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domingo, 29 de setembro de 2019

É urgente voltar a Marx

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Antonio Carlos Lua

Karl Marx – filósofo, historiador e jornalista – está mais vivo e atual do que nunca. O mundo hoje se parece, surpreendentemente, ao que ele e seu amigo Friedrich Engels prognosticaram no admirável ‘Manifesto Comunista’, conclamando pela união dos produtores de riqueza contra a elite burguesa expropriadora da mais-valia. 

Marx sofreu o destino de todos os grandes gênios, sempre incompreendido pela mediocridade reinante e pelo pensamento encadeado ao poder e às classes dominantes. 

Assim como Copérnico, Galileu, Servet, Darwin, Einstein e Freud, foi perseguido, humilhado e ridicularizado pela pequenez de intelectuais e por políticos complacentes com os poderosos, que repugnavam suas concepções revolucionárias.

Foi por isso que a Universidade cuidou muito bem de fechar suas portas a Karl Marx, Nem ele, nem seu eminente colega Friedrich Engels, jamais ascenderam aos claustros acadêmicos. No entanto, os dois produziram uma autêntica revolução nas ciências sociais. 

Depois de Marx, nem a humanidade nem as ciências sociais voltaram a ser o que eram antes, com a amplitude enciclopédica de seus conhecimentos e a profundidade de sua visão política empenhada na busca de evidências sobre a exploração do trabalho que transforma o homem numa mercadoria coisificada e alienada e sobre a desigualdade social discrepante que cresce de maneira exponencial.

Este sórdido mundo de oligopólios predatórios, de guerras, de degradação da natureza e roubo de bens comuns, da desintegração social, das sociedades polarizadas e de nações separadas por abismos de riqueza, poder e tecnologia é o mundo que Karl Marx antecipou em todos os seus escritos. 

O caráter decisivo da acumulação capitalista – estudada como ninguém mais em “O Capital” – era negado por todo o pensamento da burguesia e pelos governos, que até hoje pensam equivocadamente que a história é movida pela paixão dos grandes homens, pelas crenças religiosas, pelos resultados de batalhas heroicas ou imprevistas contingências da história. 

Karl Marx tirou a economia das catacumbas e não somente destacou sua centralidade, mas demonstrou que toda a economia é política, que nenhuma decisão econômica está despojada de conotações políticas. 

Mais do que isso, ele mostrou que não existe saber mais político e politizado que o da economia, rematando os tecnocratas, de ontem e de hoje, cujas elucubrações econométricas obedecem a meros cálculos técnicos, com as monumentais sandices de ultraliberais como Paulo Guedes e tantos outros tão ineptos quanto corruptos.

Por méritos próprios Marx está mais vivo do que nunca. O farol do seu pensamento projeta uma luz cada vez mais esclarecedora sobre a tenebrosa realidade do mundo atual.

domingo, 8 de setembro de 2019

Descaminhos da politica


Antonio Carlos Lua

Desde 1824 – logo depois que se instaurou a independência, declarada, em 7 de setembro de 1822, pelo então regente do país, Pedro de Alcântara, que se tornou o primeiro imperador do Brasil, consagrando-se como D. Pedro I – vivemos um arranjo democrático, que perdura ao longo dos anos, passando pela monarquia e os períodos de regime republicano.

O Brasil nunca foi uma autêntica democracia no sentido original da palavra na língua do poeta épico da Grécia Antiga, Homero. Entre nós, o poder supremo, ou seja, a soberania, jamais pertenceu ao povo (demos).

Embora tenhamos uma Constituição Federal, muito bem-acabada, enquanto peça legal, um código político velado vem assegurando a dominação elitista na sociedade. Nem mesmo o processo constituinte que culminou na Carta Magna de 1988 foi capaz de romper com essa lógica. 

Nossa construção democrática sempre caminhou com uma Constituição oficial, institucional, e outra ilegal, paralela, subliminar e não escrita, com a cooptação política da oligarquia nacional que, com a complacência de alguns partidos, se sobrepõe e solapa as regras democráticas.

No Brasil, a diferença entre o que está na lei e o que existe na prática não é de hoje, é de sempre. Encontramos no artigo 1º, parágrafo único, da Constituição Federal, a declaração fundamental de que todo poder emana do povo que o exerce diretamente por intermédio de representantes eleitos. 

Na verdade, o povo não tem poder algum no Brasil. Ele faz parte de um conjunto teatral, embora não sendo parte propriamente do elenco, mas ficando em torno do elenco. Toda a nossa vida política é decidida nos bastidores. 

Para mudar isso não basta mudar as instituições políticas. É preciso mudar a mentalidade coletiva e os costumes sociais, que fazem com que o povo não saiba que democracia é um regime político em que ele tem o poder, em última instância, para decidir as questões fundamentais para o futuro do país, não somente elegendo os seus representantes, mas também tendo o poder de destituí-los. 

Essa noção pouco clara de democracia é fruto de quase quatro séculos de escravidão. Quando Tomé de Souza desembarcou no Brasil, em 1549, trouxe o seu famoso regulamento de governo, no qual tudo estava previsto, mas faltando, porém, a coisa mais importante: a constituição de um povo. 

Ao longo da história, o Brasil não conseguiu constituir esse povo. Isso porque o poder sempre foi oligárquico, ou seja, de uma minoria, fazendo-nos chegar ao Século XXI a uma situação de duplicidade completa. 

A história mostra que nós nunca vivemos de modo republicano e democrático. O primeiro historiador do Brasil, Frei Vicente do Salvador, apresentou uma declaração que até hoje permanece intocável, ao dizer que “nenhum homem dessa terra é repúblico, nem zela e trata do bem comum, se não cada um do bem particular”. 

Não existe a possibilidade de democracia sem que haja uma comunidade em que o bem público esteja acima dos interesses particulares. O chamado povão, as classes mais populares e humildes já trazem há séculos essa mentalidade de submissão. 

Procuram resolver os seus problemas através do auxílio paternal de certos políticos ou através do desvio da lei. Vemos isso cotidianamente. No Brasil, o povo geralmente não se insurge contra uma lei considerada injusta, pois o costume é sempre desviar-se da proibição legal.

Essa mentalidade foi forjada por uma instituição política colonial, depois imperial e falsamente republicana, mas, sobretudo, pela vigência do sistema capitalista, que entrou em vigor no Brasil no ano do seu descobrimento. 

O sistema capitalista tem essa característica específica, com o poder sempre oculto e dissimulado. Os grandes empresários, por exemplo, dizem que não são eles que fazem a lei, mas, na verdade, são eles que fazem o Congresso Nacional. São eles que dobram os presidentes da República. 

Enquanto isso, o povo continua não tendo a menor participação, ainda que reduzida, no exercício da soberania. Isso acontece desde a proclamação da República, quando ele assistiu bestializado a tudo o que acontecia, talvez imaginando tratar-se de uma parada militar, como descreveu o jurista, jornalista e abolicionista no tempo do Império, Aristides Lobo.

domingo, 1 de setembro de 2019

Democracia sem memória

Antonio Carlos Lua

Há 40 anos era promulgada a controversa Lei da Anistia, que concedeu perdão a todos que cometeram crimes políticos, crimes conexos e crimes eleitorais entre os dias 2 de setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979. 

A anistia foi estendida ainda aos que tiveram seus direitos políticos suspensos, aos servidores públicos ligados à administração estatal, aos militares e aos dirigentes e representantes sindicais punidos pelos Atos Institucionais e Complementares durante a ditadura militar.

A Lei da Anistia não é um tema do passado, como muitos dizem. É um assunto atual, adiado por muito tempo. O debate em torno da referida Lei é extremamente  necessário, para a uma avaliação da qualidade da democracia que o Brasil vem tentando construir nos últimos 30 anos. 

A ambiguidade da Lei de 1979 teve dois ingredientes. Por um lado, significou a interrupção da perseguição política em larga escala com a capilaridade que vinha tendo através do Sistema Nacional de Informações (SNI). 

Significou também o retorno dos exilados e a libertação dos presos políticos, com a diferença de que os presos que estavam condenados pelos chamados “crimes de sangue” — como se falava à época — ou seja, os condenados por terem tomado parte na luta armada, não estavam incluídos e ficaram de fora do texto final da Lei da Anistia. 

Por outro, houve injustiças, pois aqueles agentes públicos que praticaram crimes contra a humanidade, torturaram, mataram e, portanto, também praticaram “crimes de sangue”, não viriam a ser investigados e, consequentemente, não vieram a sofrer responsabilizações sob o ponto de vista criminal. 

Assim, a seletividade que a lei estabeleceu foi prejudicial àqueles que foram perseguidos políticos. A sociedade organizada nos Comitês de Anistia queria a responsabilização dos torturadores. No entanto, a forma como o governo controlou esse processo impediu que isso viesse a acontecer.

Dessa forma, a Lei da Anistia estabeleceu um tratamento discriminatório em relação aos perseguidos políticos. Ou seja, reverberou a seletividade da perseguição política e também trouxe um bloqueio para que se pudesse investigar os crimes praticados pela ditadura, caminhando, assim, em direções ambíguas. 

A Lei da Anistia trouxe consigo um ingrediente de reposição do período de perseguição política, repetida em muitos dos seus artigos na Emenda Constitucional (EC 26/1985), que chamou a Assembleia Nacional Constituinte. 

A emenda repetiu os termos da Lei da Anistia de 1979 com uma mudança que diz respeito à definição do que seriam crimes conexos. A definição muito pouco precisa fez com que um julgamento do Supremo Tribunal Federal sobre a constitucionalidade da referida lei, em 2010, ressuscitasse essa interpretação heterodoxa do conceito de crime conexo. O entendimento do STF foi de que conexão criminal seria tudo o que se relacionaria a crime político, de qualquer natureza. 

A ditadura construiu uma interpretação para a ideia de crime conexo, afirmando que um eventual “crime” que o agente público teria cometido para perseguir quem praticava o crime político ou o crime que é conexo ao político, também seria considerado crime conexo. 

Isso é algo que não é sustentável em nenhum livro de Direito Penal ou reflexão acadêmica, teórica ou técnica, do Direito Penal. Foi um estratagema utilizado para anistiar os crimes dos agentes da ditadura sem assumi-los, sem dizer com todas as letras que estariam anistiados os crimes de tortura, de assassinato, entre outros crimes praticados, inclusive, por agentes públicos.

Essa foi a interpretação que na época da ditadura predominou, alcançando uma elasticidade impressionante, inclusive do ponto de vista temporal, valendo para trás e para frente, de maneira muito aberta e generalizada, para impedir que as investigações pudessem caminhar. 

Uma das questões atuais da Lei da Anistia de 1979 está presente, sem dúvida alguma, nessa barreira de esquecimento e de silêncio que se impôs a partir da sua promulgação, com a desculpa e a referência institucional dela. Talvez esse seja um dos aspectos atuais mais evidentes dessa herança gerada na Lei da Anistia, com as limitações da nossa redemocratização.

Como uma boa parte da nossa democracia desse período que chamamos de República Nova se estabeleceu com a crença de que estávamos num processo ascendente de fortalecimento democrático, colocamos as deficiências da lei debaixo do tapete, sem o devido enfrentamento. 

Mas, agora, vivemos um processo social e político no qual essas questões não conseguem mais ficar onde estavam. Elas estão ressurgindo sem que possamos manter escondidos os desafios que foram postergados. 

Precisamos lutar contra essa tendência, que é própria da modernidade, de querer pensar sempre para frente, no sentido de esquecer o que veio antes e de achar que o progresso é inevitável e linear. Não é. Se formos pensar numa sociedade mais justa e menos violenta, vamos olhar para trás e ver que não houve muito progresso. 

Para podermos chegar nos pontos cegos da nossa sociedade temos que ter esse compromisso de conversar com o passado e de saber que a interpretação que temos do passado é determinante para o nosso presente e para o nosso futuro. 

Se não fizermos isso, andaremos às cegas. Um país violento como o Brasil clama por essa atitude. Devemos nos colocar entre aqueles que veem na rememoração da anistia brasileira e na discussão dela não um tema do passado, mas um tema atual.