domingo, 24 de junho de 2018

Democracia de papel


Por Antonio Carlos Lua

Como disse no livro ‘A Política' o filósofo grego Aristóteles (384 a.C/322 a.C) “se é verdade, como muitos imaginam, que a liberdade e a igualdade constituem essencialmente a democracia, elas, no entanto, só podem aí encontrar-se em toda a sua pureza, enquanto gozarem os cidadãos da mais perfeita igualdade política”.

Ao longe e desconectados da reflexão de Aristóteles, os apocalípticos de plantão insistem em reafirmar a vitalidade da contraditória e combalida democracia brasileira, com o povo limitado às regras do jogo político, siglas partidárias concorrendo por votos como mercadores, alienando eleitores, impedindo-os de romperem com o imobilismo dominante na sociedade.

Destituída do caráter de “governo do povo, pelo povo, para o povo” e sem os mecanismos de inclusão dos anseios populares no sistema político nacional, nossa democracia tem sido incapaz de oferecer à sociedade as condições concretas para a revitalização da cidadania e abrir caminho para uma equidade entre os sujeitos políticos.

Assim, ela segue domesticada e solapada, cada vez mais restritivista, mantendo o povo longe dos centros de controle de decisões com o poder monopolizado por alguns grupos políticos em detrimento de outros, numa forma de desigualdade política entre tomadores de decisão e as massas populares.

É necessário repolitizar a legitimidade da democracia no país, o que equivale a restaurá-la, pois o povo perdeu a confiança na República das Medidas Provisórias e na lei dos órgãos políticos representativos cada vez mais em desarmonia com a vontade, aspirações e interesses existenciais da população, cuja participação política é limitada ao mero voto, cessando logo depois do pleito eleitoral, quando o eleitor não encontra mais mecanismos de controlar o candidato escolhido, uma vez que este após ser empossado afasta-se das bases, freando as reivindicações populares.

No lugar da ideia de poder do povo, criou-se no Brasil um sistema de governantes e governados, ficando esquecida por completo a bandeira da soberania popular, expondo as contradições de uma democracia sem estratégias para resolver impasses em questões de interesse público e incapaz de ajustar-se aos novos tempos.

O mecanismo eletivo é essencial, mas o povo também pode exprimir suas inquietações políticas de outras maneiras. Como disse o filósofo italiano e historiador do pensamento político, Norberto Bobbio, “democracia sem a efetiva participação política do povo nos governos, mal esconde a dominação oligárquica dos mais ricos”. Ou seja, a democracia não se instaura nem sobrevive sem a efetiva participação política da sociedade nas decisões políticas.

Embora soberana no plano jurídico, no plano político a crença de liberdade democrática com intervenções diretas do cidadão no processo político brasileiro confronta-se com uma participação popular objetivada aos limites eleitorais, na progressiva alienação do cidadão-eleitor e o aprisionamento do Estado por determinados grupos, que se utilizam de mecanismos viciados para se manterem no poder. 

Num país forjado na escravidão e solapado pela negligência histórica dos governantes em garantir ao conjunto da população os mais comezinhos direitos políticos, civis e sociais, a situação agrava-se ainda mais com o avanço do receituário neoliberal que prega uma democracia de aparências, sem essência.

Temos uma democracia de fachada, com políticos com poderes ilimitados e ideias falsas, vivendo em um Brasil paralelo, descolados da realidade, impedindo o cidadão de definir qual papel quer que o Estado desempenhe em sua vida e dentro de quais limites o poder estatal atuará. 

No Brasil, o regime é igualitário, mas a sociedade é desigual e as ideias são contraditórias, numa democracia de papel onde as elites políticas dominantes fingem que levam em consideração o desejo das massas, num constante processo de erosão no já falido sistema político vigente.

quarta-feira, 13 de junho de 2018

Violência sistêmica contra a mulher

Por Antonio Carlos Lua

A luta das mulheres pelos seus direitos tem natureza universal com esforços coletivos de todos que se preocupam com os direitos humanos. A história testemunha que nenhum ser humano sofreu tanta opressão e violência em tão longo tempo como as mulheres, numa feroz exclusão do gozo das mais básicas garantias, sendo elas estigmatizadas com os mais sinistros símbolos desabonadores, negativos e hostis.

Mesmo com a Constituição de 1988 – que incorporou cerca de 90% das reivindicações do segmento feminino, consolidando um aparato normativo que é referencial no tocante ao direito das mulheres – as estatísticas não apontam resultados concretos que indiquem redução na espiral de desigualdade, que coloca o segmento feminino em situação desfavorável no Brasil.

A atual Carta Magna é perfeita quanto ao tratamento dos sexos com igualdade, inclusive nas questões familiares, que ganharam reforço com as alterações no Código Civil, de 2002, cujo texto substituiu a norma de 1916. As pequenas reformas feitas no Código Penal nos últimos anos também extinguiram inúmeros dispositivos que diminuíam ou subjugavam a figura feminina.  

Mesmo assim, o regramento constitucional não tem impedido o agravamento da desigualdade entre homens e mulheres na sociedade brasileira. Isso ainda ocorre devido às práticas excludentes que permanecem operando sobre as mulheres, reflexo de uma visão conservadora e de um modelo de cidadania que ainda privilegia a imagem masculina no espaço público.

Os registros históricos apontam que, por séculos, as mulheres foram equiparadas por ascetas ao pecado, sendo consideradas instrumentos do diabo para propagar o pecado mortal na Terra. Vistas como “bruxas” muitas delas eram queimadas num castigo mortal.  

No século XVII, foram queimadas mais de um milhão de mulheres acusadas de bruxaria. Mutiladas em países da África com a supressão do clitóris, censuradas em países islâmicos onde são proibidas de exibir o rosto, subjugadas como escravas e prostitutas em regiões da Ásia, deploradas como filha única por famílias chinesas, são as mulheres que carregam o maior peso da opressão e violência no mundo.

Na antiguidade clássica e até muito recentemente, as mulheres eram excluídas da cidadania, preenchendo uma categoria odiosa de pré-cidadãs ou cidadãs incompletas dentro de um conceito de cidadania restritiva. Na antiga Grécia, as mulheres, juntamente com os metecos (estrangeiros) e os escravos, não se incluíam no raio de abrangência da cidadania. 

Num país instável como o Brasil – que vem negando ainda muitos direitos às mulheres – a cidadania feminina não conseguiu ser um parâmetro invariável da democracia, mostrando que esta ainda não foi plenamente conquistada.

As relações desiguais de poder em que estiveram e ainda estão implicados homens e mulheres fogem às marcas de gênero para situarem-se no plano da violação dos direitos fomentada pela injustiça cultural dos preconceitos, estereótipos e padrões discriminatórios, que constroem a identidade de homens e mulheres, atribuindo-lhes diferentes papéis na vida social, política, econômica, cultural e familiar.

A violenta desigualdade entre homens e mulheres nesse cenário injusto compromete a democracia e penaliza a sociedade em todos os níveis de desenvolvimento. O que as mulheres buscam hoje é a igualdade de direitos – direitos humanos, direitos constitucionais legítimos, direito ao respeito, à dignidade, à educação, à moradia, à saúde, ao trabalho, à cultura, à cidadania, que devem ser buscados incansavelmente.

Não é possível fechar os olhos para a realidade perversa que as mulheres herdaram, desde a longínqua história das civilizações, nascendo sob a égide de um chefe de família, um todo poderoso homem, e segue violentada em seus direitos, sofrendo, ainda em 2018, violência física e psicológica.

É preciso uma tomada de consciência radical por parte da sociedade. Todos devem se engajar na luta contra esse flagelo milenar. As injustiças e estereótipos presentes no Brasil impedem as mulheres de exercer suas liberdades, fazer suas próprias escolhas, controlar os próprios corpos e as próprias vidas e de participar de decisões que definem o curso da sociedade, da mesma forma que os homens fazem.

Embora as mulheres estejam reagindo para mudar o atual cenário, buscando suas vozes e reunindo sua coragem contra aqueles que agem de maneira predatória contra o segmento feminino com velhas e novas práticas – visíveis e invisíveis – a realidade desse segmento ainda não alcançou o marco constitucional ideal, pois os braços do Estado no Brasil ainda não neutralizaram as profundas tradições culturais que continuam relegando as preocupações das mulheres a um plano secundário, sendo este um desafio crítico no país.  

Apesar de tudo, as mulheres, como fruto das suas lutas, alcançaram grande visibilidade social, que se traduziu em importantes avanços. Porém, é importante ressaltar que mesmo com as conquistas alcançadas é necessário uma constante vigilância, uma vez que desigualdades de gênero, classe, raça e etnia ainda permeiam a sociedade brasileira, que precisa estar cada vez mais consciente dos mecanismos legais e das políticas disponíveis para a efetivação dos direitos das mulheres.

Enquanto o Brasil não aprimorar suas políticas sociais, os obstáculos que inviabilizam o pleno exercício da cidadania das mulheres continuarão criando impasses, uma vez que os conceitos normativos relacionados a gênero não se modificaram. Os livros do passado e do presente seguem utilizando uma linguagem masculina, ocidental e branca.

Os debates de gênero ocupam um lugar marginal nos livros, sendo um fator para aniquilar direitos. Pertencer à espécie humana deveria ser o único critério para a titularidade de direitos humanos. No Brasil, entretanto, não existe uma justaposição entre ser humano do ponto de vista biológico e ser sujeito de direitos.

Há muita coisa a resolver quanto a essa questão no Brasil, que é o quinto país que mais mata mulheres no mundo. Infelizmente, o critério de sexo no país vem demarcando a menos valia das mulheres traçando, assim, um caminho de menor titularidade. 

A solução do problema deve ocorrer dentro dos mecanismos do Estado Democrático de Direito, com a premissa de que homens e mulheres se equivalem em direitos e obrigações. No caso em questão, não vale apenas a indignação temporária. Continuar virando as costas para o que acontece com as mulheres não é uma resposta plausível diante da grande escala de violência e da devastadora violação de direitos do segmento feminino.

Mesmo neste cenário desfavorável, há de reconhecer, no entanto, que cada vez mais surgem pautas de reivindicações de mulheres para garantir o efetivo combate à violência de gênero e à igualdade em representatividade no país. O avanço dessas demandas tornou possível, inclusive, a realização de tratados, para levar o Brasil a alcançar um padrão mínimo em relação aos direitos das mulheres.

Mesmo privadas ao longo dos séculos do exercício pleno da cidadania e submetidas a abusos, as mulheres têm conseguido exercer papel relevante na ampliação dos seus direitos, com a consciência de que o avanço da participação feminina nas esferas da vida social e política são importantes para que possamos construir uma sociedade mais justa, mais fraterna, mais humana.


domingo, 10 de junho de 2018

A mais vil das profissões


Por Antonio Carlos Lua

A crise da democracia no Brasil abre espaço para a frustração e o desencanto com a política, que cada vez mais se distancia da cidadania. Não a política como “meio para a resolução pacífica de conflitos e busca do bem comum”, como escreveu o psicanalista e escritor Rubem Alves, mas a política como “a mais vil das profissões”, como afirmou também o mesmo Rubem Alves. 

A negação da política – com os constantes desmandos em governos e com parlamentares flagrados praticando atos ilícitos a todo momento – dá a impressão de que a corrupção contamina os políticos indiscriminadamente, colocando a sociedade na antessala da barbárie. 

Mesmo assim, o povo não pode negar a política, pois assim ela continuará sendo exercida nas mãos de aproveitadores e praticada por meios não republicanos, fazendo com que ela seja sequestrada da sociedade e colocada a serviço de interesses escusos. 

É esse sequestro da política que inseriu o Brasil no labirinto em que a sociedade se encontra. Agora, o desafio é conseguir sair desse labirinto e isso só acontecerá quando o povo se apropriar da política.

Por mais que as pessoas repudiem e até queiram fugir da política, não há caminho pacífico para a convivência em sociedade que não seja através da ação política. 

Por isso, é necessário que o povo passe a se mobilizar para ocupar a política para a ideia da refundação o Brasil, com uma nova cultura e concepção que consiga abarcar todos os mundos, e não somente o mundo das castas e das classes privilegiadas. 

Enquanto a maior parte da população pensa que abomina a política, esta mesma população segue sob controle dos profissionais da política. Isso torna a gestão da política – principalmente as políticas públicas e do Estado – cada vez mais distante das reais necessidades do povo.

Todas as medidas relativas à política no Brasil são tomadas visando a preservação do poder nas mãos dos mesmos de sempre, reforçando os mecanismos promíscuos de corrupção da atividade política. 

Quando mudanças importantes são aprovadas, elas se tornam cosméticas, ou então criam novas formas de perpetuação dos esquemas vigentes.

Política não é profissão, muito menos privilégio de grupos que querem se apropriar do Brasil. O abuso de poder – que impõe castas políticas no exercício da representação da sociedade – é um dos principais responsáveis pela perpetuação do atraso social do país, impedindo processos de renovação e engessando comportamentos de perfil democrático.

A anual verba bilionária gasta pelo Congresso Nacional cria um fosso entre a atividade política e a sociedade, e tem que ser significativamente reduzida, para que mais recursos sejam drenados para serviços públicos diretos à população.

É assustador o alto custo da atividade parlamentar no Brasil. Nosso Congresso Nacional é o mais caro do mundo e só nos cinco primeiros meses deste ano gastou R$ 10,5 bilhões, ou US$ 3,5 bi – com US$ 5,9 milhões por parlamentar. As Assembleias Legislativas somam um custo total superior a R$ 11 bilhões e as Câmaras Municipais outros R$ 11,3 bilhões. No total R$ 33 bilhões. 

O custo de R$ 28 milhões por dia no Congresso Nacional ajuda a explicar o tamanho do déficit público brasileiro. Somente os deputados federais custam à população mais de R$ 1 bilhão por ano. Um em cada três parlamentares da Câmara Federal é investigado pelo Supremo Tribunal Federal. Com um Legislativo envolvido em corrupção e gerando um custo tão alto, o Brasil passa pela maior crise de sua história. 

Nosso Poder Legislativo – que nos Estados já somam um custo total superior a R$ 11 bilhões e nos Municípios outros R$ 11,3 bilhões, perfazendo um total R$ 33 bilhões – é o mais caro do planeta.  

A julgar pelo que acontece com o Congresso Nacional e sabendo-se que as Assembleias Legislativas e Câmaras de Vereadores são submetidas a controles e escrutínio ainda mais frágeis, pode-se afirmar, com segurança, que a classe política brasileira está se apropriando direta ou indiretamente de parcelas da renda nacional incompatíveis com o nível de desenvolvimento e de distribuição de renda do país.

As distorções observadas na Câmara dos Deputados e no Senado Federal podem ser estendidas às Assembleias Legislativas e Câmaras de Vereadores. No Brasil, os salários pagos a deputados estaduais são calculados à base de 75% dos salários dos deputados federais e os salários de vereadores de municípios populosos obedecem à mesma proporção em relação aos deputados estaduais. 

Além disso, tanto no nível estadual quanto no municipal os integrantes do Legislativo gozam de privilégios financeiros semelhantes aos da Câmara dos Deputados – não raro ainda mais generosos. Em São Luís, por exemplo, os membros da Câmara Municipal custam mais caro que os integrante da Casa dos Comuns Britânica. 

No Maranhão, uma pessoa comum precisaria trabalhar durante 751 anos, sem gastar um centavo, para gerar o equivalente ao patrimônio de seus senadores. Para gerar um patrimônio igual à média dos deputados estaduais os maranhenses teriam que trabalhar 356 anos.

domingo, 3 de junho de 2018

Princípio constitucional da igualdade

Por Antonio Carlos Lua

A igualdade no Direito Penal continua sendo um mito no Brasil. As pessoas, na esfera criminal, nunca serão tratadas de forma isonômica enquanto existir o foro privilegiado – uma excrescência que nos remete de volta ao tempo da sociedade aristocrática (1500/1888), perdurando na República Velha (1889) e permanecendo até os dias atuais. 

Essa diferença de tratamento penal de pessoas que têm a prerrogativa do foro privilegiado em relação ao cidadão comum afronta o princípio isonômico fundamental da Constituição Federal (artigo 5º), segundo o qual “todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza ...”.
   
Tal desigualdade de tratamento – carente de base ética e inaceitável no sistema republicano – é incompatível com o princípio da moralidade administrativa (Constituição Federal, artigo 37) e com o Estado Democrático de Direito, se assemelhando à criação de um modelo político aristocrático.

Embora a discussão da abrangência da prerrogativa já tenha sido deflagrada no Supremo Tribunal Federal  que agora julgará apenas deputados e senadores nos casos relacionados ao mandato, enquanto o parlamentar estiver no cargo  não podemos permitir que o espírito constitucional continue sendo pensado como se estivéssemos no Império (Constituição de 1824), época em que crimes cometidos por membros da família imperial, ministros, conselheiros de Estado e parlamentares eram julgados de forma exclusiva. 

O princípio de tratamento igual para todos contido na Constituição Federal não combina com a proteção a políticos inescrupulosos. Ao contrário do que sustentam os partidários da manutenção do foro privilegiado, a melhor maneira de proteger o cargo e a autoridade de quem o exerce é simplificar e acelerar o julgamento do acusado.

Crimes praticados por políticos – cuja função pressupõe confiança, zelo e probidade no trato e condução das coisas e bens públicos, por sua gravidade, implicações e consequências danosas à coletividade – exigem apuração rápida e sanções severas. E isso porque, sendo estipendiados para zelar pelo patrimônio público e bem servir à comunidade, fraudam e lesam os contribuintes e o erário, prejudicam a sociedade, traem a confiança do poder público de que são depositários.

O foro privilegiado protege quem tem mais poderes, quando deveria ser o inverso. Pois, quanto maiores os poderes, maiores as responsabilidades, maior a gravidade do delito, mais severas deveriam ser as penas cominadas.

Sua existência esbarra no princípio máximo da democracia, que é a igualdade de direitos, causando a sensação de que a classe política possui acesso a uma camada diferente dos demais cidadãos. 

A manutenção do privilégio até os dias atuais é fruto de um entendimento atrasado dos brasileiros sobre o poder. Os representantes do povo exercem as funções do poder, mas o titular da soberania é o conjunto dos cidadãos.