domingo, 29 de outubro de 2017

Fake News: Máquina de manipular multidões


Por Antonio Carlos Lua

Doze milhões de pessoas difundem hoje, no Brasil, notícias falsas com conteúdo deliberadamente produzido para ferir reputações, atacar instituições, criar convicções equivocadas e levar pessoas a tomarem decisões baseados em inverdades, soterrando versões confiáveis e fidedignas do jornalismo.

São as chamadas 'fake news', que transformaram os meios digitais de comunicação em um campo minado, diante da ausência de mecanismos eficazes para contenção de material ardiloso que desvirtua deploravelmente o caráter dialético do jornalismo, cuja razão de ser é a descoberta de importantes verdades.

Revestidas de artifícios que lhe conferem aparência de verdade, as 'fake news' mostram o lado caliginoso do ser humano e chegam à enésima potência no Brasil, com práticas torpes de viés explicitamente suspeito. Elas sugam os recursos jornalísticos para se legitimarem como verdade diante de pessoas que – acreditando estar em contato com uma informação verídica –  são usadas como elo para compor uma corrente difusora de notícias falsas.

As 'fake news' surgiram com o advento das redes sociais, um espaço onde qualquer usuário pode ocupar a posição de produtor de informação e alcançar um público imensurável. Assim, posts em blogs, no Facebook, twitter, vídeos no YouTube e inserções em outras mídias e formatos digitais dão suporte a notícias, opiniões e comentários de pessoas comuns, pulverizando o que antes era exclusividade dos jornalistas.

Nesse jogo, há interesses econômicos – como a monetização de cliques – e políticos – como a destruição de reputações. Uma pesquisa da Universidade de São Paulo (USP) identificou vários sites brasileiros especializados em notícias falsas no mundo da política. Eles atendem às audiências da direita e da esquerda, mostrando que a ingenuidade do público acontece dos dois lados do espectro ideológico.

Esses sites fazem de tudo para justificar uma mentira, conceito que ficou conhecido como “pós-verdade”. A novidade associada a esse neologismo consiste na popularização das crenças falsas e na facilidade para fazer com que os boatos prosperem.

A disseminação de notícias falsas gera implicações gravíssimas no campo jurídico. No aspecto penal, caso a divulgação da notícia falsa seja praticada com ciência do embuste e intenção de ofender alguém, poderá configurar crime contra a honra – calúnia, injúria ou difamação –, conforme previsão do Código Penal.

A disseminação de informação capaz de gerar pânico ou desassossego público, por sua vez, é tipificada pelo artigo 30 do Decreto-Lei 4.766/42. Provocar alarme, anunciar desastre, perigo inexistente, ou praticar qualquer ato que produza pânico são condutas classificáveis como contravenção penal, nos termos do artigo 41 da Lei de Contravenções Penais.

Entretanto, se as implicações penais atingem apenas os que, dolosamente, espalham falsidades pelos meios de comunicação, os efeitos civis podem ser mais abrangentes, alcançando também aqueles que, de forma imprudente, compartilham informações inverídicas.

De acordo com o Código Civil, qualquer pessoa que causar prejuízos – materiais ou morais – a outro, ainda que por negligência ou imprudência, comete ato ilícito, passível de responsabilização, implicando em pagamento de indenização, multa em caso descumprimento, retratação, entre outras penalidades.

Ou seja, mesmo que a pessoa não tenha a intenção de causar danos, se não agir com razoável diligência para confirmar as informações que compartilha –em especial aquelas que atribuem fatos ou falas a terceiros – poderá ser chamada a responder por eventuais danos causados.

domingo, 22 de outubro de 2017

Indústria de bacharéis


Por Antonio Carlos Lua

O Brasil continua negligenciando na questão da educação superior, em especial no ensino jurídico, cuja proliferação desenfreada de faculdades de Direito vem trazendo efeitos maléficos na formação profissional de bacharéis, deixando a sociedade apreensiva quanto à atuação dos futuros operadores do Direito.

O alto índice de reprovação de bacharéis em Direito no Exame de Ordem aplicado pela OAB (Ordem dos Advogados do Brasil) é o diagnóstico da grave crise no ensino jurídico brasileiro, mostrando que as políticas adotadas pelo Ministério da Educação (MEC) são equivocadas.

Novas diretrizes precisam ser elaboradas para garantir a qualidade do ensino de Direito no Brasil, onde até mesmo as faculdades consideradas modelo estão com dificuldades em adaptar grades curriculares para acompanhar as novas exigências de um mercado jurídico dinâmico e exigente.

Nos últimos anos, as faculdades de Direito se multiplicaram no país. É assustador o número de acadêmicos em cursos de comprovada má qualidade que não incentivam a formação humanista e geral dos bacharéis e tampouco qualificam estes para o ingresso no mercado de trabalho.

São mais de 1.300 cursos funcionando como linha de produção em escala elevada pelo país inteiro, sem nenhum comprometimento com as mudanças sociais e a concretização da Justiça.  Os compromissos são meramente mercadológicos e desvirtuam a função da universidade no ensino de Direito.

Nenhum país no mundo possui tantos cursos de Direito quanto o Brasil. Temos mais faculdades de Direito do que todos os outros países juntos. No resto do planeta a soma chega a 1.100 cursos de Direito. Nos Estados Unidos, com uma população de 323, 1 milhões de habitantes, são 232 faculdades de Direito.

Temos hoje mais de quatro milhões de pessoas formadas em Direito, mas apenas 800 mil conseguiram aprovação no exame da OAB, que habilita bacharéis para o exercício da advocacia. De acordo com o Censo de Educação Superior, mais de 106 mil pessoas se formaram em Direito no país em 2016 – 88% em faculdades particulares.

A má qualidade do ensino oferecido por esses cursos vem sendo demonstrada não só pelo elevado índice de reprovação no exame aplicado pela OAB, como também na péssima performance dos bacharéis em concursos de carreiras jurídicas, cujas vagas muitas vezes não são preenchidas devido ao baixíssimo desempenho de candidatos nas provas.

Na medida em que aumenta o índice de bacharéis reprovados no exame da OAB, o Ministério da Educação (MEC) autoriza cada vez mais pedidos de autorização para funcionamento de novos cursos de Direito, cujas bases de sustentação nem sempre são estáveis e perenes.

A indústria de bacharéis cresce de forma impressionante, com uma educação jurídica deslocado da realidade, alheia às necessidades sociais e incapaz de formar profissionais habilitados para enfrentar os desafios profissionais que a carreira jurídica impõe.

Em termos concretos, isso significa que falta massa crítica no âmbito do ensino jurídico, cuja baixa qualidade traz drásticas consequências para toda a sociedade, principalmente aqueles que precisam de um sistema jurídico formado por valores equânimes.

O ensino jurídico precisa ser encarado como um bem social e não mais como uma mercadoria, com uma legislação educacional permissiva e faculdades voltando-se para a criação de cursos de Direito apenas porque estes dão status e trazem expressiva lucratividade.

A influência política não pode continuar prevalecendo na criação desenfreada de cursos, muitos deles funcionando até mesmo em galpões de armazéns, comprometendo a formação de bacharéis para o exercício de uma profissão que exige, por princípio, o saber jurídico.

O MEC não pode continuar permitindo a mercantilização do ensino jurídico com faculdades sendo transformadas em fábricas de diplomas para que seja passada ao mundo a falsa ideia de que no Brasil existe um relatório estatístico de escolaridade superior semelhante aos dos países desenvolvidos.

domingo, 15 de outubro de 2017

Contrabando legislativo


Antonio Carlos Lua

A Teoria da Divisão de Poderes, consagrada na obra ‘O Espírito das Leis’, do pensador francês Montesquieu, que – baseado na obra ‘Política’, do filósofo Aristóteles, e no livro ‘Segundo Tratado do Governo Civil’, de John Locke –  instituiu o Sistema de Freios e Contrapesos, para afastar governos absolutistas e evitar a produção de normas tirânicas, não vem tendo efeito prático no Brasil, com a acintosa supremacia do Executivo Federal em relação ao Congresso Nacional, na aprovação de Medidas Provisórias incompatíveis com os preceitos constitucionais.

Acobertado por uma pseudolegalidade à qual o Congresso Nacional se curvou, o Executivo Federal, enquanto detentor do poder político, vem subjugando o Legislativo, transformando o Parlamento brasileiro num almoxarifado da Presidência da República.

Valendo-se do artifício conhecido como “contrabando legislativo”, o Executivo Federal enfia sistematicamente penduricalhos – as chamadas “emendas jabutis” – em Medidas Provisórias que versam sobre assuntos que não guardam nexo algum com o objeto principal da matéria analisada.

As Medidas Provisórias ganharam uma proporção gigantesca no Brasil e vêm sendo editadas ao bel prazer do presidente da República. Essa prática ditatorial à qual espantosamente o Brasil se acostumou mostra o autoritarismo do Executivo Federal que – aproveitando-se da preguiça do Congresso Nacional em legislar – insere no ordenamento brasileiro dispositivos casuísticos, gerando sérios danos à sociedade.

De acordo com o artigo 62 da Constituição Federal, em caso de relevância e urgência, o Presidente da República poderá adotar Medidas Provisórias, com força de lei, devendo submetê-las, de imediato, ao Congresso Nacional, quando não existirem outros instrumentos jurídicos capazes de atuar sobre um determinado problema que exija a adoção do mecanismo.

Nesse aspecto, verifica-se flagrante violação à Constituição Federal, evidenciando um desvirtuamento na edição de atos provisórios a serem votados no Congresso Nacional que – abandonando por completo os valores éticos que lhe seriam próprios – vem renegando a sua atribuição institucional de suprimir os excessos e abusos do Presidente da República por meio dos ditos diplomas legais.

O processo legislativo brasileiro é muito complicado. Existe uma tradição de muita barganha, de envolvimento político na tramitação de leis no Congresso Nacional. Embora seja tarefa primordial do Parlamento a elaboração das leis, a agenda legislativa no Brasil está nas mãos do Executivo.

O próprio Parlamento se responsabiliza pela distribuição de poderes que favorecem o Executivo, cuja influência na aprovação de normas é nociva e gera instabilidade no sistema legal, causando uma verdadeira erupção de sentimento de litigiosidade e insegurança jurídica.

Embora saibamos que nenhum governante contemporâneo pode prescindir de instrumentos legislativos ágeis que lhe permitam enfrentar situações de urgência que tragam prejuízos graves à sociedade, ao Estado e à Nação, não é plausível que o Poder Executivo continue usurpando atribuições típicas do Legislativo, cuja pauta hoje é dedicada à alteração ou aprovação de Medidas Provisórias, deixando em segundo plano o seu papel constitucional e prioritário.

O Poder Legislativo precisa encontrar uma forma de conter a voracidade legiferante do Poder Executivo, diante da avalanche de Medidas Provisórias. Em que pese a provisoriedade dessas medidas, enquanto elas estão vigência deixam a sociedade apreensiva, uma vez que os abusos legislativos trazidos em seus textos têm mais caráter particular do que coletivo, beneficiando grupos políticos atrelados ao poder em detrimento da sociedade. 

domingo, 8 de outubro de 2017

O jurista das estatísticas


Por Antonio Carlos Lua

Começa a se concretizar no Brasil a previsão do jurista e filósofo norte-americano, Oliver Wendell Holmes Jr., que no polêmico artigo “The Path of the Law” (O Caminho do Direito), publicado na Harvard Law Review, no longínquo ano de 1897, afirmou que o homem dos velhos livros de Direito poderia até ser o jurista do presente, mas o jurista do futuro seria o homem das estatísticas.

Com a jurimetria sendo o bom senso da regra exata e o Direito o bom senso da esperada racionalidade, essa visão interdisciplinar ganhou corpo no Brasil, onde já se admite a aplicação das estatísticas para a compreensão das questões fáticas do complexo universo jurídico, fazendo valer o pragmatismo de Oliver Wendell Holmes Jr., que como integrante da Suprema Corte norte-americana estimulava os juízes a estudarem estatística.

A pesquisa ‘Justiça em Números’, desenvolvida pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) é um exemplo da adesão a essa ideia de rompimento com os padrões fechados de estudos estatísticos do Direito. Divulgada anualmente, a pesquisa tem mostrado que, embora de natureza distinta, a jurimetria pode funcionar em perfeita harmonia com o Direito, ajudando o Poder Judiciário a cumprir sua vocação de pacificação.

Ramo de conhecimento jurídico que se traduz como “métrica do Judiciário”, a Jurimetria estuda os conflitos sociais que chegam a julgamento, levantando os tipos de angústia e os motivos que levam as pessoas a procurar o Poder Judiciário, o perfil dos demandantes e demandados e quais são os entendimentos dos juízes a respeito das narrativas e dos pedidos apresentados pelas partes num processo.

Cruzando dados e informações, a jurimetria analisa o padrão de resolução aplicado aos litígios e desenvolve um quadro demonstrativo sobre a eficácia das decisões judiciais e os possíveis impactos de novas formas de entendimento jurídico.

Com o potencial de ampliar o conhecimento sobre os litígios e indicar melhores formas de resolvê-los, ela associa o Direito à estatística, mensurando os fatos relacionados aos conflitos, para antecipar cenários e planejar condutas na atividade forense.

O entendimento é de que, dentro de uma percepção lógica e humanista dos conflitos sociais que chegam ao Judiciário, as relações conflituosas acabam por obedecer ao mesmo ritmo das mudanças que se impõem pelas métricas matemáticas da vida, tendo em vista que, no mundo moderno, tudo se equaciona e até as nossas relações são baseadas em indicadores de qualidade.

O avanço da jurimetria deve muito ao desenvolvimento tecnológico, que facilita e amplia o acesso às informações processuais. Por trás da disciplina está uma concepção crítica do estudo tradicional do Direito, voltado para a discussão teórica de leis e princípios abstratos.

domingo, 1 de outubro de 2017

Limites da nossa democracia


Antonio Carlos Lua

Mesmo com os 29 anos de vigência da Constituição Federal – a serem comemorados na próxima quinta-feira (5) – o Brasil ainda continua regido por uma série de leis, normas e códigos criados pelos militares que – valendo-se de medidas autoritárias – redefiniram regras das principais áreas da administração pública, com orientações constitucionais que regravam um Estado autoritário.  

O dado mostra que, apesar de a Constituição ter redefinido a democracia e o respeito aos direitos humanos como pilares do Estado brasileiro, não houve concretamente no país um avanço decisivo na construção de um novo caminho rumo à democracia plena, capaz de fazer com que as transformações reais sejam integralmente conquistadas pela atuação das forças democráticas.

Nossa democracia tem ainda muitos limites que infelizmente ainda não foram ultrapassados, diante da dificuldade para se chegar a consensos sobre mudanças estruturais, devido à resistência de alguns beneficiários do sistema ditatorial que até hoje continuam mandando no país.

O fato de a Constituição Federal ser a antítese da fase vivida no regime militar – garantindo todos os direitos que haviam sido retirados pela Ditadura e acrescentando outros nunca previstos antes da sua vigência – não garantiu a retirada de leis instituídas num período de extrema privação de direitos do nosso ordenamento jurídico.

São regras que trazem nitidamente as marcas de um período de chumbo, marcado pelas restrições às liberdades e à participação política, reduzindo a capacidade do cidadão de atuar na esfera pública, empobrecendo a circulação de ideias no país, com retaliações violentas aos jornalistas que ousassem fazer críticas ao regime. Na época, cunhou-se até o slogan "Brasil, ame-o ou deixe-o."  

Para cercear a liberdade de expressão e os direitos dos jornalistas foi criada, em 1967, a Lei de Imprensa. Ela previa multas pesadas e até fechamento de veículos de comunicação, além de prisão para os profissionais de imprensa.

Felizmente, a lei foi revogada, em 2009, pelo Supremo Tribunal Federal (STF), numa votação histórica onde o órgão colegiado considerou a lei incompatível com a atual ordem constitucional, acolhendo entendimento do ex-presidente da Corte, ministro Carlos Ayres Britto.

A educação brasileira também passou por mudanças intensas na Ditadura, com o controle sobre ideologia, engessamento do currículo e pressão sobre o cotidiano da sala de aula. As disciplinas de filosofia e sociologia foram substituídas pela de OSPB (Organização Social e Política Brasileira), caracterizada pela transmissão da ideologia do regime autoritário.

Na área de alfabetização, a grande aposta era o Mobral (Movimento Brasileiro para Alfabetização), uma contraposição do regime militar ao método elaborado pelo educador Paulo Freire, que ajudou a erradicar o analfabetismo no mundo na mesma época em que foi considerado "subversivo" pelo governo e exilado do país.

A Constituição Federal de 1988 foi uma resposta a tudo que o país viveu nos anos de chumbo. Com ela, foi possível firmar a ideia da dignidade da pessoa humana, da concepção do Estado como responsável pela garantia dos direitos fundamentais, da necessidade de respeito aos valores constitucionais, trazendo de volta o voto direto, proibindo a tortura e penas cruéis, revogando a censura, entre tantas mudanças importantes e imprescindíveis.

No entanto, mesmo com alguns avanços, nos deparamos com algumas conclusões desanimadoras, exigindo uma avaliação para sabermos se realmente as cláusulas pétreas são ainda o núcleo fundamental do nosso ordenamento jurídico.

A constatação é de as conquistas não aconteceram na extensão prevista. Com as constantes reformas de Estado capitaneadas pela onda neoliberal, os governantes não conseguiram traduzir todos os direitos constitucionais em ações capazes de reduzir as desigualdades sociais, diminuindo a distância entre pobres e ricos.