quarta-feira, 13 de junho de 2018

Violência sistêmica contra a mulher

Por Antonio Carlos Lua

A luta das mulheres pelos seus direitos tem natureza universal com esforços coletivos de todos que se preocupam com os direitos humanos. A história testemunha que nenhum ser humano sofreu tanta opressão e violência em tão longo tempo como as mulheres, numa feroz exclusão do gozo das mais básicas garantias, sendo elas estigmatizadas com os mais sinistros símbolos desabonadores, negativos e hostis.

Mesmo com a Constituição de 1988 – que incorporou cerca de 90% das reivindicações do segmento feminino, consolidando um aparato normativo que é referencial no tocante ao direito das mulheres – as estatísticas não apontam resultados concretos que indiquem redução na espiral de desigualdade, que coloca o segmento feminino em situação desfavorável no Brasil.

A atual Carta Magna é perfeita quanto ao tratamento dos sexos com igualdade, inclusive nas questões familiares, que ganharam reforço com as alterações no Código Civil, de 2002, cujo texto substituiu a norma de 1916. As pequenas reformas feitas no Código Penal nos últimos anos também extinguiram inúmeros dispositivos que diminuíam ou subjugavam a figura feminina.  

Mesmo assim, o regramento constitucional não tem impedido o agravamento da desigualdade entre homens e mulheres na sociedade brasileira. Isso ainda ocorre devido às práticas excludentes que permanecem operando sobre as mulheres, reflexo de uma visão conservadora e de um modelo de cidadania que ainda privilegia a imagem masculina no espaço público.

Os registros históricos apontam que, por séculos, as mulheres foram equiparadas por ascetas ao pecado, sendo consideradas instrumentos do diabo para propagar o pecado mortal na Terra. Vistas como “bruxas” muitas delas eram queimadas num castigo mortal.  

No século XVII, foram queimadas mais de um milhão de mulheres acusadas de bruxaria. Mutiladas em países da África com a supressão do clitóris, censuradas em países islâmicos onde são proibidas de exibir o rosto, subjugadas como escravas e prostitutas em regiões da Ásia, deploradas como filha única por famílias chinesas, são as mulheres que carregam o maior peso da opressão e violência no mundo.

Na antiguidade clássica e até muito recentemente, as mulheres eram excluídas da cidadania, preenchendo uma categoria odiosa de pré-cidadãs ou cidadãs incompletas dentro de um conceito de cidadania restritiva. Na antiga Grécia, as mulheres, juntamente com os metecos (estrangeiros) e os escravos, não se incluíam no raio de abrangência da cidadania. 

Num país instável como o Brasil – que vem negando ainda muitos direitos às mulheres – a cidadania feminina não conseguiu ser um parâmetro invariável da democracia, mostrando que esta ainda não foi plenamente conquistada.

As relações desiguais de poder em que estiveram e ainda estão implicados homens e mulheres fogem às marcas de gênero para situarem-se no plano da violação dos direitos fomentada pela injustiça cultural dos preconceitos, estereótipos e padrões discriminatórios, que constroem a identidade de homens e mulheres, atribuindo-lhes diferentes papéis na vida social, política, econômica, cultural e familiar.

A violenta desigualdade entre homens e mulheres nesse cenário injusto compromete a democracia e penaliza a sociedade em todos os níveis de desenvolvimento. O que as mulheres buscam hoje é a igualdade de direitos – direitos humanos, direitos constitucionais legítimos, direito ao respeito, à dignidade, à educação, à moradia, à saúde, ao trabalho, à cultura, à cidadania, que devem ser buscados incansavelmente.

Não é possível fechar os olhos para a realidade perversa que as mulheres herdaram, desde a longínqua história das civilizações, nascendo sob a égide de um chefe de família, um todo poderoso homem, e segue violentada em seus direitos, sofrendo, ainda em 2018, violência física e psicológica.

É preciso uma tomada de consciência radical por parte da sociedade. Todos devem se engajar na luta contra esse flagelo milenar. As injustiças e estereótipos presentes no Brasil impedem as mulheres de exercer suas liberdades, fazer suas próprias escolhas, controlar os próprios corpos e as próprias vidas e de participar de decisões que definem o curso da sociedade, da mesma forma que os homens fazem.

Embora as mulheres estejam reagindo para mudar o atual cenário, buscando suas vozes e reunindo sua coragem contra aqueles que agem de maneira predatória contra o segmento feminino com velhas e novas práticas – visíveis e invisíveis – a realidade desse segmento ainda não alcançou o marco constitucional ideal, pois os braços do Estado no Brasil ainda não neutralizaram as profundas tradições culturais que continuam relegando as preocupações das mulheres a um plano secundário, sendo este um desafio crítico no país.  

Apesar de tudo, as mulheres, como fruto das suas lutas, alcançaram grande visibilidade social, que se traduziu em importantes avanços. Porém, é importante ressaltar que mesmo com as conquistas alcançadas é necessário uma constante vigilância, uma vez que desigualdades de gênero, classe, raça e etnia ainda permeiam a sociedade brasileira, que precisa estar cada vez mais consciente dos mecanismos legais e das políticas disponíveis para a efetivação dos direitos das mulheres.

Enquanto o Brasil não aprimorar suas políticas sociais, os obstáculos que inviabilizam o pleno exercício da cidadania das mulheres continuarão criando impasses, uma vez que os conceitos normativos relacionados a gênero não se modificaram. Os livros do passado e do presente seguem utilizando uma linguagem masculina, ocidental e branca.

Os debates de gênero ocupam um lugar marginal nos livros, sendo um fator para aniquilar direitos. Pertencer à espécie humana deveria ser o único critério para a titularidade de direitos humanos. No Brasil, entretanto, não existe uma justaposição entre ser humano do ponto de vista biológico e ser sujeito de direitos.

Há muita coisa a resolver quanto a essa questão no Brasil, que é o quinto país que mais mata mulheres no mundo. Infelizmente, o critério de sexo no país vem demarcando a menos valia das mulheres traçando, assim, um caminho de menor titularidade. 

A solução do problema deve ocorrer dentro dos mecanismos do Estado Democrático de Direito, com a premissa de que homens e mulheres se equivalem em direitos e obrigações. No caso em questão, não vale apenas a indignação temporária. Continuar virando as costas para o que acontece com as mulheres não é uma resposta plausível diante da grande escala de violência e da devastadora violação de direitos do segmento feminino.

Mesmo neste cenário desfavorável, há de reconhecer, no entanto, que cada vez mais surgem pautas de reivindicações de mulheres para garantir o efetivo combate à violência de gênero e à igualdade em representatividade no país. O avanço dessas demandas tornou possível, inclusive, a realização de tratados, para levar o Brasil a alcançar um padrão mínimo em relação aos direitos das mulheres.

Mesmo privadas ao longo dos séculos do exercício pleno da cidadania e submetidas a abusos, as mulheres têm conseguido exercer papel relevante na ampliação dos seus direitos, com a consciência de que o avanço da participação feminina nas esferas da vida social e política são importantes para que possamos construir uma sociedade mais justa, mais fraterna, mais humana.


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