domingo, 30 de julho de 2017

Mercantilização do poder


Por Antonio Carlos Lua

Falsamente se colocando como o paradigma de solução da economia contemporânea, o sistema neoliberal transformou o Brasil num território cercado de vulcões sociais, trazendo à luz terríveis mazelas à população, como bem define o economista franco-brasileiro, Ladislau Dowbor.

Desertificado em suas riquezas pela devastação neoliberal e destroçado pela delinquência de políticos desonestos com uma corrupção a mesclar-se com máfias de todos tipos disseminando-se como metástase, o Brasil caminha para o abismo com a mercantilização do poder, que esvazia a política de seu verdadeiro ideal, transformando nossa democracia em uma caricatura.

Há um prenúncio de um amanhã de tragédias com a versão brasileira do neoliberalismo. Hoje, os excluídos representam dois terços da população. Mais de 10% de famílias mais ricas consomem metade da renda do país, colocando-nos em último lugar no planeta em termos de justiça econômica.

O neoliberalismo provoca uma gigantesca subutilização dos trabalhadores, deixando dezenas de milhões de pessoas sem horizonte, causando miséria, exclusão social, multiplicando os desequilíbrios econômicos, com a classe dirigente cumprindo servilmente o que é imposto pelas economias mais fortes, em detrimento dos interesses nacionais, numa relação casa-grande/senzala, em pleno século XXI.

Causa indignação a proeza dos clãs neoliberais em bloquear o desenvolvimento do Brasil com o potencial que o país tem, para tão somente assegurar privilégios de grupos políticos arrogantes e autoritários, que geram eles mesmos a opinião que deles tem a sociedade, controlando os meios de comunicação social.

A ideologia política do neoliberalismo é perversa e vem levando o Brasil a permanecer na contramão da história nos albores do novo século.

domingo, 23 de julho de 2017

Nova concepção do Direito

Antonio Carlos Lua

Era o ano de 1940, e o mundo vivia aterrorizado pela Segunda Guerra Mundial. Navios brasileiros começam a ser atacados por forças alemãs, e tropas norte-americanas se instalam no Nordeste do país. 

Um sentimento nacionalista faz Getúlio Vargas criar a Companhia Siderúrgica Nacional, e o escritor Monteiro Lobato é preso por acusar o Governo de impedir a iniciativa privada de participar de exploração do petróleo.

Em um cenário de autoritarismo, forte repressão, censura e perseguição à imprensa, é criado, no Brasil, o Código Penal, refletindo um sistema inquisitivo, com poucas garantias ao cidadão.

Mais de sete décadas se passaram e o país foi aos poucos conquistando a democracia. O ápice dessa mudança foi a Constituição Federal de 1988, que trouxe novas atribuições para o Ministério Público, garantiu a ampla defesa ao acusado e muitos direitos penais até então desconhecidos pelos brasileiros.

Além de reformular o cenário jurídico no país, a Carta Magna de 1988 reacendeu a consciência brasileira e a sociedade passou a ficar mais consciente dos seus direitos. Desde o início, seu caráter democrático colidiu com o Código Penal em vigor, tornando obsoletos muitos dos seus dispositivos.

Com a Carta Federal de 1988, passou-se a ter uma percepção diferente do Direito, visto antes apenas como um conjunto de normas que regulava a realidade social, mas não se mostrava presente no cotidiano e na vida do cidadão.

É nesse contexto que surgiu a necessidade de um novo Código Penal, cujo projeto de reformulação patina no Congresso Nacional desde 2011. Criado por meio do Decreto-Lei 2.848, o atual Código Penal é uma legislação assistemática e não consegue mais cumprir seu papel coercitivo, numa sociedade cada vez mais violenta.

As leis que foram aprovadas para melhorar sua eficácia, transformaram o referido diploma legal numa verdadeira colcha de retalhos, não corrigindo as falhas para aproximá-lo do ideal de Justiça e acompanhar a rápida evolução da sociedade moderna.

A inércia do Congresso Nacional desmoronou o sonho de avançarmos em prol de um Direito Penal constitucional, uma vez que a redação deplorável do projeto em discussão torna sua reforma um retrocesso pelo texto estruturalmente inconsistente. É um projeto anacrônico com imperfeições técnicas que podem comprometer o devido processo legal.

Da forma como está sendo conduzida no Parlamento brasileiro, a reforma do Código Penal não trará nenhum resultado prático para a sociedade. Ao contrário, acabará fragilizando aquele que deveria ser o mais atual do conjunto de leis do país.

domingo, 16 de julho de 2017

Cidadãos invisíveis

Por Antonio Carlos Lua

Até hoje não se sabe exatamente o número de pessoas consideradas inimputáveis (isentas de pena), que – em razão de deficiência mental e num momento de surto psicótico – cometeram um crime.

Graves violações aos direitos fundamentais são praticadas contra a população que cumpre medida de segurança no país — tratamento imposto a pessoas com transtornos mentais que cometeram crimes sem compreender o caráter ilícito do ato. 

São milhares de sobreviventes da clausura compulsória, que por trás de grades, contidos em leitos, andam por pátios de instituições envelhecidas, mostrando o retrato fiel de um sistema medieval e desumano.

Os tempos de confinamento superam a pena máxima permitida no país, fazendo com que essas pessoas atravessem os muros de um dos regimes mais cruéis de apartação social. A pergunta não é “quando”, mas sim “se” chegará o dia de ganhar a liberdade.

É muito difícil libertar pessoas consideradas inimputáveis confinadas em Estabelecimentos de Custódia e Tratamento Psiquiátrico. Isso porque mesmo com toda a documentação necessária para sair falta local para recebê-los.

Os laços familiares não existem mais. Assim, elas ficam internadas em regime de abandono perpétuo. Dentro da unidade são classificadas formalmente como “problema social”.

Já idosas, elas continuam esperando que o Estado os corporifique para além dos números, respeitando suas necessidades existenciais ignoradas em vários domínios da vida.

Precisamos romper essa inércia, dando o primeiro passo para o enfrentamento político e humanitário da questão. 

O direito de estar no mundo é um direito humano, sendo este o mais diretamente violado pelo regime de asilamento compulsório e pelo tempo indeterminado imposto pela medida de segurança no Brasil. 

domingo, 9 de julho de 2017

Sociedade caótica

Por Antonio Carlos Lua

O Brasil não respeita os idosos e ainda não entendeu que a velhice significa o próprio direito que cada ser humano tem de viver com dignidade, exercendo plenamente sua cidadania.

No ano em que o Estatuto do Idoso (Lei 10.741/03) completa 14 anos, e 23 anos após a edição da Lei de Política Nacional do Idoso (Lei 8.842/94), a violência contra a população idosa segue silenciosa.

Apesar da legislação garantir que o envelhecimento é um direito personalíssimo, não estão sendo assegurados ao idoso – como pessoa humana e sujeito de direitos civis – a liberdade, o respeito e a dignidade.

A sociedade caótica que vive em constante conflito não aceita a ideia do envelhecimento e trata os idosos como pertencentes ao "Mito da Velhice", considerando estes como cidadãos de segunda classe, quando se refere à produção, ao trabalho, ao lazer, à educação e à oportunidade.

Esquece a sociedade que ela está num contínuo processo de envelhecimento, que seus membros são "envelhecentes" desde que nasceram e que sempre lançam mão da dignidade como forma de defesa todas as vezes que têm seus direitos esbulhados.

Infelizmente, o descaso com o idoso no Brasil não parece ser passageiro. Mesmo existindo suficientes dispositivos legais e normativos para o enfrentamento da violência contra este segmento social, existe uma imensa distância entre as leis e sua implementação.

As próprias famílias não cuidam mais de seus ascendentes, que ficam à mercê da violência social, psicológica e física, que se evidencia na precariedade do tratamento familiar, dos serviços e programas sociais.

O Poder Público, por sua vez, não desenvolve políticas consistentes de proteção ao idoso, embora a Constituição Federal estabeleça em seu artigo 230 que “a família, a sociedade e o Estado têm o dever de amparar as pessoas idosas, defendendo sua dignidade e garantindo-lhes o direito à vida”.

A Constituição Federal de 1988 deu nova forma à visão dos Direitos e Garantias Fundamentais, nos conscientizando de uma atribuição que já deveria estar internalizada, por ser diretamente relacionada à célula mater da sociedade – a família.

É dever da família, da sociedade civil organizada e do Estado apoiar iniciativas que amparem as pessoas idosas, para garantir sua dignidade e sua participação na comunidade. Uma das qualidades essenciais para a caracterização de família é a eternalização dos laços afetivos, morais e quiçá jurídicos.

Sob este aspecto, a Constituição Federal vigente representou um avanço nas relações sociais que dizem respeito ao idoso, tendo em vista que as leis civis utilizadas anteriormente à sua promulgação posicionavam os idosos numa condição de quase interditos.

Diante de um cenário social em que temos uma legislação que protege os idosos, cabe ao Poder Público estruturar ações para assegurar os direitos destes, ancorados na Política Nacional do Idoso (Lei 8.842/94), que foi o grande marco para a extensão desses direitos.

Não é plausível que a sociedade brasileira, que sempre lutou por ideais de liberdade, igualdade e fraternidade acabe esquecendo e, consequentemente, banindo e rejeitando um segmento tão importante e expressivo.

No atual modelo econômico neoliberal – que atribui importância exacerbada ao lucro, à produtividade e ao consumo – o jovem é supervalorizado, enquanto o idoso é frequentemente considerado um inútil, um peso morto para a família e para sociedade, e um improdutivo para o Estado. Daí, o desprezo por ele e o desrespeito à sua dignidade.

domingo, 2 de julho de 2017

Judicialização da política


Por Antonio Carlos Lua

Desde o iluminismo – em meados do século XVIII – firmou-se o princípio-regra da separação dos Poderes, inserido em todas as Constituições pós-Revolução Francesa, quando ficou definido que cabe ao Poder Legislativo elaborar as leis, ao Poder Executivo administrar o Estado, e ao Poder Judiciário interpretar e julgar os conflitos referentes à sua aplicação, nas esferas pública e privada.

O grande advogado da teoria da separação dos Poderes foi Charles-Louis Secondat (1698-1755) – o Barão de Montesquieu – que considerava essa separação indispensável à existência do Estado Democrático de Direito.

A pós-modernidade pôs de cabeça para baixo a separação dos Poderes. Ultimamente fala-se muito da judicialização da política, fenômeno que consiste na decisão do Poder Judiciário em relevantes questões políticas.

Há alguns equívocos que carecem ser evitados a bem da elucidação do polêmico tema. O primeiro deles é a apoliticidade do Poder Judiciário. Os juízes não podem ter filiação político-partidária, mas como órgãos do Estado, por preceito constitucional, desempenham, no exercício de suas atribuições, funções delegadas da soberania popular, cuja natureza é eminentemente política, no sentido mais elevado e aristotélico do termo.

É inédito o atual protagonismo do Poder Judiciário em cenário de crises políticas, expondo, de forma democrática, os meandros obscuros da política brasileira, diante da escassez e ausência de virtudes dentro do atual sistema político, que é hoje, sem dúvida, a verdadeira pedra angular da crise estabelecida no país.

Encabeçado pelo Supremo Tribunal Federal, o Poder Judiciário brasileiro emergiu como guardião último dos direitos fundamentais dos cidadãos, vendo a lei como o elemento nuclear da democracia.

A judicialização da política – um fenômeno observado em diversas sociedades contemporâneas – ocorre porque os tribunais são chamados a se pronunciar onde o funcionamento do Legislativo e do Executivo se mostra falho, insuficiente ou insatisfatório.

No caso específico do Brasil, em rápida reminiscência histórica, convém situar que a República, proclamada através do golpe militar, foi constitucionalizada pela Carta de 1891, redigida por Rui Barbosa, que adotou o modelo norte-americano, erigindo o Supremo Tribunal Federal, como Corte constitucional, guardiã do espírito da Constituição Federal e de sua pilastra central – a soberania popular.

O modelo da primeira Constituição republicana repetiu-se em todos os textos constitucionais que lhe sucederam. Mas logo no alvorecer da República, durante a gestão do marechal Floriano Peixoto (1891-1894), deu-se a primeira crise político-militar do novo regime, impondo o desafio da judicialização da pendência política, gerada pela revolta dos oficiais da Marinha, chefiados por Custódio de Mello e Wandenkolk contra o governo Floriano, de quem eram desafetos.

Rui Barbosa intercedeu a favor dos revoltosos, presos por ordem do Governo, impetrando habeas corpus para libertá-los. Consta que o marechal Floriano Peixoto, ao saber da interposição da medida judicial a favor dos seus opositores, teria feito, de forma arrogante, a seguinte pergunta: Quem dará habeas corpus aos membros do Supremo Tribunal Federal, se eles soltarem os revoltosos?

O caso gerou uma grave crise. Muitos revoltosos exilaram-se, outros foram fuzilados e Rui Barbosa teve que se exilar em Portugal e depois na Inglaterra. O Jornal do Brasil, que fez a publicação do habeas corpus, em uma de suas edições, foi fechado. O governo Floriano Peixoto encerrou-se em 1894, com o seu titular cansado e desgastado, política e pessoalmente.

Esse foi o primeiro episódio da História republicana em que se criou o impasse da judicialização da política. Ao longo do tempo, vieram outros casos, trazendo vários exemplos de que vem cabendo ao Poder Judiciário o julgamento de relevantes questões políticas no Brasil. Quando se trata de fazer valer o espírito da Constituição Federal, não há outra forma de julgar. 

A judicialização das elevadas questões políticas em alguns casos é benéfica, desde que prevaleçam os superiores interesses da sociedade.