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domingo, 18 de outubro de 2020

A muleta política brasileira

Antonio Carlos Lua

O processo eleitoral municipal mostra que os partidos e suas lideranças mantêm o monopólio da representação política sob o ponto de vista legal, mas perderam fragorosamente o monopólio do discurso político, deixando a sociedade prisioneira desse paradoxo. 

Há um profundo desencantamento e uma rejeição latente da sociedade em relação aos partidos e aos políticos, gerando um incômodo dilema entre os eleitores que, de alguma forma ou de outra, precisam votar em candidaturas num sistema que rejeitam.

Ao mesmo tempo em que os partidos e os políticos não se mostram capazes de oferecer respostas efetivas para modernizar o sistema representativo, a sociedade passa a vislumbrar janelas pelas quais possa exercer um maior controle e regulação sobre eles. 

Nessa agonia, nossa frágil democracia – hoje, mais morta do que viva –  segue uma interminável desidratação. Estamos num beco sem saída e não sairemos desse contexto se não rediscutirmos impiedosamente as idiotices que fizeram o país alcançar tão nítido e espetacular fracasso no campo democrático.

Ou repensamos o Brasil de forma inovadora ou não haverá mais lugar para nós com a desordem política no país, que  tornou-se um laboratório de irracionalidades com sucessivos retrocessos, num doloroso espetáculo que parece não ter fim. 

Chegamos ao grau absoluto da redundância política, que nos faz retroceder aos arcaísmos que levamos mais de um século para vencer e superar. Vivemos um impasse com uma política desestabizadora, sem compromisso com o bem comum. 

O velho não serve mais e até agora o novo não apareceu. Essa política que está aí – absolutamente – não serve. A democracia precisa ter, de fato, vigência institucional no Brasil, para descartar agendas oportunistas que distanciam-se dos nossos horizontes políticos. 

Chegou a hora de sair desse tormento, virar a página e afastar a névoa que hoje ofusca a nossa visão, impedindo-nos de escolher novos caminhos e nos livrarmos das bravatas de uma política desfigurada sem verdade e sem governabilidade, catalizando desilusões e frustações.

Quem são as lideranças políticas hoje? Qual é o elemento novo existente na política no atual momento? Há algum sinal que nos indique que possa surgir algo novo na política? Por que temos tão poucas mulheres e tão poucos negros na política, se a sociedade é mais negra e mais da metade dos cidadãos são mulheres? Qual a razão desse vazio? Por que continuamos insistindo com agendas políticas estapafúrdias que solapam as regras democráticas? 

Precisamos de um verdadeiro fermento político no Brasil que, infelizmente, nunca foi uma autêntica democracia no sentido original da palavra na língua do poeta épico da Grécia Antiga, Homero. Entre nós, o poder supremo, ou seja, a soberania, jamais pertenceu ao povo (demos). Para mudar isso é preciso uma nova mentalidade coletiva.

segunda-feira, 12 de outubro de 2020

Visão antropológica redutiva

Antonio Carlos Lua 

A superação do dogma de fé neoliberal foi novamente enfatizada pelo Papa Francisco, desta vez na encíclica Fratelli Tutti (Todos irmãos), que aponta as conhecidas fragilidades nos sistemas políticos, trazendo uma crítica ao cosmopolitismo dos ricos e ao falso universalismo ancorado no individualismo radical que se espraia nas sociedades competitivas.

Muitos criticaram o Pontífice argentino e consideraram muito político o seu posicionamento na condição de líder religioso e espiritual, como se Francisco não pudesse se manifestar num momento crucial para a humanidade.

Esquecem que uma encíclica política sempre se sustenta sobre bases teológicas, da mesma forma que uma encíclica teológica sempre terá implicações políticas. Afinal, o próprio Evangelho já é político porque ser Cristo têm implicações sobre a vida. Cristãos não estão retirados do mundo. Eles estão no mundo.

Francisco está na linha de discussão política e não no campo teológico da infalibilidade papal ou da aprovação de um elemento da fé. Não é um discurso dogmático e sim um exemplo extraordinário de liderança. O mundo está faminto por isso.

Se olharmos para a história, constataremos que as encíclicas são regularmente políticas, como as escritas por Leão XIII sobre a Igreja e o Estado na França, em 1892 – e por Pio XI sobre o comunismo e o nazismo. Cada Papa se expressa com seu estilo, seu pensamento e sua história.

Fratelli Tutti renova a linguagem da Igreja Católica e ganha força quando o Francisco apresenta as opções para combater as feridas que ele próprio denuncia, colocando o ser humano no centro de todas as prioridades, com um estilo direto, menos diplomático sem as sutilezas de seus predecessores. 

Os que criticam o Pontífice são os oponentes da paz, os líderes políticos populistas e aqueles que querem vê-lo confinado a numa esfera puramente espiritual, bem como os que ajudam para a manutenção da pobreza, da desigualdade, da negação de direitos.

São aqueles que –  alimentada por uma visão antropológica redutiva e por um modelo econômico fundado no lucro – não hesitam em explorar, descartar e até matar o homem, impondo um modelo cultural único, excluindo as pessoas pela condição social. 

São aqueles que contribuem decisivamente para o aumento da riqueza sem equidade produzindo cada vez mais pobreza com crises que fazem morrer de fome milhões de crianças já reduzidas a esqueletos humanos por causa da miséria reinante com o inaceitável silêncio internacional.

São aqueles que fazem prevalecer sempre a lei do mais forte, com os poderosos engolindo os fracos, com a explícita negação da primazia do ser humano, na adoração do antigo bezerro de ouro com uma nova versão bizarra e cruel na ditadura de uma economia sem rosto e sem um objetivo verdadeiramente humano. 

domingo, 4 de outubro de 2020

Dialética do neoliberalismo

Antonio Carlos Lua       

Há espécies humanas que quando se sentem ameaçadas enfrentam a realidade, mas há também aquelas que fogem, outras que atacam e umas que usam como arma a dissimulação criando um mundo paralelo, distante dos problemas reais, para escamotear a verdade e, silenciosamente, massacrar os opositores.

O último exemplo se aplica aos provedores do neoliberalismo, doutrina econômica dos incapazes de pensar a economia como instrumento do desenvolvimento social e de emancipação dos desvalidos, vítimas permanentes dos constrangimentos sociais que os mantêm aquém do que é propriamente humano.

Os mecanismos do sistema neoliberal – que ganhou aceitação em vários países a partir das décadas de 1980 e 1990 – humilham os cidadãos que saem desse processo de desumanização minimizados no riso sem graça, na festa sem alegria, no coração sem recompensas. É a condição humana tratada como estorvo ideológico do homem-coisa, do homem descartável.

Com práticas abusivas, os neoliberais pregam a salvação nacional em países politicamente vulneráveis como o Brasil, vítima da usurpação ideológica a partir da adoção de receitas econômicas toscas como doutrina social, cortando dos que tem pouco para incrementar os ganhos de quem já tem muito.

É uma espécie de totalitarismo silencioso que, embora não se mostre como tal, implode democracias, infiltrando-se em todos os aspectos da cultura, para colonizar politicamente os cidadãos que se creem livres. 

Senhor do tempo e do espaço, o neoliberalismo deixa a cidadania em situação de constante ameaça. Se antes ele já era ruim, agora se faz ainda mais perverso amparado em engrenagens financeiras que nos deixam a mercê das incertezas do mercado. 

Sem respeitar as necessidades humanas e no afã da riqueza sem ética, ele usa estratégias políticas desleais, impondo a obediência inconsciente de uma maioria, massacrando os valores da sociedade com o lucro indevido, sujo e pecaminoso.

O neoliberalismo entrou no Brasil pela porta  dos fundos no Governo Collor e se aninhou nos corredores da política econômica se infiltrando fortemente no Governo FHC. No governo Temer ele cresceu para chegar ao apogeu no atual governo através de um baixo clero neoliberal formado por fanáticos de seita sem um pensamento econômico civilizado.

A pergunta que não quer calar permanece. Em que momento homens e mulheres – sob o manto da liberdade e da igualdade – vão desfrutar da abundância e dos confortos que a doutrina perversa do neoliberalismo oferece em seu desatinado desenvolvimento no Brasil?