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segunda-feira, 14 de setembro de 2020

O poeta da revolução

 Antonio Carlos Lua

Carismático pregador com austeras sandálias de pescador e uma boina preta cobrindo os cabelos brancos e rebeldes, Ernesto Cardenal é considerado por muitos o maior poeta hispano-americano de sua geração. 

Desde de uma estética da economia verbal que misturava as poéticas dos indígenas pré-colombianos – ademais do profundo sentimento bíblico dos Salmos e do Cântico dos Cânticos – a palavra de Ernesto Cardenal sempre foi ao cerne para comunicar com contundência. 

“O que há em uma estrela? Nós mesmos. Todos os elementos de nosso corpo e do planeta estão nas entranhas de uma estrela. Somos pó de estrelas. Das estrelas somos e para elas voltaremos”. 

Estes são os versos da cantiga “Expansão de Cântico Cósmico”, de Cardenal, que, mais que metáfora, é uma constatação expressada em uma poesia que se encanta com os enigmas da ciência.

Sacerdote jesuíta e discípulo do monge trapista Thomas Merton, Ernesto Cardenal, que faleceu em março deste ano, foi uma destacada voz da teologia da libertação . 

Ele será sempre lembrado por acreditar na revolução contra o vento e a maré, uma espécie de suprema “heresia”, ratificada pela admoestação pública que recebeu do Papa João Paulo II, que lhe impôs, em 1984, uma suspensão 'a divinis', revogada pelo Papa Francisco, em 2019.

Ele sofreu forte influência de Ezra Pound, após o particular encontro com a obra do poeta, músico e crítico literário norte-americano que, junto com T.S. Eliot, foi uma das maiores figuras do movimento modernista da poesia estadunidense do início do século XX. 

De Ezra Pound, Ernesto Cardenal tomou um recurso que consiste mais do que em uma colagem, mais que uma citação de um trecho poético, em uma redistribuição sábia da prosa do historiador ou do viajante até atingir um nível lírico ou épico. 

O próprio Ernesto Cardenal admitiu a influência de Ezra Pound, que o fez ver que não existem temas ou elementos que sejam próprios da prosa e outros que sejam próprios da poesia. 

Influenciado também por Pablo Neruda, Cardenal passou do poeta lírico e subjetivista ao poeta solar, diáfano e de tom épico que impera em boa parte do conjunto de sua obra. Quando foi ordenado padre, em 1965, conectou e integrou a escrita e a militância religiosa-política. 

Lutador incansável contra a ditadura de Anastasio Somoza, colaborou estreitamente com a Frente Sandinista de Libertação Nacional, na Nicarágua.  Em 19 de julho de 1979, dia da vitória da Revolução Nicaraguense, foi nomeado ministro de Cultura do governo sandinista. 

Cardenal não perdia a oportunidade de afirmar sua convicção revolucionária. “A revolução é o que nos fez humanos, toda a humanidade viveu de revolução em revolução, desde que começou a falar, que foi a revolução da linguagem, ou o descobrimento do fogo. Tudo o que a humanidade foi adquirindo foi por meio da revolução”, afirmava.

Em sua ação política, vertida pela mesma mística, cumpria o papel de teólogo da libertação, traduzindo os Salmos para a realidade de opressão do povo nicaraguense, numa releitura do clamor dos pobres campesinos, que eram semelhantes à poeira dispersa, espalhada na escuridão. Tal como os átomos, essa prática ganhou corpo e somou significativamente na Revolução nicaraguense. 

Mesmo que seu nome tenha sobrevoado com insistência o Nobel de Literatura em 2005, ele foi tardiamente reconhecido em âmbitos canônicos. 

Apenas aos 84 anos recebeu, no Chile, o Prêmio Pablo Neruda de Poesia, para repetir a experiência três anos mais tarde na Espanha, ao receber o Prêmio Rainha Sofia de Poesia 2012.

Poeta com uma potente originalidade, cumpriu, durante 95 anos, a missão de fazer em arte e ação a síntese do desconhecido e inalcançável com a esperança cintilante. 

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