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domingo, 14 de junho de 2020

O Brasil em desconstrução


Antonio Carlos Lua

No mundo real, percebemos que – para além da pandemia e dos conflitos sociais – temos um Brasil em desconstrução com os eventos traumáticos na política, num processo que cozinha em fogo baixo, diante de um Estado ineficiente e inoperante.

Essa desconstrução tem uma carga de morte. Algo morreu e está morrendo no país, com políticos fisiológicos, persistentes, inabaláveis, vorazes, sem futuro e viventes de um tempo que já passou. 

A violência que explode em linchamentos, chacinas e extermínios que se propagam no país é sintoma de uma chocante realidade que aparece para além do teatro do poder de Brasília, cujos atores esquecem que o poder deve ser exercido obedecendo ao povo e não mandando no povo.

O Brasil nunca viveu de modo republicano e democrático. É por isso que o primeiro historiador do país, Frei Vicente do Salvador, fez uma declaração que até hoje permanece intocável, ao afirmar que “nenhum homem dessa terra é repúblico, nem zela e trata do bem comum, se não cada um do bem particular”. 

Não existe a possibilidade de democracia real num país onde os interesses particulares e oligárquicos sempre estão acima do bem público com a secular submissão imposta às classes populares e humildes, forjada por uma instituição política colonial, imperial e falsamente republicana.

É este modelo de política que permite agora a arrogância de um presidente tirano que se enfurece contra a extinção de sua frágil luz governamental e tenta esconder as consequências desastrosas da sua gestão num momento em que uma pandemia letal destroça nossas ilusões de força que o país nutriu entre nós para encobrir suas misérias evidentes. 

Graças à imprensa e às redes sociais, a violência fascista está gravada e difundida amplamente. Desta vez, não houve o desaparecimento progressivo dos fatos no oceano de notícias banais.

Agora, as práticas fascistas estão registradas e filmadas,  indignando a todos, nos levando às ruas com punhos e vozes erguidas em protestos pacíficos em contraposição aos levantes selvagens dos inimigos da democracia que querem nos distrair das nossas razões políticas.

Não faltam evidências de que o governo bolsonarista de extrema-direita quer usar o caos da pandemia em favor de seus próprios fins políticos, ameaçando as instituições e praticando uma violência sem limites contra o povo que jurou proteger.

A força do ódio explodiu diante de nós, em meio a uma confluência letal de razões, com o comportamento condenável de um presidente da República que, com um arsenal de atrocidades, prega a morte de forma desmedida.

Diante disso, precisamos agir começando com a nossa própria ação, ainda que pequena. Se as ruas não são possíveis, vamos fazer o que for possível em apoio à luta contra o fascismo. Tudo vale. Há muitas maneiras de se colocar e lutar, em tempos de verdade.

Vivemos um momento político crucial que pode ter dois desfechos opostos. Ou garantimos um grau de justiça superior, por meio de um esforço popular persistente ou nos enfraquecemos diante da reação autoritária que quer nos afundar em uma escuridão desconhecida.

A hora é agora para escrevermos um futuro decente para o país, sendo fiéis a nós mesmos, uns aos outros, e à legião de vítimas que exigem justiça neste vale de tristeza insuportável no país.

quinta-feira, 11 de junho de 2020

O pecado original do Brasil

Antonio Carlos Lua

As manifestações contra o racismo que se multiplicam no Brasil representam o ponto central para entendermos a desigualdade, a pobreza, a miséria e a violência no país. Elas sinalizam o início de uma possível virada histórica para encerrar o longo ciclo de segregação e opressão aos afrodescendentes.

O joelho sobre o pescoço de George Floyd, sufocando-o até a morte, causou indignação e lembrou os tempos da escravidão. Os negros brasileiros têm também um joelho sobre eles, que os oprime há séculos, cuja situação é ilustrada pela violência e carências inadmissíveis nas áreas de saúde, moradia, emprego e educação. 

Existe o estereótipo de que as pessoas negras são por natureza seres humanos inferiores. Esta ideia remonta ao período da escravidão e foi incorporada pela sociedade brasileira para justificar a violência racial. A ideia da supremacia branca é, portanto, um legado da escravidão, mas, acima de tudo, um dos fundamentos próprios da nossa sociedade. 

Como podemos superar esse pecado original do Brasil em relação à questão racial? 

A primeira coisa é reconhecer que o nosso país foi construído com um sistema desumano. A escravidão beneficiou economicamente a Nação e enriqueceu a cultura  brasileira, mas mesmo assim não se discute honestamente a questão das reparações aos descendentes dos escravos. 

Em nosso país, o racismo não só se manifesta em atos de discriminação ou injúria racial. O ato discriminatório que denota o racismo é o sentimento de superioridade, o desprezo  pelas vidas das pessoas negras, o desrespeito, a indiferença. 

No Brasil, o racismo é notório. Ele é institucional, estrutural e estruturante em nossa sociedade. Está na formação sociocultural, em todas as relações e em todos aqueles que gozam as vantagens que o racismo lhes proporciona.

Uma das características do racismo à brasileira é quando sociedade procura negar, esconder, ou minimizar o preconceito. Essa prática ocorre de forma pedagógica por instituições formativas como escolas, universidades, religiões, além da política e da publicidade, que, de forma persuasiva, fazem com que as pessoas endossem essa negação. 

Para os racistas, vidas negras só importam para serem usadas. Este é um dos pontos centrais para entendermos a desigualdade no Brasil. Não há nada de cordial em nossas relações raciais. Pessoas negras são maioria entre os pobres e miseráveis nas estatísticas de mortes violentas, principalmente aquelas praticadas pelo Estado. 

Não podemos continuar nos negando a enfrentar o passado e a reconhecer que o Brasil foi construído com as mãos e os cérebros de pessoas negras, desde aquelas trazidas do continente africano para o trabalho escravo. O Brasil foi erguido por saberes, habilidades e inteligências negras, e isso é insuportável para a nossa elite parasitária.

São pessoas negras o primeiro engenheiro do Brasil – o abolicionista André Rebouças, que trabalhou pelo desenvolvimento de vários países africanos –, o maior escritor brasileiro – Machado de Assis, que é também o fundador da Academia Brasileira de Letras. Eles foram injustiçados e tiveram até suas estátuas trocadas e, em muitos casos, a cor da pele embranquecida em fotografias. 

São mulheres como Chiquinha Gonzaga, Antonieta de Barros, Enedina Alves, Carolina de Jesus, Ruth de Souza, Lélia Gonzalez, Beatriz do Nascimento, Lia Vieira, Geni Guimarães, Conceição Evaristo, Petronilha Gonçalves, Matilde Ribeiro, Luiza Bairros, Nilma Lino Gomes, Mãe Beata, que, entre muitas outras, enaltecem culturalmente nossa Nação. 

Esse é um registro escondido da nossa história que interfere diretamente no protagonismo negro até os dias atuais em todas áreas de conhecimento, nas artes, na música,  na cultura, na literatura, na política, na ciência, na educação, na mídia. 

Infelizmente, as barreiras impostas à população negra pelo racismo distancia dos afrodescendentess a governança do poder político e da produção cultural. É necessário reforçar na sociedade aquilo que Steve Biko chamou de Consciência Negra, ou seja, orgulho grupal e a determinação dos Negros de se levantarem e conseguirem a autorrealização desejada. 

Precisamos recorrer a Paulo Freire para entendermos que ninguém educa ou conscientiza ninguém e que as pessoas se educam e se conscientizam em diálogos, na relação, na dor e na luta.

O Brasil somente passará a ser digno da alcunha de democracia após a superação do racismo no país. Para isso, porém, é necessário uma mobilização social antirracista para se construir uma democracia real. 

Nesse sentido, as manifestações contra o racismo, com símbolos de resistência e a palavra de ordem #VidasNegrasImportam representam o início de uma nova fase na luta política, mostrando que democracia e racismo são coisas inconciliáveis.