domingo, 10 de novembro de 2019

João Cabral de Melo Neto e o emblema da miséria nordestina


Antonio Carlos Lua

João Cabral de Melo Neto – poeta e escritor que viveu em luta contra as próprias emoções – tentou domar, secar, objetivar os sentimentos com a faca das palavras, com uma poesia contida, dura, sobrecarregada de dúvidas, hesitações e tensões. 

Com a alma cheia de conflitos, João Cabral de Melo Neto sempre foi um poeta impessoal. Sem poemas autobiográficos, ele deixou – em certo momento da sua vida – de ler poemas porque não suportava mais a emoção dos versos. 

Lutou muito para se conter, para se esconder, para não se confessar, para não falar de si, mas – contra sua vontade – deixou sempre muita coisa escapar. Esse aspecto de luta, de conflito extremo, é a origem da força da poesia de João Cabral de Melo Neto. 

Embora tenha escrito um poema em que cita Clarice Lispector como alguém que gostava de falar na morte, ele também tratava da questão em muitos de seus poemas, mostrando pontos em comum com a escritora, embora os dois se mostrassem, aparentemente, muito diferentes, antípodas. 

Na verdade, João Cabral de Melo e Clarice Lispector se encontram na mesma paixão pela palavra. Para Clarice, a literatura era uma espécie de religião sem Deus. Para Cabral, era uma carpintaria, uma engenharia. Para ambos, a poesia foi a coisa mais importante de suas vidas. Essa entrega absoluta à literatura conduziu aos grandes livros que os dois escreveram.

João Cabral de Melo Neto falava dos males – severidade, repressão íntima, fobias – que ficaram de sua educação com os irmãos maristas. Declarava-se ateu – embora ressaltando que acreditava no inferno. Melhor pensar que, na verdade, ele temia o inferno, isto é, o castigo. 

A melancolia ficou encoberta durante quase toda a vida de João Cabral de Melo Neto, que, indiscutivelmente, foi um dos maiores poetas brasileiro do Século XX. Em tempos de retirantes globais, podemos citar “Morte e Vida Severina” como sua obra mais marcante e significativa para a literatura brasileira.

Não há como fazer uma leitura de “Morte e Vida Severina” sem ter em mente o contexto social e econômico da época em que a obra foi escrita (1954/1955). No Nordeste da década de 1950, a morte era uma força precoce e devastadora. 

Calor, seca, desnutrição, pobreza, concentração fundiária, coronelismo. Este é o mundo árido e brutal onde o personagem Severino empreende sua epopeia trágica enunciada conforme a tradição medieval pelo escritor, que concebeu versos preferencialmente heptassílabos (redondilha maior), variando vocábulos regionais com outros de registro erudito. 

João Cabral de Melo Neto nasceu em Recife (Pernambuco) e passou sua infância nos engenhos de açúcar de propriedade de sua família. Neste ambiente arraigado na tradição fundiária e econômica do Nordeste, costumava ler cordéis para os empregados, impregnando-se de referências próprias do ambiente regional. 
A geografia, os traços regionais e as condições sociais dos anos 1950 foram decisivas para a constituição da poesia de João Cabral de Melo Neto. 

João Cabral era diplomata. Trabalhando, em Londres, em 1959, durante o governo de Getúlio Vargas, surgiu uma denúncia de que ele e outros quatro colegas estavam implantando uma célula comunista no Itamaraty, época em que o Partido Comunista do Brasil estava na ilegalidade. 

Um despacho presidencial de março de 1953 afastou ele e os outros companheiros de trabalho do serviço diplomático. João Cabral retornou para Recife, a fim de trabalhar no escritório do pai e garantir o sustento da família. Ele retomou a carreira diplomática em 1954, depois de recorrer ao Supremo Tribunal Federal. 

Nesse intervalo de tempo, encontrou Maria Clara, que era filha de Aníbal Machado, seu amigo. Ela pediu que o poeta escrevesse um auto de Natal para encenar com o seu grupo. Assim surgiu ‘Morte e Vida Severina’. Maria Clara, porém, leu o texto e o devolveu, alegando que não teria como montá-lo. 

Na época, o editor José Olympio queria lançar a primeira coletânea do poeta. Como “Morte e Vida Severina’ era extensa, o autor retirou as marcações próprias da montagem teatral e o poema integrou o livro ‘Duas águas’, lançado em 1956, sendo muito bem acolhido pelos escritores, intelectuais alinhados ao pensamento de esquerda. 

O também poeta e diplomata Vinícius de Morais ficou maravilhado com a história de Severino. A princípio, João Cabral ficou contrariado, pois sua pretensão era alcançar com sua poesia os analfabetos que ouviam cordel na feira de Santo Amaro, em Recife – o que não deixava de ser um tanto ingênuo, tendo em vista a elaboração formal do poema. 

Dez anos depois da estreia editorial, o texto ganhou mais projeção com a montagem teatral dirigida por Silnei Siqueira. Era 1966, quando João Cabral de Melo Neto recebeu a carta do jovem diretor solicitando autorização para montar um espetáculo em que ‘Morte e Vida Severina’ seria musicado por outro estreante, o compositor e cantor Chico Buarque de Holanda. 

No livro ‘A literatura como turismo’ (Companhia das Letras), a cineasta Inêz Cabral, filha do poeta, diz que ele ficou preocupadíssimo ao saber que sua poesia ganharia música. Porém, nunca se sentiu no direito de cercear qualquer criação nascida de seu trabalho.

Em 2007, na apresentação que fez da edição de ‘Morte e Vida Severina’, lançada pela Editora Alfaguara, o escritor, dramaturgo, letrista e poeta paraibano, Bráulio Tavares, aponta que, para Gilberto Freyre, havia pelo menos dois nordestes: o agrário e o pastoril; o litorâneo da cana-de-açúcar e o sertanejo das fazendas de gado. 

Estabelecendo uma lógica paralela, Bráulio Tavares propôs que, a partir da poesia de João Cabral, também se pode identificar dois Nordestes: o seco e o úmido; o da pedra e o da lama; o que é mumificado vivo pelo sol e o que é apodrecido pelo mar. 

‘Morte e Vida Severina descreve a caminhada do retirante Severino que percorre a linha do rio até Recife, o mangue e o mar, a fim de escapar da seca. Na primeira obra, a voz que emana do texto é do poeta. Na segunda, do próprio rio, que trata de si mesmo em primeira pessoa. São diversos personagens espalhados ao longo do leito que se enunciam. 

O título do poema já lança uma senha para se entender o universo descrito, ao inverter o sintagma vida e morte – a morte precede a vida – e ao adjetivar o substantivo próprio Severino. 

A esposa de João Cabral de Melo Neto, Stella Maria Barbosa de Oliveira, morreu em 1986. Depois disso, ele se casou com a poeta Marly de Oliveira. Durante toda a sua vida sofreu com intermitentes dores de cabeça, tanto que a aspirina era um traço distintivo em sua vida e mote para alguns textos. 

Ao final da vida, estava cego e deprimido. Avesso à religiosidade – mesmo que este universo seja latente em sua obra mais conhecida, que já ganhou mais de 100 edições – conta-se que, quando morreu, em 1999, estava de mãos com Marly, orando.

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