre, nada dogmático, nada subserviente a dogmas e princípios apriorísticos — virou uma espécie de maldição e é estigmatizado.

Nossas agremiações partidárias se acham infalíveis e nunca reconhecem os erros e nem os crimes gravíssimos que cometem contra a democracia e o povo brasileiro. Pairam acima dos mortais e falam sobre coisas reais numa linguagem que ninguém entende, sem nenhum sinal de autocrítica. 

Estão em total desconexão com a realidade, com as pessoas, mas, mesmo assim, superestimam o seu lugar, sua força, em detrimento de uma leitura clara do real histórico político brasileiro. 

Chegamos ao grau absoluto da redundância política e não vamos sair disso se não rediscutirmos impiedosamente as idiotices que fizeram o país alcançar tão nítido e espetacular fracasso no campo político-democrático.

Os partidos políticos brasileiros só toleram a democracia na medida em que possam controlar o aparelho estatal e, a partir de então, fazer o que bem quiser com a sociedade. Jamais lutam pela democracia e criam uma fantasia bem distante da realidade. Eles olham a democracia como instrumento de manipulação alienante. 

Essa realidade aparece clara e escandalosamente na frente de nossas caras com a simbiose entre o público e o privado que reina soberanamente na política nacional. Exemplos extremos da promiscuidade entre o público e o privado não faltam no país.

Muita coisa aconteceu e vem acontecendo na história política do Brasil, O substrato político presente nos faz viver uma conjuntura de retrocessos, narrada no livro ‘Raízes do Brasil’, de autoria do jornalista, historiador e crítico literário, Sérgio Buarque de Holanda, que continua muito atual, fornecendo chaves de leitura para pensarmos sobre o vazio da política representativa que se vive no momento.

O contexto em que surge ‘Raízes do Brasil’ é a década de 1930. Desde lá, continua no ar a pergunta sobre o pacto político. No livro, Sérgio Buarque de Holanda chega a dizer que “a democracia no Brasil sempre funcionou como um lamentável mal-entendido”. Uma aristocracia rural e semifeudal importou-a e tratou de acomodá-la, onde fosse possível, aos seus direitos e privilégios. 

Em um momento em que o Brasil passa por crises em distintas ordens – notadamente nos aspectos político, econômico e ético – a obra reveste-se de particular significado, propondo um outro olhar sobre nossa história, com uma interpretação original da emergência de novas estruturas políticas. 

Por que continuamos a insistir nos erros que constituem esse mal-entendido apontado no “Raízes do Brasil”, quando este aborda aspectos singulares, próprios da organização sociopolítica do país? Como pensar — e construir — outra democracia no Brasil? 

Não temos como desdobrar o futuro porque não possuímos dom premonitório, mas podemos afirmar que o Brasil está encolhendo cada vez no campo democrático e, por isso mesmo, deve ser rigorosamente repensado, dando-se início ao processo de reafirmação da ideia sobre o que é democracia.

O simples fato de repensar o Brasil colocará em pauta a reapresentação da ideia democrática em condições novas. Isso pode até parecer um discurso velho, antiquado, mas diante do que estamos vendo é extremamente atual como muitos célebres conceitos de Sérgio Buarque de Holanda em “Raízes do Brasil” sobre uma nova forma de fazer política no país. 

Ou repensamos o Brasil de forma inovadora ou não haverá mais lugar para nós. Diante da incompatibilidade entre as doutrinas políticas e a realidade nacional, faz-se necessário organizar a desordem política no país.