domingo, 18 de março de 2018

A versão moderna do púlpito

Antonio Carlos Lua

A Igreja Católica – consciente da força e do alcance da comunicação – mantém, há 87 anos, um poderoso instrumento no anúncio da Boa Nova, que com o tempo se transformou na versão moderna e eficaz do púlpito.

Trata-se da Rádio Vaticano que – usando a tecnologia para criar novas formas de socializar – continua abrindo horizontes à tarefa evangelizadora de construir comunhão e estabelecer relações fraternas.

Vencendo as barreiras do tempo e do espaço, a Rádio Vaticano – ao longo de quase nove décadas – vem difundindo informações e conhecimentos, mostrando que comunicação e evangelização são duas faces da mesma moeda e, por esta razão, a imprensa deve ser levada em conta em todos os aspectos pela sua força em ampliar, de maneira incomensurável, a capacidade das pessoas se comunicarem.

A história da Rádio Vaticano começa em 1931, quando o cientista italiano, Guglielmo Marconi – que registrou, em 1896, a patente da invenção do rádio – foi convocado pelo Papa Pio XI para implantar uma emissora para a Santa Sé, tendo como principal objetivo falar livremente – além das fronteiras do Vaticano – sobre os perigos do totalitarismo.

Utilizando duas frequências e um transmissor de 10kw, a Rádio Vaticano entrou no ar às 16h49, do dia 12 de fevereiro de 1931, quando o Papa Pio XI leu um texto em latim que dizia: "Ouça, ó céus o que digo! Escute, ó terra, as palavras que vem de minha boca. Ouçam, povos de terras distantes".

A primeira transmissão da rádio teve repercussão no mundo inteiro, merecendo, na época, inclusive, registro do jornal norte-americano "The New York Times" que, em editorial, classificou a transmissão como "um milagre da ciência e, não menos, um milagre de fé". 

Quem também deu grande repercussão ao acontecimento foi o jornal inglês "The News Chronicle", estampando em sua primeira página que "pela primeira vez, a voz de um Papa era ouvida em Londres e por milhões de católicos no mundo. 

O engenho de Marconi proporcionou, na época, ao Sumo Pontífice, um maior exercício de seu ministério apostólico, anunciando o Evangelho a todos os povos, servindo melhor as unidades da Igreja Católica, que logo percebeu que o rádio era um meio insubstituível para difundir a palavra de Deus no mundo.

A partir do dia do seu lançamento, a rádio tornou-se uma emissora na vanguarda da técnica e dos tempos, prestando relevantes serviços a pessoas dos mais diferentes continentes.

Durante a II Guerra Mundial, a Rádio Vaticano transmitiu informações com programas diários em mais de dez idiomas, incluindo o italiano, francês, inglês, espanhol, alemão e, em duas ou até três vezes por semana, em português, polonês, ucraniano, lituano e russo.

Mesmo com as dificuldades, principalmente aquelas de caráter político, a emissora difundiu, sem interrupções, a palavra da Igreja Católica, representando a voz que estava acima das partes, talvez uma das únicas dispostas a proclamar, pelos seus microfones, a verdade em tempos de morte e violência.

A Rádio Vaticano se colocou a serviço dos familiares dos refugiados e dos militares dispersos ou prisioneiros, transmitindo mais de um milhão de mensagens, equivalentes a 12 mil horas de transmissão nos anos de guerra.

Com o fim da guerra, as transmissões foram intensificadas aos países oprimidos. Na Guerra do Kosovo, a emissora prestou este mesmo tipo de auxílio em apoio às vítimas do conflito.

O conteúdo da emissora – que oferece um panorama das notícias internacionais, enfatizando problemáticas e temas relacionados com a liberdade e os direitos humanos, sobretudo o direito à vida – é preparado em 45 idiomas, muitos deles minoria, como a Somali ou Urdu, levando a voz da Igreja a diferentes culturas, para que todos se sintam mais próximos ao Sumo Pontífice.

domingo, 11 de março de 2018

A falência do atual modelo de inquérito policial


Por Antonio Carlos Lua

Enquanto a solução de crimes investigados nos Estados Unidos e no Chile alcança a marca de 90%, no Brasil a resolução dos registros criminais chega apenas ao tímido percentual de 4%. 

O dado – extraído de um estudo do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) – levanta o debate sobre o sistema de investigação baseado no atual modelo de inquérito policial, que se encontra em profunda crise, devido às transformações sociais. 

Criado na época do Brasil Império, pelo Decreto 4.824/1871, o inquérito policial mantém basicamente os mesmos moldes de sua primeira definição legal e tornou-se incompatível com uma sociedade complexa como a atual, ensejando a construção de um novo modelo de investigação criminal, com os parâmetros de constitucionalidade trazidos pela Carta Magna de 1988.

Previsto no Código de Processo Penal como principal procedimento investigativo da Polícia Judiciária brasileira, o inquérito policial apura (investiga) determinado crime e antecede a ação penal, sendo classificado como pré-processual. 

Ele é composto de provas de autoria e materialidade de crime que, geralmente, são produzidas por investigadores de Polícia e peritos criminais. Mantido sob a guarda do escrivão, o inquérito policial é presidido pelo delegado de Polícia.

O Brasil é um dos poucos países do mundo que ainda adota um modelo de inquérito policial que adentrou o século XXI sem mudanças estruturais relevantes. A insatisfação com as suas imperfeições e a pouca qualidade da prova coletada, não é recente. Quando se discute a eficiência da sistemática investigativa usada atualmente os números são indefensáveis. 

Pouco eficaz diante da evolução da prática criminosa, o atual modelo de inquérito policial tornou-se uma espécie de arquétipo da nossa cultura burocrática, mazela que persegue os países subdesenvolvidos como um fantasma.

Com um índice de arquivamento de 96%, o Brasil carrega estarrecedoras estatísticas de interrupção de investigações de assassinatos, em decorrência do burocrático modelo de investigação, que não oferece condições para a coleta imediata dos indícios e provas do crime, o que leva à perda da materialidade do crime e do autor. 

É muito baixa a capacidade de elucidação de crimes graves, como também o de produção de provas periciais em homicídios, um tipo de crime com alto grau de resolução nos países desenvolvidos. 

Mudar essa a situação significaria evitar a processualização da investigação e as exigências de formalidades inúteis e protelatórias como despachos, carimbos, prazos internos de tramitação de inquérito e de outros procedimentos que não estão na lei e tampouco no Código de Processo Penal. 



Reclama-se muito que as investigações são solapadas e submetidas ao ritmo cartorário e ritualístico do inquérito policial, resultando na péssima qualidade das peças acusatórias, material probatório de baixa qualidade, morosidade das investigações e impunidade. 

A burocracia não possibilita celeridade e, nas investigações, a Polícia acaba não encontrando testemunhas, vestígios e outros elementos fundamentais de prova.

Quem acompanha o noticiário político na imprensa tem a impressão que o grau de elucidação de crimes aumentou com o número de operações policiais. 

Porém, elas não são parâmetros e têm um trâmite diferente dos inquéritos normais, contando hoje com aproximação total do Ministério Público, sendo o trabalho dos investigadores imediatamente conhecido pelos procuradores e pelo Judiciário, o que elimina a burocracia, mudando completamente a dinâmica da investigação, que não tem o trâmite normal de delegacia.

Pesquisas indicam que com o atual modelo de inquérito os baixos índices de solução de crimes no Brasil só não são maiores porque muitas ocorrências levadas às delegacias pela Polícia Militar são casos de flagrantes, que não demandam tanto da investigação, pois o autor do crime já é apresentado e os elementos de crime já são colhidos na hora. Se isso não ocorresse o índice de arquivamento dos inquéritos chegaria a 99%.

É importante ressaltar que a discussão sobre o tema deve considerar a péssima estrutura das polícias judiciárias em muitas unidades da federação, com a falta de apoio ao trabalho dos delegados e agentes, que padecem com salários sofríveis. A falta de gestão administrativa, interferência política, falta de dotações materiais e técnicas também resultam na baixíssima efetividade da Polícia.

Em muitos estados brasileiros, os policiais ficam praticamente impedidos de priorizar o combate a determinadas práticas delitivas com os inúmeros entraves que reduzem, de forma acachapante, a capacidade operativa das corporações.

Num país com alarmantes índices de criminalidade, o inquérito policial deve ser o instrumento que reflita a obrigação do Estado em agir e efetivar o direito fundamental da segurança e proteção garantida na Constituição Federal, com uma nova concepção estatal da organização da Polícia como auxiliar dos tribunais e dos promotores para a investigação de crimes.

É preciso reconhecer que o atual modelo de inquérito policial não responde à criminalidade contemporânea, marcada por extrema sofisticação e por grupos de elevado poder econômico. 

Torna-se necessário também discutir, sob um viés acadêmico, o nosso sistema de investigação, para, a partir do Direito Comparado, construir uma proposta que traga celeridade às investigações, viabilizando, ao mesmo tempo, a inatacabilidade formal e material dos elementos de informação e provas colhidos, zelando pelo respeito absoluto à Constituição Federal. 

O que se espera é que não demore muito para que o atual modelo de inquérito saia de cena e sobre seus escombros se construa o paradigma de uma Polícia verdadeiramente científica e multiprofissional.

domingo, 4 de março de 2018

A violência secular contra as mulheres

Por Antonio Carlos Lua

No mês em que se comemora o Dia Internacional da Mulher, que tem como data oficial 8 de março, é importante ressaltar que a luta do segmento feminino pelos seus direitos tem natureza universal com esforços coletivos de todos os que se preocupam com os direitos humanos.

A História testemunha que nenhum ser humano sofreu tanta opressão e violência em tão longo tempo como as mulheres, numa feroz exclusão do gozo das mais básicas garantias, sendo elas estigmatizadas com os mais sinistros símbolos desabonadores, negativos e hostis.

Os registros históricos apontam que, por séculos, as mulheres foram equiparadas por ascetas ao pecado, sendo consideradas instrumentos do diabo para propagar o pecado mortal na Terra. Vistas como “bruxas” muitas delas eram queimadas num castigo mortal.

No século XVII, foram queimadas mais de um milhão de mulheres acusadas de bruxaria. Mutiladas em países da África com a supressão do clitóris, censuradas em países islâmicos onde são proibidas de exibir o rosto, subjugadas como escravas e prostitutas em regiões da Ásia, deploradas como filha única por famílias chinesas, são as mulheres que carregam o maior peso da opressão e violência no mundo;

Na antiguidade clássica e até muito recentemente, as mulheres eram excluídas da cidadania, preenchendo uma categoria odiosa de pré-cidadãs ou cidadãs incompletas dentro de um conceito de cidadania restritiva. Na antiga Grécia, as mulheres, juntamente com os metecos (estrangeiros) e os escravos, não se incluíam no raio de abrangência da cidadania.

Num país instável e de terreno movediço como o Brasil, que vem negando ainda muitos direitos às mulheres, a cidadania feminina não conseguiu ser um parâmetro invariável da democracia, mostrando que esta ainda não foi plenamente conquistada.

As relações desiguais de poder em que estiveram e ainda estão implicados homens e mulheres fogem às marcas de gênero para situarem-se no plano da violação dos direitos fomentada pela injustiça cultural dos preconceitos, estereótipos e padrões discriminatórios que constroem a identidade de homens e mulheres, atribuindo-lhes diferentes papéis na vida social, política, econômica, cultural e familiar.

A violenta desigualdade entre homens e mulheres nesse cenário injusto compromete a democracia e penaliza a sociedade em todos os níveis de desenvolvimento.

As injustiças e estereótipos presentes no Brasil impedem as mulheres de exercer suas liberdades, fazer suas próprias escolhas, controlar os próprios corpos e as próprias vidas e de participar de decisões que definem o curso da sociedade, da mesma forma que os homens fazem.

Embora as mulheres estejam reagindo para mudar o atual cenário, buscando suas vozes e reunindo sua coragem contra aqueles que agem de maneira predatória contra o segmento feminino com velhas e novas práticas – visíveis e invisíveis – a realidade desse segmento ainda está muito aquém do ideal normativo e do marco constitucional adotado pelo Estado.

Até mesmo quando as proteções e garantias legais se fazem presentes, os braços do Estado no Brasil não são suficientemente longos para neutralizar as profundas tradições culturais que continuam relegando as preocupações das mulheres à esfera privada. Os papéis tradicionais de mulheres e homens no Brasil estão ainda tão entranhados que a implementação de leis que desafiam a subordinação “naturalizada” das mulheres tornou-se um desafio crítico no país.

Como fruto da sua luta, as mulheres alcançaram grande visibilidade social, que se traduziu em importantes avanços. Porém, é importante ressaltar que mesmo com as conquistas alcançadas é necessário uma constante vigilância, uma vez que no Brasil um longo caminho ainda separa a lei da realidade.

Desigualdades de gênero, classe, raça e etnia ainda permeiam a sociedade brasileira, que precisa estar cada vez mais consciente dos mecanismos legais e das políticas disponíveis para a efetivação dos direitos das mulheres, que precisam fortalecer sua agenda política e as mobilizações reivindicatórias.

Enquanto o Brasil não aprimorar suas políticas sociais, os obstáculos que inviabilizam o pleno exercício da cidadania das mulheres continuarão criando impasses de difícil superação.

Pertencer à espécie humana deveria ser o único critério para a titularidade de direitos humanos. No Brasil, entretanto, não existe uma justaposição entre ser humano do ponto de vista biológico e ser sujeito de direitos. O critério de sexo no país vem demarcando a menos valia das mulheres traçando, assim, um caminho de menor titularidade.

A escassa participação da mulher brasileira em esferas do poder político vem ecoar a ausência secular dos espaços de decisão na vida política e civil em condições de igualdade com os homens. No Brasil, os conceitos normativos relacionados a gênero não se modificaram. Os livros do passado e do presente seguem utilizando uma linguagem masculina, ocidental e branca. Os debates de gênero ocupam um lugar marginal nos livros, sendo um fator para aniquilar direitos.

Entretanto, há de se reconhecer que mesmo privadas, ao longo dos séculos, do exercício pleno de direitos e submetidas a abusos, as mulheres têm exercido papel relevante na ampliação dos seus direitos, com a consciência de que o avanço da participação feminina nas esferas da vida social e política são meio de construir uma democracia mais justa, mais fraterna, mais humana.

Cada vez mais surgem pautas de reivindicações de mulheres para garantir o efetivo combate à violência de gênero e à igualdade em representatividade política, no mercado de trabalho e no tratamento social. O avanço dessas demandas tornou possível a realização de tratados para levar nosso país a alcançar um padrão mínimo de direitos das mulheres.

Apesar disso, há ainda muita coisa a resolver quanto à essa questão no Brasil, que é o quinto país que mais mata mulheres no mundo. A indignação temporária e legislações passageiras não são suficientes para a eliminação da violência de gênero. O correto é buscar uma solução apropriada para assegurar a aplicação das sanções pertinentes pelos crimes baseados no gênero.

Continuar virando as costas para o que acontece com as mulheres não é a resposta diante da grande escala de violência e da devastadora violação de direitos do segmento feminino. A solução do problema deve ocorrer dentro dos mecanismos do Estado Democrático de Direito, com a premissa de que homens e mulheres se equivalem em direitos e obrigações.