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terça-feira, 29 de setembro de 2020

A dogmática crença no poder

 

Antonio Carlos Lua

Estão em curso duas grandes guerras no planeta. A primeira, a dos homens contra os próprios homens. A segunda, a dos homens contra a natureza. Embora sejam aparentemente diferentes e combatidas com armas diferentes, elas estão reunidas sob o mesmo objetivo: o domínio. 

A guerra dos homens contra os próprios homens acontece de modo semelhante ao passado. A diferença está nas armas utilizadas. Agora, além das armas de fogo, existem também as armas financeiras poderosas, capazes de colocar povos de joelhos, fazê-los passar fome sem derramar sangue.

Já a guerra do homem contra a natureza começou quando o homem entrou na modernidade e imaginou ser o proprietário do planeta, cortando o galho da árvore sobre o qual está sentado, esquecendo que a natureza não é infinita e tem limites que estão a ponto de serem superados. 

Vivemos numa realidade escamoteada pela voracidade das demandas de acumulação do capital, que se sustentam na firme e dogmática crença no poder todo-poderoso das ditaduras odiosas, da exploração excessiva de recursos naturais pelos “conquistadores”, que pretendem ser uma raça especial de humanos. 

Diante da envelhecida visão de dominação e exploração – sustentada no divórcio profundo entre a economia e a natureza – surgem no horizonte várias mensagens de alerta, diante dos crescentes problemas climáticos globais.

Os limites da natureza estão sendo aceleradamente ultrapassados com o estilo de vida antropocêntrico, exigindo uma nova ética que nos faça entender que não somos Deus e que a natureza foi chamada de Gaia – deusa grega primordial da potência da Terra – por ser um gigantesco organismo responsável pelo cordão umbilical da vida no planeta.

Não podemos continuar aniquilando a natureza com o progresso modernizante pelo qual plantas, animais e escravos humanos são literalmente consumidos para aumentar a energia para as classes dominantes e impérios.

Conviver é o verbo certo. Dominar, o errado. A modernidade confundiu os verbos. Como afirmava Galileu, o Livro da Natureza está escrito nos símbolos da matemática. Uma guerra justificada pela necessidade do desenvolvimento e do progresso mostra um homem incoerente e arrogante. 

domingo, 20 de setembro de 2020

Resposta poética às injustiças

Antonio Carlos Lua

Há 47 anos partia Pablo Neruda (1904/1973), um dos mais celebrados poetas da literatura contemporânea, cuja morte até hoje está envolta em mistérios, apesar de seu corpo ter sido exumado em 2013, após ser contestada a versão oficial sobre sua morte.

O atestado de óbito de Pablo Neruda indica que ele morreu de câncer de próstata, logo após o golpe militar liderado pelo general Augusto Pinochet, que tirou violentamente do cargo o ex-presidente da República chilena, Salvador Allende, vindo este a se suicidar enquanto os militares golpistas atacavam o Palácio do Governo.

A versão sobre a causa da morte de Neruda foi contestada por seus amigos. Eles afirmaram  que o poeta – figura emblemática do caminho traçado por Salvador Allende para o Chile – planejava seguir para o exílio no México, mas com problemas de saúde foi internado na Clínica Santa Maria de Santiago, onde teriam lhe aplicado uma injeção letal no estômago. 

Eliminá-lo era uma maneira de se desfazer de uma figura que poderia unir aqueles que queriam que a democracia fosse restaurada no Chile. Foi um motivo similar ao do assassinato de Orlando Letelier, o carismático ministro de Relações Exteriores, no governo de Salvador Allende.

À época, o presidente do México, Luis Echeverría Álvarez, pediu que o seu embaixador no Chile oferecesse asilo a Pablo Neruda. O poeta chileno aceitou a oferta. 

A discussão renovada sobre a morte de Pablo Neruda nos permite recordá-lo e vê-lo novamente como um profeta na luta contra a obscuridade, condenação e esquecimento, enviando à humanidade uma mensagem de esperança, animando a batalha pela justiça e a liberdade em tempos nefastos.

Nos versos mais famosos de seu ‘Canto Geral’, Neruda falou aos mortos anônimos da América Latina, quando escreveu: “Sobe para nascer comigo, irmão”, pedindo aos esquecidos e profanados pela história que renascessem. “Falai por minhas palavras e meu sangue”.

Na obra – uma espécie de resposta poética às injustiças históricas da América Latina em meio a Guerra Fria e um contexto de perseguição – Pablo Neruda transformou seus versos em arma de combate. Cotejar o que ele escreveu em ‘Canto Geral’ é uma atividade instigante.

Em 1933, ele escreveu uma de suas principais obras, “Residencia em la Tierra", em que emprega imagens e recursos próprios do surrealismo. O tom do livro é de profundo pessimismo em torno de temas como ruína, desintegração e morte, exprimindo a visão de um mundo caótico.

O abundante vocabulário de Neruda descrevendo vida e chão, personagens,  intenções e a narração, a recompor fatos históricos, se embaraçam num exuberante entrelaçamento de raízes, troncos, galhos, heróis, traidores.

A obra de Neruda é caracterizada por sua universalidade, incorporada em livros como "Residência na terra", "Odes Elementares", "Confesso que vivi", ou ainda nos versos dedicados ao mar, ao tempo, e os poemas como "As alturas de Machu Picchu", com o qual introduziu a história sul-americana. 

Em meados de 1950, Neruda recebeu o Prêmio Lênin da Paz e na década de 1970 foi consagrado com o Prêmio Nobel de Literatura. 

Apesar de ter partido há 47 anos, seus versos continuam atuais. Ele deixou mais do que uma herança intelectual para a literatura latino-americana. As sociedades atuais têm muito a aprender com seu legado. 

segunda-feira, 14 de setembro de 2020

O poeta da revolução

 Antonio Carlos Lua

Carismático pregador com austeras sandálias de pescador e uma boina preta cobrindo os cabelos brancos e rebeldes, Ernesto Cardenal é considerado por muitos o maior poeta hispano-americano de sua geração. 

Desde de uma estética da economia verbal que misturava as poéticas dos indígenas pré-colombianos – ademais do profundo sentimento bíblico dos Salmos e do Cântico dos Cânticos – a palavra de Ernesto Cardenal sempre foi ao cerne para comunicar com contundência. 

“O que há em uma estrela? Nós mesmos. Todos os elementos de nosso corpo e do planeta estão nas entranhas de uma estrela. Somos pó de estrelas. Das estrelas somos e para elas voltaremos”. 

Estes são os versos da cantiga “Expansão de Cântico Cósmico”, de Cardenal, que, mais que metáfora, é uma constatação expressada em uma poesia que se encanta com os enigmas da ciência.

Sacerdote jesuíta e discípulo do monge trapista Thomas Merton, Ernesto Cardenal, que faleceu em março deste ano, foi uma destacada voz da teologia da libertação . 

Ele será sempre lembrado por acreditar na revolução contra o vento e a maré, uma espécie de suprema “heresia”, ratificada pela admoestação pública que recebeu do Papa João Paulo II, que lhe impôs, em 1984, uma suspensão 'a divinis', revogada pelo Papa Francisco, em 2019.

Ele sofreu forte influência de Ezra Pound, após o particular encontro com a obra do poeta, músico e crítico literário norte-americano que, junto com T.S. Eliot, foi uma das maiores figuras do movimento modernista da poesia estadunidense do início do século XX. 

De Ezra Pound, Ernesto Cardenal tomou um recurso que consiste mais do que em uma colagem, mais que uma citação de um trecho poético, em uma redistribuição sábia da prosa do historiador ou do viajante até atingir um nível lírico ou épico. 

O próprio Ernesto Cardenal admitiu a influência de Ezra Pound, que o fez ver que não existem temas ou elementos que sejam próprios da prosa e outros que sejam próprios da poesia. 

Influenciado também por Pablo Neruda, Cardenal passou do poeta lírico e subjetivista ao poeta solar, diáfano e de tom épico que impera em boa parte do conjunto de sua obra. Quando foi ordenado padre, em 1965, conectou e integrou a escrita e a militância religiosa-política. 

Lutador incansável contra a ditadura de Anastasio Somoza, colaborou estreitamente com a Frente Sandinista de Libertação Nacional, na Nicarágua.  Em 19 de julho de 1979, dia da vitória da Revolução Nicaraguense, foi nomeado ministro de Cultura do governo sandinista. 

Cardenal não perdia a oportunidade de afirmar sua convicção revolucionária. “A revolução é o que nos fez humanos, toda a humanidade viveu de revolução em revolução, desde que começou a falar, que foi a revolução da linguagem, ou o descobrimento do fogo. Tudo o que a humanidade foi adquirindo foi por meio da revolução”, afirmava.

Em sua ação política, vertida pela mesma mística, cumpria o papel de teólogo da libertação, traduzindo os Salmos para a realidade de opressão do povo nicaraguense, numa releitura do clamor dos pobres campesinos, que eram semelhantes à poeira dispersa, espalhada na escuridão. Tal como os átomos, essa prática ganhou corpo e somou significativamente na Revolução nicaraguense. 

Mesmo que seu nome tenha sobrevoado com insistência o Nobel de Literatura em 2005, ele foi tardiamente reconhecido em âmbitos canônicos. 

Apenas aos 84 anos recebeu, no Chile, o Prêmio Pablo Neruda de Poesia, para repetir a experiência três anos mais tarde na Espanha, ao receber o Prêmio Rainha Sofia de Poesia 2012.

Poeta com uma potente originalidade, cumpriu, durante 95 anos, a missão de fazer em arte e ação a síntese do desconhecido e inalcançável com a esperança cintilante. 

segunda-feira, 7 de setembro de 2020

Apóstolo da resistência

Antonio Carlos Lua

No dia 3 de abril de 1968, o ativista Martin Luther King, um dos líderes mais importantes na luta pelo direitos civis na história norte-americana, estava em Memphis, Tennessee, nos Estados Unidos, para apoiar a greve de trabalhadores negros da limpeza urbana. 

Lá, ele fez o discurso histórico – quase uma profecia – intitulado “Eu estava no topo da montanha”, um de seus pronunciamentos mais famosos, afirmando que Deus tinha lhe permitido subir ao topo da montanha para olhar a ‘Terra Prometida dos Povos Negros’. 

No dia seguinte, Martin Luther King – que vinha recebendo muitas ameaças de morte – foi assassinado por James Earl Ray, num episódio até hoje envolto em mistério, que tornou-se o pesadelo real dos afro-americanos que perderam uma voz poderosa e um corajoso testemunho à justiça social.

Ícone da luta pela igualdade racial, Luther King tornou-se um símbolo universal que viu no retorno de Israel a Canaã a figura da liberdade alcançada pelos negros. 

Ele levou a sério a dimensão ética de suas atuações, os riscos que elas implicavam e a complexidade das situações. Proclamando o poder revolucionário da sua crença, acreditava que seu país deveria passar por uma revolução de valores.

Se contrapôs radicalmente às chamadas leis de Jim Crow, que estabeleceram a segregação racial nos Estados Unidos no final do Século XIX. Ao lutar pelos direitos civis, ele queria redimir a alma da América, gesto que pesa hoje no além-atlântico. 

Pastor da Igreja Batista, na Dexter Avenue, em Montgomery, Alabama, Luther King via a fé como um chamado urgente para servir, uma ética altruísta de preocupação que, segundo ele – citando o profeta hebreu Amós – faz correr "a retidão como um rio e a justiça como um ribeiro perene”. 

Dizia que, em vez de herdar a fé, ele próprio teve de estabelecer os termos de sua relação com o Todo-poderoso. Certamente ele gostaria que vivêssemos sua fé específica que consiste em lutar para vencer o racismo e combater a pobreza com políticas públicas iluminadas e compassivas.

Ele elaborou a teoria da resistência não violenta como alternativa mais segura, enriquecida com o encontro do pensamento de Mahatma Gandhi, cuja forma de manifestação pacífica representou a “Satyagraha”, termo que o líder indiano usou para nomear a filosofia que o tornou mundialmente conhecido.

Luther king foi a pessoa mais jovem a receber o Prêmio Nobel da Paz, em 1964, com 35 anos. Reconhecido como um incansável apóstolo da resistência, foi o paladino dos rejeitados e marginalizados. Sempre se expôs na linha de frente para derrubar na sociedade estadunidense o preconceito étnico. 

Com coragem altruísta, viveu fielmente a missão de lutar por um mundo socialmente justo e racialmente igualitário. Sua mensagem permanece viva e é extremamente válida para os nossos tempos em que as desigualdades, as rejeições, as exclusões e os muros entre os povos, em vez de diminuir, tendem a crescer.