domingo, 17 de novembro de 2019

O pecado original da nossa República


Antonio Carlos Lua

Em 15 de novembro de 1889, um grupo de militares liderados pelo marechal Manuel Deodoro da Fonseca destituiu o imperador Pedro II e instalou um governo provisório republicano. 

Unindo-se aos latifundiários contrários à abolição, os militares transformaram os Estados em feudos dos coronéis da política e colocaram o Brasil sob a tutela do Estado por quase um Século. 

Ressentidos com o fim da escravidão, eles instalaram um sistema político arcaico e quase feudal, transformando o Brasil numa vulgar República de chefetes de aldeia e caudilhos regionais

Embora a historiografia tradicional ainda aponte que o marechal Manuel Deodoro da Fonseca foi o líder do movimento, sabe-se que, de fato, a República foi proclamada na Câmara-Geral do Rio de Janeiro, então capital do Brasil. Esse teria sido apenas o ponto alto de um longo movimento republicano que tensionava o Império. 

A verdade é que a celebração dos 130 anos da instalação da República não é uma festa plena. Vivemos numa grande República que ainda não pratica valores republicanos dentro do lastro dos princípios de igualdade, que nunca foi um valor, uma qualidade extensiva para o país.

Passados 130 anos da Proclamação da República, permanece um sentimento de mal-estar, de um projeto que ainda não deu certo, mesmo com os vários movimentos republicanos – Revolução Pernambucana, Guerra de Canudos e Sabinada – que tentaram trazer um legado para o Brasil. 

Na Revolução Pernambucana – movimento que eclodiu no dia 6 de março de 1817 no Estado de Pernambuco – quatorze revoltosos foram executados pelo crime de lesa-majestade, a maioria enforcados e esquartejados. Outros foram fuzilados. Centenas morreram em combate ou na prisão. 

A Guerra de Canudos ocorreu entre 1893 e 1897. Foi o maior movimento de resistência à opressão dos grandes proprietários rurais. Houve um verdadeiro massacre, com o extermínio de mulheres, idosos e crianças. Muitos foram degolados durante a invasão com o bombardeio do Exército. Quase não restaram sobreviventes. 

A Sabinada foi um movimento contrário à Regência, ocorrido entre 1837 e 1838, na Bahia, que já havia sido palco da Conjuração Baiana, em 1798, da Federação dos Guanais, em 1832, e da Revolta dos Malês, em 1835. A província já tinha um histórico de revoltas e lutas. 

O médico e jornalista, Francisco Sabino Álvares da Rocha Vieira, foi o principal mentor da revolta, que não desejava a independência da província da Bahia, mas sim a instalação de uma República independente do Império Brasileiro até o fim da Regência.

Além da Revolução Pernambucana, Guerra de Canudos e Sabinada, outros conflitos ainda ocorreram como as Guerrilhas do Tocantins, a Revolta da Armada, a Revolução Federalista, a Guerra do Contestado, as “revoluções” em 1923, 1924, 1930 e 1932 e os levantes dos comunistas e dos integralistas, numa média de um confronto militar a cada cinco anos. 

O certo é que com a Proclamação da República, em 15 de novembro de 1889, a espada de Dom Pedro mudou de mão, mas o perfil liberal inspirador das nossas primeiras Constituições – pouco amenizado em 1934, com o reconhecimento da função social da propriedade – não ficou ausente nem mesmo na Constituição de 1988. 

Isso pode ser constatado examinando-se, com cuidado, as muitas Emendas Constitucionais que a nossa Carta Magna já sofreu e o padrão predominante da sua interpretação e aplicação..

Se, antes de 1988, havia fidelidade ideológica ao liberalismo, por parte da Administração Pública, o fato de ele agora ser antecedido pelo prefixo “neo”, revigorou-o de modo desastroso. 

No artigo 170 da Constituição Federal vigente está escrito que “a ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por finalidade assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da Justiça Social”. 

A realidade, no entanto, vem atestando que a liberdade da iniciativa econômica se refletiu em liberdade garantida apenas para as coisas, as mercadorias. Dogmática, mercadocêntrica e isenta de questionamento, ela engoliu a valorização do trabalho, a segurança prevista para a existência digna dos cidadãos e não tem nenhum interesse por Justiça Social.

Isso pode ser constatado na preocupação dos governos brasileiros com as políticas sociais compensatórias. Elas visam compensar uma desigualdade social criada e reproduzida pela liberdade que sequestra as demais – a do poder superior ao do Estado, no caso, o capital. 

Reformas importantes e capazes de modificar a sua estrutura, como a agrária, a tributária e a política – indispensáveis à liberdade de todos – só caminham à custa de remendos novos em pano velho.

Ao primeiro impacto o pano se encarrega de aumentar o rasgão da nossa República, embora não faltem advertências contra essa situação, convenientemente ignoradas para não permitir libertações de muitos, em nome de “liberdades” já impostas por poucos. 

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