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sexta-feira, 25 de dezembro de 2020

Crônica do Natal

Antonio Carlos Lua

Embora assumindo significados diferentes para os cristãos e para os não cristãos, o Natal – cuja origem se perde na Antiguidade – nos mostra que a fé é uma convicção de que a morte e o mal não são a última palavra.

É neste contexto que é mencionada uma fuga ao Egito levando à imaginação de um Deus criança, um Deus que busca a salvação na simplicidade, na interdependência e no esvaziamento de si em favor do outro. 

O Deus criança, portanto, deve ser lembrado pelo serviço amoroso e gratuito ao próximo, diferentemente da visão daqueles que estão, indubitavelmente, mais próximos de Herodes do que de Jesus, sendo cúmplices do massacre de crianças em nosso tempo. 

Infelizmente, no Natal não há apenas a figura do Divino Infante, Jesus, de Maria e de José, da estrela, dos anjos, dos pastores e dos reis magos. Há também a figura de Herodes, com a sua crueldade. 

Narra o Evangelho de Mateus que, temendo que Jesus quando adulto poderia arrebatar-lhe o poder, Herodes mandou matar todos os meninos de Belém e de todos os seus territórios que tivessem menos de dois anos. Ele era tão cruel que mandou eliminar também toda a sua família. 

Esse bárbaro exemplo de violência contra as crianças não ficou no passado. Nos dias atuais, o poder dominante dos poderosos, tornado sistema, comete as piores  injustiças e mantém os algozes de crianças protegidos no anonimato. 

Mais que isso, as novas divindades, os reis de cada tempo se incomodam com a singeleza das crianças e as massacram implacavelmente. Hoje, especialmente no Brasil, vivemos sob vários Herodes, que pregam ódio, discriminação e eliminação de crianças, de indígenas, de jovens negros. 

Como não enxergar o Deus criança nos corpos assassinados de tantos meninos e meninas cujas vidas não valem nada para os novos verdugos, os novos imperadores? 

Assim como o sangue de Abel – assassinado por seu irmão Caim – o sangue das crianças também grita da terra e coloca em xeque nossa ética, nossa política. 

Onde está o enfrentamento às injustiças? Há quem celebre o Natal ignorando que Deus se faz criança a cada dia nesses mais pequeninos e que o reino dos céus é das crianças?

Resta-nos esperança? Sim, esperança. Mas, porém, não a confundamos com expectativa. A expectativa é passiva. A esperança é ativa. O essencial, sem dúvida, é Jesus Cristo. É seu Natal que celebramos. Saibamos, pois, distinguir o que é verdadeiro e o que é fútil na forma que o Natal é comemorado. 

Para isso, inspiremo-nos na exortação do apóstolo Paulo: “Não vos conformeis com as estruturas deste mundo, mas transformai-vos, renovando vossa maneira de pensar e julgar, para que possais distinguir o que é da vontade de Deus, a saber, o que é bom, o que lhe agrada, o que é perfeito”.

O Natal, no seu sentido mais profundo, quer dizer que Deus está definitivamente ligado ao destino humano. E que nós, humanos, pertencemos a Deus a ponto de fazer-se um de nós, nutrindo a firme esperança de que nossa vida está garantida para sempre. 

É atribuída a Camões a frase “procelosa tempestade e soturna noite e sibilante vento”, mas o fim é bom. Ainda na expressão de Camões, “há serena claridade, esperança de porto e salvamento”. O Natal realiza esta promessa.

sábado, 19 de dezembro de 2020

Beethoven: gênio da música universal

Antonio Carlos Lua

No ano em que é celebrado o 250º aniversário de Ludwig van Beethoven é importante lembrar que dez sinfonias do compositor alemão – Concerto para piano n° 2, em Si bemol maior; Sonata para piano nº 14, ‘Moonlight’; Sinfonia nº 3 em mi bemol; Sinfonia nº 5 em dó menor; Concerto para violino em ré; Sinfonia nº 6 em fá; Bagatela em lá menor, ‘Für Elise’; Sonata para piano nº 29, ‘Hammerklavier’; Sinfonia nº 9, ‘Coral’; e Quarteto de cordas em si bemol op. 130 – mudaram, para sempre, a história da música clássica. 

O mundo nunca mais foi o mesmo com a obra musical gigantesca, transformadora e poderosa de Beethoven, cujas sinfonias começam sempre na escuridão, mas terminam na luz, evocando o poder da música para nos levar a lugares interiores profundos, transmitindo algo universal. 

Beethoven – que cresceu em popularidade durante o Século XIX – fez sua estreia pública aos 24 anos tocando a peça ‘Concerto para piano n° 2, em Si bemol maior’, ultrapassando limites e criando novos sons, numa avalanche de arpejos e acordes.

A maioria das sinfonias, em 1803, durava cerca de 25 minutos. Beethoven  mudou totalmente essa regra com sua ‘Sinfonia Épica nº 3’, em uma escala dinâmica. Já lidando com a surdez, ele trabalhava com notas musicais profundamente emocionais, inspirando até hoje incontáveis  pianistas no mundo inteiro. 

Músicos consagrados reconhecem que é humanamente impossível tocar na velocidade de Beethoven que, com seus contrapontos escaldantes, trinados duplos diabólicos e passagens monumentalmente exigentes, exploram todas as fórmulas musicais, empurrando-as em direções virtuosísticas e expressivas.

A ‘Nona Sinfonia’ – maior obra-prima absoluta da história da música, lançada em 1824 – foi sua última composição, na qual ele mostra o sentimento de religiosidade com uma mística profunda, não aceitando a burocratização da fé. 

A gestação da sinfonia foi longa e complexa. Ela levou 12 anos para ser escrita e foi um gesto revolucionário de Beethoven, que já estava totalmente surdo, isolado, introspectivo e esgotado física e emocionalmente. 

Na ‘Nona Sinfonia’, o primeiro tema é bastante marcial, seguido de trilhas suaves que vão se interpenetrando de forma cada vez mais intensa até que se reunirem em uma força energética muito complexa, numa atmosfera de expectativa de algo grandioso. 

Nela, ele combate os problemas que lhe causavam depressão e profunda amargura, ameaçando sufocar sua criatividade artística. Beethoven levou a música clássica ao máximo, trazendo imensuráveis efeitos em pleno Século XXI, definindo nossa cultura.

sábado, 21 de novembro de 2020

Direito ao esquecimento

Antonio Carlos Lua 

A controvérsia sobre a liberdade de imprensa e expressão e a preservação da intimidade e da imagem – dois direitos fundamentais garantidos pela Constituição Federal – volta a pauta do Supremo Tribunal Federal (STF) na polêmica ação que trata do ‘direito ao esquecimento’, ou seja, o direito de uma pessoa requerer a retirada definitiva de dados pessoais de qualquer publicação feita por veículo de comunicação de massa que sejam considerados indevidos ou prejudiciais à sua imagem, honra e nome. 

O STF reconhece que a missão é espinhosa e está buscando um equilíbrio virtuoso para deixar que as liberdades garantam a dignidade, mas que a liberdade de um não se sobreponha a de todos os outros, de tal maneira que não possamos saber qual é a nossa história, o nosso passado e como devemos construir nosso futuro.

O que o Supremo Tribunal Federal vai analisar é o que pode ser considerada a memória de alguém, que precisa ser resguardada e não pode ser discutida, e aquilo que não pode ser guardado porque constitui não memória individual, mas memória coletiva.

O resultado do julgamento na Suprema Corte do país terá reflexos sobre os casos semelhantes – a chamada repercussão geral – definindo um entendimento único, que deverá ser seguido pelo Judiciário em todo o Brasil.

Há três linhas jurídicas bem delineadas na discussão do tema. Os juristas que são contra o direito ao esquecimento dizem que – além de não constar expressamente na legislação brasileira – esse direito não poderia ser extraído de qualquer direito fundamental, nem mesmo do direito à privacidade e à intimidade.

Assim, um direito ao esquecimento seria, ademais, contrário à memória de um povo e à própria História da sociedade. A liberdade de informação prevaleceria sempre e a priori, à semelhança do que ocorre nos Estados Unidos.

Na defesa desse posicionamento, é importante invocar a jurisprudência mais recente do Supremo Tribunal Federal, especialmente o célebre precedente das biografias não autorizadas (ADI 4.815).

De forma geral, vale argumentar que o direito ao esquecimento é desnecessário no Brasil, que já possui garantias constitucionais que protegem a honra, sendo a lei atual suficiente para proteger os chamados direitos de personalidade, isto é, a dignidade da pessoa, nos aspectos físicos, psíquicos e morais.

Entretanto, em contraposição a esse entendimento, os defensores do direito ao esquecimento apontam que ele não apenas existe, como deve preponderar sempre, como expressão do direito da pessoa humana à reserva, à intimidade e à privacidade.

A alegação é de que na esteira da cláusula geral de tutela da dignidade da pessoa humana – valor supremo na ordem constitucional brasileira – esse direito prevaleceria sobre a liberdade de informação acerca de fatos pretéritos, não atuais. Para essa corrente de juristas, entender o contrário seria rotular o indivíduo, aplicando “penas perpétuas” por meio da mídia e da internet.

Essa tese ampara-se na decisão proferida pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ), em 2013, no célebre caso da Chacina da Candelária, no qual aquela Corte reconheceu um direito ao esquecimento que definiu como “um direito de não ser lembrado contra sua vontade” (REsp 1.334.097/RJ).

Esse entendimento ampara-se também na experiência européia, que, em tese jurídica contrária à experiência norte-americana, inclina-se pela prevalência do direito ao esquecimento.

Os precedentes desse direito estão na ideia de que, por exemplo, um indivíduo que tenha cumprido pena na prisão não seja prejudicado por isso ao procurar um emprego e se reinserir na sociedade, uma vez que seu nome pode ser buscado em poucos cliques nas ferramentas de busca do Google e, fatalmente, aparecerá a notícia sobre sua condenação.

Na discussão do polêmico tema, surgem, no entanto, juristas que assumem uma posição intermediária, com o entendimento de que a Constituição Federal não permite hierarquização prévia e abstrata entre liberdade de expressão e privacidade, da qual o direito ao esquecimento seria apenas um desdobramento.

Eles defendem que – figurando ambos como direitos fundamentais – não haveria outra solução tecnicamente viável que não a aplicação do método de ponderação, com vistas à obtenção do menor sacrifício possível para cada um dos interesses em colisão. Argumentam também que a matéria não pode ser tratada de forma binária, já que existe uma grande margem entre o sim e o não para aplicação do direito ao esquecimento.

Seja qual for a posição a ser adotada ao final do julgamento pelo Supremo Tribunal Federal no caso em análise, uma coisa é certa: estaremos diante de um julgamento histórico, que jamais ficará no esquecimento.

sábado, 14 de novembro de 2020

O ponto enigmático na obra de Fernando Pessoa


Antonio Carlos Lua 

Fernando Pessoa – poeta, filósofo, editor, escritor, crítico literário, jornalista, analista político e tradutor, – teve a carreira literária marcada pela criação de heterônimos. Escreveu muitos livros e poemas, incluindo ‘O Guardador de Rebanhos’; ‘Mensagem’; ‘Poemas de Alberto Caeiro’; ‘Poemas Dramáticos’; ‘O Eu profundo e os outros Eus’; ‘Livro do Desassossego’. 

Entre seus poemas mais marcantes destaca-se “Mar Português”, aquele em que ele afirma que “tudo vale a pena, se a alma não é pequena”, passagem poética que encontra ressonâncias recorrentes nas relações humanas.

Em “Mar Português” Fernando Pessoa diz: “Ó mar salgado, quanto do teu sal / São lágrimas de Portugal! / Por te cruzarmos, quantas mães choraram / Quantos filhos em vão rezaram! / Quantas noivas ficaram por casar / Para que fosses nosso, ó mar! / Valeu a pena? /Tudo vale a pena / Se a alma não é pequena / Quem quer passar além do Bojador / Tem que passar além da dor / Deus ao mar o perigo e o abismo deu / Mas nele é que espelhou o céu.

Com o poema “Mar Português”, Fernando Pessoa talvez tenha tentado nos dizer que quando a alma é pequena ela não é capaz de romper com as fronteiras do egoísmo, por ser fechada, isolada, centrada em si mesma, debruçada narcisisticamente sobre o espelho, a contemplar o próprio rosto ou umbigo, acumulando bens, coisas materiais, coisificando as pessoas, sendo incapaz de amar desmedidamente.

Fernando Pessoa foi um dos mais controvertidos poetas do Século XX. Ele  declarava-se um cristão gnóstico. Apesar da dimensão religiosa de sua temática poética, não se alinhou a nenhuma doutrina associada a signos de religiosidade.

Em todos os personagens criados por intermédio da heteronímia, ele fez uso dos mais distintos universos religiosos, para, assim, compor sua própria forma de religiosidade, como se desejasse contrariar os limites sociais estabelecidos para o exercício da fé.

Fernando Pessoa ganhava o pão e o vinho pondo palavras no lugar de palavras. Insatisfeito em ser somente um, se fez vários. Chamou-se Alberto Caeiro, Álvaro de Campos, Ricardo Reis e tantos outros, cada um deles sendo a expressão individualizante de um conteúdo plural que se tornou singular no seu fazer-se. 

Essa foi uma das marcas registradas da escrita de Fernando Pessoa. Entre pseudônimos, heterônimos e semi-heterônimos, ele chegou a criar aproximadamente 72 personagens. 

Um heterônimo de grande importância na obra de Fernando Pessoa é Bernardo Soares, considerado um semi-heter ‘ó nimo’, autor do Livro do “Desassossego”, importante obra literária do Século XX. 

Tendo sido "plural", como ele próprio se definiu, Fernando Pessoa criou personalidades próprias para os vários poetas que conviveram nele.

Ele conduziu uma profunda reflexão sobre a relação entre verdade, existência e identidade. Este último fator se destaca no ponto enigmático que perpassa a obra do poeta português. 

Em vida, Fernando Pessoa fez a seguinte afirmação: “Se depois de eu morrer, quiserem escrever a minha biografia, não há nada mais simples. Tem só duas datas, a da minha nascença e a da minha morte. Entre uma e outra todos os dias são meus”

Fernando Pessoa nasceu na cidade de Lisboa (Portugal), em 13 de junho de 1888, mas foi educado em Durban, na África do Sul, para onde viajou com os seus pais aos seis anos. 

Devido ao seu contato com a literatura britânica, ele adotou o idioma inglês como segunda língua. Por sinal, seu primeiro livro foi escrito em inglês. Ele só veio a escrever seu primeiro livro em português apenas uma década depois da sua primeira obra literária. 

Na África do Sul, ele se aprofundou no inglês numa escola britânica. Sua última frase, por sinal, é escrita em inglês: “I know not what tomorrow will bring”(Eu não sei o que o amanhã trará”).

domingo, 18 de outubro de 2020

A muleta política brasileira

Antonio Carlos Lua

O processo eleitoral municipal mostra que os partidos e suas lideranças mantêm o monopólio da representação política sob o ponto de vista legal, mas perderam fragorosamente o monopólio do discurso político, deixando a sociedade prisioneira desse paradoxo. 

Há um profundo desencantamento e uma rejeição latente da sociedade em relação aos partidos e aos políticos, gerando um incômodo dilema entre os eleitores que, de alguma forma ou de outra, precisam votar em candidaturas num sistema que rejeitam.

Ao mesmo tempo em que os partidos e os políticos não se mostram capazes de oferecer respostas efetivas para modernizar o sistema representativo, a sociedade passa a vislumbrar janelas pelas quais possa exercer um maior controle e regulação sobre eles. 

Nessa agonia, nossa frágil democracia – hoje, mais morta do que viva –  segue uma interminável desidratação. Estamos num beco sem saída e não sairemos desse contexto se não rediscutirmos impiedosamente as idiotices que fizeram o país alcançar tão nítido e espetacular fracasso no campo democrático.

Ou repensamos o Brasil de forma inovadora ou não haverá mais lugar para nós com a desordem política no país, que  tornou-se um laboratório de irracionalidades com sucessivos retrocessos, num doloroso espetáculo que parece não ter fim. 

Chegamos ao grau absoluto da redundância política, que nos faz retroceder aos arcaísmos que levamos mais de um século para vencer e superar. Vivemos um impasse com uma política desestabizadora, sem compromisso com o bem comum. 

O velho não serve mais e até agora o novo não apareceu. Essa política que está aí – absolutamente – não serve. A democracia precisa ter, de fato, vigência institucional no Brasil, para descartar agendas oportunistas que distanciam-se dos nossos horizontes políticos. 

Chegou a hora de sair desse tormento, virar a página e afastar a névoa que hoje ofusca a nossa visão, impedindo-nos de escolher novos caminhos e nos livrarmos das bravatas de uma política desfigurada sem verdade e sem governabilidade, catalizando desilusões e frustações.

Quem são as lideranças políticas hoje? Qual é o elemento novo existente na política no atual momento? Há algum sinal que nos indique que possa surgir algo novo na política? Por que temos tão poucas mulheres e tão poucos negros na política, se a sociedade é mais negra e mais da metade dos cidadãos são mulheres? Qual a razão desse vazio? Por que continuamos insistindo com agendas políticas estapafúrdias que solapam as regras democráticas? 

Precisamos de um verdadeiro fermento político no Brasil que, infelizmente, nunca foi uma autêntica democracia no sentido original da palavra na língua do poeta épico da Grécia Antiga, Homero. Entre nós, o poder supremo, ou seja, a soberania, jamais pertenceu ao povo (demos). Para mudar isso é preciso uma nova mentalidade coletiva.

segunda-feira, 12 de outubro de 2020

Visão antropológica redutiva

Antonio Carlos Lua 

A superação do dogma de fé neoliberal foi novamente enfatizada pelo Papa Francisco, desta vez na encíclica Fratelli Tutti (Todos irmãos), que aponta as conhecidas fragilidades nos sistemas políticos, trazendo uma crítica ao cosmopolitismo dos ricos e ao falso universalismo ancorado no individualismo radical que se espraia nas sociedades competitivas.

Muitos criticaram o Pontífice argentino e consideraram muito político o seu posicionamento na condição de líder religioso e espiritual, como se Francisco não pudesse se manifestar num momento crucial para a humanidade.

Esquecem que uma encíclica política sempre se sustenta sobre bases teológicas, da mesma forma que uma encíclica teológica sempre terá implicações políticas. Afinal, o próprio Evangelho já é político porque ser Cristo têm implicações sobre a vida. Cristãos não estão retirados do mundo. Eles estão no mundo.

Francisco está na linha de discussão política e não no campo teológico da infalibilidade papal ou da aprovação de um elemento da fé. Não é um discurso dogmático e sim um exemplo extraordinário de liderança. O mundo está faminto por isso.

Se olharmos para a história, constataremos que as encíclicas são regularmente políticas, como as escritas por Leão XIII sobre a Igreja e o Estado na França, em 1892 – e por Pio XI sobre o comunismo e o nazismo. Cada Papa se expressa com seu estilo, seu pensamento e sua história.

Fratelli Tutti renova a linguagem da Igreja Católica e ganha força quando o Francisco apresenta as opções para combater as feridas que ele próprio denuncia, colocando o ser humano no centro de todas as prioridades, com um estilo direto, menos diplomático sem as sutilezas de seus predecessores. 

Os que criticam o Pontífice são os oponentes da paz, os líderes políticos populistas e aqueles que querem vê-lo confinado a numa esfera puramente espiritual, bem como os que ajudam para a manutenção da pobreza, da desigualdade, da negação de direitos.

São aqueles que –  alimentada por uma visão antropológica redutiva e por um modelo econômico fundado no lucro – não hesitam em explorar, descartar e até matar o homem, impondo um modelo cultural único, excluindo as pessoas pela condição social. 

São aqueles que contribuem decisivamente para o aumento da riqueza sem equidade produzindo cada vez mais pobreza com crises que fazem morrer de fome milhões de crianças já reduzidas a esqueletos humanos por causa da miséria reinante com o inaceitável silêncio internacional.

São aqueles que fazem prevalecer sempre a lei do mais forte, com os poderosos engolindo os fracos, com a explícita negação da primazia do ser humano, na adoração do antigo bezerro de ouro com uma nova versão bizarra e cruel na ditadura de uma economia sem rosto e sem um objetivo verdadeiramente humano. 

domingo, 4 de outubro de 2020

Dialética do neoliberalismo

Antonio Carlos Lua       

Há espécies humanas que quando se sentem ameaçadas enfrentam a realidade, mas há também aquelas que fogem, outras que atacam e umas que usam como arma a dissimulação criando um mundo paralelo, distante dos problemas reais, para escamotear a verdade e, silenciosamente, massacrar os opositores.

O último exemplo se aplica aos provedores do neoliberalismo, doutrina econômica dos incapazes de pensar a economia como instrumento do desenvolvimento social e de emancipação dos desvalidos, vítimas permanentes dos constrangimentos sociais que os mantêm aquém do que é propriamente humano.

Os mecanismos do sistema neoliberal – que ganhou aceitação em vários países a partir das décadas de 1980 e 1990 – humilham os cidadãos que saem desse processo de desumanização minimizados no riso sem graça, na festa sem alegria, no coração sem recompensas. É a condição humana tratada como estorvo ideológico do homem-coisa, do homem descartável.

Com práticas abusivas, os neoliberais pregam a salvação nacional em países politicamente vulneráveis como o Brasil, vítima da usurpação ideológica a partir da adoção de receitas econômicas toscas como doutrina social, cortando dos que tem pouco para incrementar os ganhos de quem já tem muito.

É uma espécie de totalitarismo silencioso que, embora não se mostre como tal, implode democracias, infiltrando-se em todos os aspectos da cultura, para colonizar politicamente os cidadãos que se creem livres. 

Senhor do tempo e do espaço, o neoliberalismo deixa a cidadania em situação de constante ameaça. Se antes ele já era ruim, agora se faz ainda mais perverso amparado em engrenagens financeiras que nos deixam a mercê das incertezas do mercado. 

Sem respeitar as necessidades humanas e no afã da riqueza sem ética, ele usa estratégias políticas desleais, impondo a obediência inconsciente de uma maioria, massacrando os valores da sociedade com o lucro indevido, sujo e pecaminoso.

O neoliberalismo entrou no Brasil pela porta  dos fundos no Governo Collor e se aninhou nos corredores da política econômica se infiltrando fortemente no Governo FHC. No governo Temer ele cresceu para chegar ao apogeu no atual governo através de um baixo clero neoliberal formado por fanáticos de seita sem um pensamento econômico civilizado.

A pergunta que não quer calar permanece. Em que momento homens e mulheres – sob o manto da liberdade e da igualdade – vão desfrutar da abundância e dos confortos que a doutrina perversa do neoliberalismo oferece em seu desatinado desenvolvimento no Brasil?

terça-feira, 29 de setembro de 2020

A dogmática crença no poder

 

Antonio Carlos Lua

Estão em curso duas grandes guerras no planeta. A primeira, a dos homens contra os próprios homens. A segunda, a dos homens contra a natureza. Embora sejam aparentemente diferentes e combatidas com armas diferentes, elas estão reunidas sob o mesmo objetivo: o domínio. 

A guerra dos homens contra os próprios homens acontece de modo semelhante ao passado. A diferença está nas armas utilizadas. Agora, além das armas de fogo, existem também as armas financeiras poderosas, capazes de colocar povos de joelhos, fazê-los passar fome sem derramar sangue.

Já a guerra do homem contra a natureza começou quando o homem entrou na modernidade e imaginou ser o proprietário do planeta, cortando o galho da árvore sobre o qual está sentado, esquecendo que a natureza não é infinita e tem limites que estão a ponto de serem superados. 

Vivemos numa realidade escamoteada pela voracidade das demandas de acumulação do capital, que se sustentam na firme e dogmática crença no poder todo-poderoso das ditaduras odiosas, da exploração excessiva de recursos naturais pelos “conquistadores”, que pretendem ser uma raça especial de humanos. 

Diante da envelhecida visão de dominação e exploração – sustentada no divórcio profundo entre a economia e a natureza – surgem no horizonte várias mensagens de alerta, diante dos crescentes problemas climáticos globais.

Os limites da natureza estão sendo aceleradamente ultrapassados com o estilo de vida antropocêntrico, exigindo uma nova ética que nos faça entender que não somos Deus e que a natureza foi chamada de Gaia – deusa grega primordial da potência da Terra – por ser um gigantesco organismo responsável pelo cordão umbilical da vida no planeta.

Não podemos continuar aniquilando a natureza com o progresso modernizante pelo qual plantas, animais e escravos humanos são literalmente consumidos para aumentar a energia para as classes dominantes e impérios.

Conviver é o verbo certo. Dominar, o errado. A modernidade confundiu os verbos. Como afirmava Galileu, o Livro da Natureza está escrito nos símbolos da matemática. Uma guerra justificada pela necessidade do desenvolvimento e do progresso mostra um homem incoerente e arrogante. 

domingo, 20 de setembro de 2020

Resposta poética às injustiças

Antonio Carlos Lua

Há 47 anos partia Pablo Neruda (1904/1973), um dos mais celebrados poetas da literatura contemporânea, cuja morte até hoje está envolta em mistérios, apesar de seu corpo ter sido exumado em 2013, após ser contestada a versão oficial sobre sua morte.

O atestado de óbito de Pablo Neruda indica que ele morreu de câncer de próstata, logo após o golpe militar liderado pelo general Augusto Pinochet, que tirou violentamente do cargo o ex-presidente da República chilena, Salvador Allende, vindo este a se suicidar enquanto os militares golpistas atacavam o Palácio do Governo.

A versão sobre a causa da morte de Neruda foi contestada por seus amigos. Eles afirmaram  que o poeta – figura emblemática do caminho traçado por Salvador Allende para o Chile – planejava seguir para o exílio no México, mas com problemas de saúde foi internado na Clínica Santa Maria de Santiago, onde teriam lhe aplicado uma injeção letal no estômago. 

Eliminá-lo era uma maneira de se desfazer de uma figura que poderia unir aqueles que queriam que a democracia fosse restaurada no Chile. Foi um motivo similar ao do assassinato de Orlando Letelier, o carismático ministro de Relações Exteriores, no governo de Salvador Allende.

À época, o presidente do México, Luis Echeverría Álvarez, pediu que o seu embaixador no Chile oferecesse asilo a Pablo Neruda. O poeta chileno aceitou a oferta. 

A discussão renovada sobre a morte de Pablo Neruda nos permite recordá-lo e vê-lo novamente como um profeta na luta contra a obscuridade, condenação e esquecimento, enviando à humanidade uma mensagem de esperança, animando a batalha pela justiça e a liberdade em tempos nefastos.

Nos versos mais famosos de seu ‘Canto Geral’, Neruda falou aos mortos anônimos da América Latina, quando escreveu: “Sobe para nascer comigo, irmão”, pedindo aos esquecidos e profanados pela história que renascessem. “Falai por minhas palavras e meu sangue”.

Na obra – uma espécie de resposta poética às injustiças históricas da América Latina em meio a Guerra Fria e um contexto de perseguição – Pablo Neruda transformou seus versos em arma de combate. Cotejar o que ele escreveu em ‘Canto Geral’ é uma atividade instigante.

Em 1933, ele escreveu uma de suas principais obras, “Residencia em la Tierra", em que emprega imagens e recursos próprios do surrealismo. O tom do livro é de profundo pessimismo em torno de temas como ruína, desintegração e morte, exprimindo a visão de um mundo caótico.

O abundante vocabulário de Neruda descrevendo vida e chão, personagens,  intenções e a narração, a recompor fatos históricos, se embaraçam num exuberante entrelaçamento de raízes, troncos, galhos, heróis, traidores.

A obra de Neruda é caracterizada por sua universalidade, incorporada em livros como "Residência na terra", "Odes Elementares", "Confesso que vivi", ou ainda nos versos dedicados ao mar, ao tempo, e os poemas como "As alturas de Machu Picchu", com o qual introduziu a história sul-americana. 

Em meados de 1950, Neruda recebeu o Prêmio Lênin da Paz e na década de 1970 foi consagrado com o Prêmio Nobel de Literatura. 

Apesar de ter partido há 47 anos, seus versos continuam atuais. Ele deixou mais do que uma herança intelectual para a literatura latino-americana. As sociedades atuais têm muito a aprender com seu legado. 

segunda-feira, 14 de setembro de 2020

O poeta da revolução

 Antonio Carlos Lua

Carismático pregador com austeras sandálias de pescador e uma boina preta cobrindo os cabelos brancos e rebeldes, Ernesto Cardenal é considerado por muitos o maior poeta hispano-americano de sua geração. 

Desde de uma estética da economia verbal que misturava as poéticas dos indígenas pré-colombianos – ademais do profundo sentimento bíblico dos Salmos e do Cântico dos Cânticos – a palavra de Ernesto Cardenal sempre foi ao cerne para comunicar com contundência. 

“O que há em uma estrela? Nós mesmos. Todos os elementos de nosso corpo e do planeta estão nas entranhas de uma estrela. Somos pó de estrelas. Das estrelas somos e para elas voltaremos”. 

Estes são os versos da cantiga “Expansão de Cântico Cósmico”, de Cardenal, que, mais que metáfora, é uma constatação expressada em uma poesia que se encanta com os enigmas da ciência.

Sacerdote jesuíta e discípulo do monge trapista Thomas Merton, Ernesto Cardenal, que faleceu em março deste ano, foi uma destacada voz da teologia da libertação . 

Ele será sempre lembrado por acreditar na revolução contra o vento e a maré, uma espécie de suprema “heresia”, ratificada pela admoestação pública que recebeu do Papa João Paulo II, que lhe impôs, em 1984, uma suspensão 'a divinis', revogada pelo Papa Francisco, em 2019.

Ele sofreu forte influência de Ezra Pound, após o particular encontro com a obra do poeta, músico e crítico literário norte-americano que, junto com T.S. Eliot, foi uma das maiores figuras do movimento modernista da poesia estadunidense do início do século XX. 

De Ezra Pound, Ernesto Cardenal tomou um recurso que consiste mais do que em uma colagem, mais que uma citação de um trecho poético, em uma redistribuição sábia da prosa do historiador ou do viajante até atingir um nível lírico ou épico. 

O próprio Ernesto Cardenal admitiu a influência de Ezra Pound, que o fez ver que não existem temas ou elementos que sejam próprios da prosa e outros que sejam próprios da poesia. 

Influenciado também por Pablo Neruda, Cardenal passou do poeta lírico e subjetivista ao poeta solar, diáfano e de tom épico que impera em boa parte do conjunto de sua obra. Quando foi ordenado padre, em 1965, conectou e integrou a escrita e a militância religiosa-política. 

Lutador incansável contra a ditadura de Anastasio Somoza, colaborou estreitamente com a Frente Sandinista de Libertação Nacional, na Nicarágua.  Em 19 de julho de 1979, dia da vitória da Revolução Nicaraguense, foi nomeado ministro de Cultura do governo sandinista. 

Cardenal não perdia a oportunidade de afirmar sua convicção revolucionária. “A revolução é o que nos fez humanos, toda a humanidade viveu de revolução em revolução, desde que começou a falar, que foi a revolução da linguagem, ou o descobrimento do fogo. Tudo o que a humanidade foi adquirindo foi por meio da revolução”, afirmava.

Em sua ação política, vertida pela mesma mística, cumpria o papel de teólogo da libertação, traduzindo os Salmos para a realidade de opressão do povo nicaraguense, numa releitura do clamor dos pobres campesinos, que eram semelhantes à poeira dispersa, espalhada na escuridão. Tal como os átomos, essa prática ganhou corpo e somou significativamente na Revolução nicaraguense. 

Mesmo que seu nome tenha sobrevoado com insistência o Nobel de Literatura em 2005, ele foi tardiamente reconhecido em âmbitos canônicos. 

Apenas aos 84 anos recebeu, no Chile, o Prêmio Pablo Neruda de Poesia, para repetir a experiência três anos mais tarde na Espanha, ao receber o Prêmio Rainha Sofia de Poesia 2012.

Poeta com uma potente originalidade, cumpriu, durante 95 anos, a missão de fazer em arte e ação a síntese do desconhecido e inalcançável com a esperança cintilante. 

segunda-feira, 7 de setembro de 2020

Apóstolo da resistência

Antonio Carlos Lua

No dia 3 de abril de 1968, o ativista Martin Luther King, um dos líderes mais importantes na luta pelo direitos civis na história norte-americana, estava em Memphis, Tennessee, nos Estados Unidos, para apoiar a greve de trabalhadores negros da limpeza urbana. 

Lá, ele fez o discurso histórico – quase uma profecia – intitulado “Eu estava no topo da montanha”, um de seus pronunciamentos mais famosos, afirmando que Deus tinha lhe permitido subir ao topo da montanha para olhar a ‘Terra Prometida dos Povos Negros’. 

No dia seguinte, Martin Luther King – que vinha recebendo muitas ameaças de morte – foi assassinado por James Earl Ray, num episódio até hoje envolto em mistério, que tornou-se o pesadelo real dos afro-americanos que perderam uma voz poderosa e um corajoso testemunho à justiça social.

Ícone da luta pela igualdade racial, Luther King tornou-se um símbolo universal que viu no retorno de Israel a Canaã a figura da liberdade alcançada pelos negros. 

Ele levou a sério a dimensão ética de suas atuações, os riscos que elas implicavam e a complexidade das situações. Proclamando o poder revolucionário da sua crença, acreditava que seu país deveria passar por uma revolução de valores.

Se contrapôs radicalmente às chamadas leis de Jim Crow, que estabeleceram a segregação racial nos Estados Unidos no final do Século XIX. Ao lutar pelos direitos civis, ele queria redimir a alma da América, gesto que pesa hoje no além-atlântico. 

Pastor da Igreja Batista, na Dexter Avenue, em Montgomery, Alabama, Luther King via a fé como um chamado urgente para servir, uma ética altruísta de preocupação que, segundo ele – citando o profeta hebreu Amós – faz correr "a retidão como um rio e a justiça como um ribeiro perene”. 

Dizia que, em vez de herdar a fé, ele próprio teve de estabelecer os termos de sua relação com o Todo-poderoso. Certamente ele gostaria que vivêssemos sua fé específica que consiste em lutar para vencer o racismo e combater a pobreza com políticas públicas iluminadas e compassivas.

Ele elaborou a teoria da resistência não violenta como alternativa mais segura, enriquecida com o encontro do pensamento de Mahatma Gandhi, cuja forma de manifestação pacífica representou a “Satyagraha”, termo que o líder indiano usou para nomear a filosofia que o tornou mundialmente conhecido.

Luther king foi a pessoa mais jovem a receber o Prêmio Nobel da Paz, em 1964, com 35 anos. Reconhecido como um incansável apóstolo da resistência, foi o paladino dos rejeitados e marginalizados. Sempre se expôs na linha de frente para derrubar na sociedade estadunidense o preconceito étnico. 

Com coragem altruísta, viveu fielmente a missão de lutar por um mundo socialmente justo e racialmente igualitário. Sua mensagem permanece viva e é extremamente válida para os nossos tempos em que as desigualdades, as rejeições, as exclusões e os muros entre os povos, em vez de diminuir, tendem a crescer. 

domingo, 30 de agosto de 2020

Nietzsche: a biopolítica afirmativa

Antonio Carlos Lua

Há 120 anos falecia o filósofo heterodoxo, Friedrich Nietzsche. Conoclasta, profundo conhecedor da cultura grega, crítico da modernidade com grande influência nas tendências do pensamento do Século XX, Nietzsche era o detetive da linguagem e pôs em dúvida o que até então era dado por sagrado, bom, reto e verdadeiro. 

Ele abalou os três pilares da cultura ocidental ao questionar temas como ‘Ser’, ‘Razão’, ‘Sentido’, ‘Verdade’, ‘Ciência’, ‘Estado’, ‘Revolução’, ‘Lógica’, abordados pelos filósofos até o Século XIX. Para Nietzsche, estes pilares eram valores morais que domesticavam o homem e anulavam sua criatividade.

Friedrich Nietzsche nasceu em 15 de outubro de 1844, em Rökken, Prússia (atual Alemanha).  Ao contrair sífilis, sofrer com intensas dores de cabeça e constatar uma crescente deterioração nos olhos, ele atribui os problemaa de saúde ao poder que supostamente detinha de conferir uma clarividência e uma lucidez superior.

Em certa ocasião, ao ver um cocheiro chicoteando um cavalo, abraçou o pescoço do animal para protegê-lo e caiu no chão. Disseram que ele tinha enlouquecido. Após o episódio foi internado numa clínica psiquiátrica, mas muitos duvidaram de sua loucura. 

Nietzsche foi um crítico ferrenho do filósofo ateniense do período clássico da Grécia Antiga, Sócrates, considerado por ele um “homem de uma visão só”, por supostamente distanciar-se da natureza e de suas forças vitais, ao usar a narrativa do triunfo da razão contra a afirmação da vida. 

Ele atribuia aos filósofos de sua época a culpa pela decadência do homem. Dizia que “aqueles que lutam com monstros devem acautelar-se para não se tornarem também um monstro. Afirmava também que “quando olhamos muito tempo para um abismo, o abismo também nos direciona o olhar”.

Nietzsche estudou a fundo o homem nos seus comportamentos e ações diante da sociedade. Suas teses se baseavam no homem real submetido a valores como elemento formador da cultura. 

Sua filosofia demonstra um esforço na direção da pluralização e da diversificação, em que a última sempre pode ser pensada apenas dentro e através da relação com o outro.

Ele nunca foi tão lido quanto na atualidade. Um dos motivos é a crise dos diversos “ismos” – ou seja, noções que guiam a vida civilizada, chamados de “industrialismo”, “liberalismo”, “positivismo”, que deixam as pessoas céticas sem a noção de verdade.

Tentou mostrar que há interesses e motivações ocultas, e não valores absolutos, em conceitos como verdade, bem e mal. Para o filósofo alemão, a vida era antes de tudo uma capacidade de acumular forças e essencialmente o esforço por mais potência. 

Nietzsche, que abominava o anti-semitismo e o nacionalismo, foi injustamente visto durante muito tempo como inspirador do nazismo por causa da edição forjada e mal-intencionada que sua irmã, Elizabeth, fez dos escritos deixados por ele.

Ele passou os últimos 11 anos de sua vida mergulhado na loucura, falecendo em 1900 de paralisia geral. O filósofo das marteladas, que se opunha a todos os dogmas da sociedade civilizada, escrevia de maneira corrente, límpida, usando muito pouca terminologia técnica, contrariamente à maioria dos outros filósofos. Seu pensamento é uma navalha que corta a carne do tempo, produzindo rupturas.

segunda-feira, 24 de agosto de 2020

Um lápis e um papel

Antonio Carlos Lua

Para Clarice Lispector – uma das maiores escritoras brasileiras do Século XX, com grande influência no modernismo – a literatura era uma questão de vida ou morte, e não um luxo ou uma afirmação existencial. Era um destino com tudo o que essa palavra carrega de mais difícil.

A escritora – que também era jornalista – desejava ir além das palavras para tocar o real. Encarava a literatura não como um instrumento, mas como um obstáculo que devia ser ultrapassado e vencido. Essa era uma posição solitária e radical que gerou muitas incompreensões.

Clarice Lispector usou muito material de suas crônicas para compor algumas narrativas. Preferia os paradoxos, os impasses, os abismos. Mas era coerente. Foi uma mulher muito sábia. 

Acreditava na potência da literatura, não se submetendo, porém, a regras, cânones, ou afirmativas consagradas. Corajosa, era fascinada pelas descobertas que o exercício da escrita lhe reservava.

Com um lápis e um papel enfrentava o desafio de dizer o que é impossível dizer dentro do código convencional da linguagem. Seu mundo era o das entrelinhas, da introspecção, das epifanias em meio ao cotidiano, das questões metafísicas, além e aquém da realidade prosaica.

Sua prosa mirava algo que não se entregava ao olhar realista. Seus objetos se situavam no escuro, fora da zona iluminada pela razão instrumental. Sondou todas as questões ocultadas pela alma que precisavam ser ouvidas, mas não deixou de enfocar o social de modo oblíquo e singular.

A obra da escritora ucraniana naturalizada brasileira é atual e até hoje decifra sentidos fugidios, buscando compreender o que se põe fora do campo do conhecido, aventurando-se e se posicionando no mundo sem clichês, sem estereótipos, sem disfarces, desmontando máscaras e mostrando o que há por trás delas. 

Clarice Lispector abominava a imagem de escritora misteriosa construída ao seu redor. Ela se dizia uma dona de casa que escrevia livros. Era bastante resguardada em relação à imprensa, mas recebia com prazer os jornalistas que queriam conhecê-la sem formalidades. Se há algo de misterioso em sua vida – o que é improvável – transpôs-se para sua obra como um modo de ser.

Sua escrita aceita o mistério como parte do universo vivido, tomando o cuidado para não decifrá-lo e com isso perdê-lo. Sua obra parece afirmar insistentemente que não sabemos tudo, não podemos e não devemos saber tudo. 

Essa zona de escuridão é justamente a condição de vermos o que não é visível na luz. Clarice Lispector pessoa e Clarice Lispector escritora não se distinguem no que almejam. Ambas querem a coisa irrevelada. O mistério, portanto, está no objeto da busca e não na autora e seu cotidiano.

Como cronista do Jornal do Brasil levantou questões relativas à sua época. Ela nunca se submeteu a qualquer patrulhamento que lhe tirasse a liberdade radical de dizer a verdade de si mesma. O processo de conscientização que sua literatura produziu nos anos difíceis da ditadura – e que produz até hoje – se deu pelo valor estético de seus textos.

A publicação das obras ‘Laços de família’ e ‘A legião estrangeira’ aproximou Clarice Lispector dos leitores. A época da publicação das obras era propícia para o desejo transgressor  expressado, abrindo canais para a necessidade de libertação e reposicionamento das pessoas. 

Muitos falam da relação de Clarice Lispector com a bruxaria.Talvez ela tenha influenciado mais os bruxos do que vice-versa. O mal é uma categoria importante na obra clariciana e talvez por aí haja correspondências com a magia e a bruxaria. Ela via o mal como pulsão transgressora de tudo o que teima em permanecer o mesmo.

Dizia sempre que havia nascido para escrever e amar. Mesmo com o amor à literatura – face luminosa da sua intensidade como escritora – ela carregou as marcas da negatividade e da redenção. Escrever, dizia Clarice Lispector, “é uma maldição. Mas uma maldição que salva”.

Ela ocupa um espaço de proeminência na literatura brasileira Apesar de ser considerada uma autora difícil, Clarice Lispector encontrou uma linguagem de comunicação das coisas mais profundas e densas de sua experiência de vida. 

O tema fundamental na obra da escritora é a própria linguagem. Ela explora o discurso, a palavra, combinações, fluências, ausências, para atravessar a palavra e pescar a não-palavra, aquilo que não pode ser dito. 

A obra de Clarice é um crescendo. Ela começa fechada, complexa e muito sintética, amalgamada, e vai se espraiando. Nos vazios e silêncios, vai recolhendo mais capacidade de expressão do que inicialmente. Sua obra transita em um tempo de grandes alterações, tanto da escrita, da comunicação literária, quanto da condição feminina.

segunda-feira, 17 de agosto de 2020

Poeta, místico, missionário

Antonio Carlos Lua

Em 1968, o Brasil assistiu o endurecimento do Governo Militar, com a publicação do Ato Institucional nº 5, dando plenos poderes para o Presidente da República decretar a intervenção nos estados e municípios, suspender os direitos políticos de qualquer cidadão pelo prazo de 10 anos, bem como cassar os mandatos eletivos federais, estaduais e municipais.

A publicação do AI-5 ocorreu no momento em que a Igreja Católica vivenciava o Concílio Ecumênico Vaticano II, convocado pelo Papa João XXIII e continuado por seu sucessor, o Papa Paulo VI. Foi o maior acontecimento religioso do Século XX, em uma das mais significativas reformas da história da Igreja Católica.

Foi nesse período que o jovem padre claretiano Pedro Casaldáliga chegou ao Brasil, vindo da Espanha para atuar em Mato Grosso, região caracterizada pelos conflitos agrários, pobreza e violência. 

Casaldáliga exerceu sua missão religiosa de forma profética e ficou conhecido pela produção literária, tanto de poesias quanto de manifestos, artigos, cartas circulares e obras com cunho político ou com temas ligados à espiritualidade, publicadas tanto no Brasil como no exterior. 

Ele escrevia pela mesma razão dos profetas bíblicos, que faziam da poesia uma forma de denúncia de injustiças e anúncio de um novo tempo. 

Em 27 de agosto de 1971, o Papa Paulo VI o nomeou bispo da Prelazia de São Félix do Araguaia, caracterizando sua proximidade com o povo e o engajamento com as causas dos índios e lavradores. Casaldáliga foi um símbolo para os movimentos sociais, mesmo quando isso representava ameaça à sua vida.

No dia 8 deste mês Dom Pedro Casaldáliga nos deixou e  voltou para a casa do Pai, onde encontrou com seus irmãos de Episcopado Dom Helder Câmara, Dom Paulo Evaristo Arns  e Dom Ivo Lorscheiter, referências para aqueles que se dedicam às causas sociais num país marcado pela desigualdade, violência e descrença.

Profeta corajoso, Dom Pedro Casaldáliga foi um poeta de mãos operosas e místico de olhos abertos. Ao publicar, em 1971, a Carta Pastoral "Uma Igreja da Amazônia em Conflito com o Latifúndio e a Marginalização Social" sofreu retaliações com ameaças de morte e de expulsão do Brasil. 

Como religioso, ele articulou travessias e abriu fronteiras para consagrar a vida num horizonte em movimento de esperança. Viveu num “palácio” de madeira humilde, totalmente desnudado. Era tão identificado com os indígenas e os lavradores que quis ser enterrado no “Cemitério do Sertão”, onde os anônimos, os condenados em vida à escravidão, jazem. 

Em um de seus poemas Casaldáliga escreveu: “Para descansar quero só uma cruz de pau como chuva e sol, os sete palmos e a Ressurreição”. Este é o epitáfio que ele pediu para ser colocado em sua tumba, no cemitério dos excluídos, em São Félix do Araguaia. Suas últimas vontades foram simples, como sua vida inteira. Sicut vita, finis ita (Morremos como vivemos).

segunda-feira, 10 de agosto de 2020

A presença do negro na literatura brasileira

Antonio Carlos Lua

A África já deveria está, há tempos, na ponta da língua dos brasileiros com a inserção do material didático "História e Cultura Afro-Brasileira e Africana" no currículo oficial da Rede de Ensino, em cumprimento à Lei 10639/03.

O material  disponibilizado pela Unesco  foi produzido com o objetivo de despertar o interesse pela literatura africana e, consequentemente, para a leitura dos escritores negros como Machado de Assis, Lima Barreto, Nei Lopes, Muniz Sodré, Paulo Lins, Ana Maria Gonçalves, Abdias do Nascimento, Silviano Santiago e o líder abolicionista Luiz Gama, primeiro escritor brasileiro a se assumir afrodescendente.

A presença do negro na literatura brasileira – escondida em séculos de colonização e eurocentrismo – embranqueceu Machado de Assis, a tal ponto que uma agência de publicidade contratada pela Caixa Econômica Federal ressaltou num comercial supostos traços caucasianos do escritor, que era negro e neto de escravos alforriados. 

Carregando nas tintas, a agência de publicidade usou um ator branco para interpretar Machado de Assis na propaganda, onde o escritor aparece embranquecido. Internautas revoltados com o que consideraram racismo protestaram e conseguiram fazer com que a Caixa Econômica retirasse o anúncio do ar.

A verdade é que o Brasil – denominado um país multiétnico – esqueceu deliberadamente dos pioneiros autores negros e pinta até hoje um retrato ambíguo de figuras como a de Machado de Assis, que já foi acusado injustamente de agir com neutralidade na questão abolicionista. 

Porém, os textos de Machado de Assis publicados nos vários jornais onde trabalhou como jornalista, contradizem o abstencionismo do romancista de “Memórias Póstumas de Brás Cubas”. O escritor usou 23 pseudônimos nos jornais para atirar petardos nas correntes políticas retrógradas e  antiabolicionistas. 

Por causa do preconceito racial, Machado de Assis teve acesso limitado ao ensino e se tornou autodidata. Pobre, negro e epilético, enfrentou enormes dificuldades em condições completamente adversas para que se tornasse, ainda em vida, um dos mais célebres escritores brasileiros de todos os tempos.

O embranquecimento do bruxo de Cosme Velho fazia parte do silencioso projeto de genocídio do negro brasileiro que viria a ser denunciado pelo escritor Abdias do Nascimento, morto em maio de 2011, nadando contra a corrente do rio da mestiçagem de Gilberto Freyre, que camuflou a memória do passado africano e negou a alteridade dos afrodescendentes. 

Nenhum país passa pela escravidão impunemente. Autores como Lima Barreto e Machado de Assis pagaram caro por isso. Lima Barreto, por exemplo, sofreu discriminação racial e era considerado um autor de subúrbio. Foi acusado de tudo, inclusive de desleixo verbal e falta de profundidade psicológica. 

Negro num Brasil eugênico, Lima Barreto testemunhou, aos 7 anos, a abolição da escravatura, mas morreu, aos 41 anos –  meses depois da Semana de Arte Moderna – dependente de álcool e deprimido, após ser internado por diversas vezes em clínicas psiquiátricas. 

Muito se fala do seu livro “Triste Fim de Policarpo Quaresma”, mas, seis anos antes, em “Recordações do Escrivão Isaías Caminha”, Lima Barreto já denunciava a hipocrisia da sociedade brasileira, que relegou os negros ao campo dos subalternos. Ele combateu energicamente o mito da escravidão benigna, que de benigna não tinha nada.

sábado, 1 de agosto de 2020

Mazelas da República


Antonio Carlos Lua

A atual conjuntura política nacional remonta ao Brasil da década de 1930, quando o historiador e jornalista Sérgio Buarque de Holanda escreveu o livro ‘Raízes do Brasil’, mostrando que o nosso país “é um campo em que as plantas crescem, mas não se sustentam". 

É uma obra que até hoje provoca muita polêmica, trazendo males históricos do  Brasil, não podendo, no entanto, ser vista como uma caixa de pandora. 

'Raízes do Brasil' é um clássico, um livro aberto, que tem sido recepcionado de forma diferente a cada geração, por analisar o Brasil abordando todas as tensões políticas que permeiam a nossa sociedade, desde o início da sua história.

Muita coisa aconteceu na história do Brasil desde o lançamento de ‘Raízes do Brasil’, em 1936. Entretanto, o livro ainda traz um substrato que nos fornece elementos para analisar e identificar no Brasil de hoje uma conjuntura semelhante àquela época. 

É por isso que é uma obra potente, fornecendo chaves de leitura e elementos importantes para analisarmos o vazio da política representativa que se observa atualmente. 

Quando o livro foi lançado havia no plano nacional uma pergunta no ar sobre o pacto político, ou seja, que forma de convivência nos era reservada por uma matriz cultural em que as relações pessoais se sobrepõem a qualquer forma objetiva de se pensar o espaço público.

Na obra, Sérgio Buarque de Holanda enfatizou que “numa terra em que todos são barões não é possível um acordo coletivo durável”. 

Para o historiador e jornalista, quando as relações de caráter pessoal prevalecem, os sujeitos ficam amarrados numa relação de compadrio que se constrói como a própria política. 

Getúlio Vargas – ex-presidente do Brasil, que cometeu suicídio, em 1954, durante uma intensa crise política – compreendeu isso ao erigir-se demagogicamente como figura paterna, como que preenchendo o vácuo de uma expectativa muito grande sobre um “provedor”, que desse conta das promessas não cumpridas da República brasileira.

Num plano mais global, o livro aborda um tema propriamente latino-americano e talvez mundial, ao discorrer sobre o papel do líder carismático, e como ele vem preencher o vazio da política representativa no enfrentamento dos seus próprios limites, sendo, porém, incapaz de amalgamar interesses e de fazer conviver civilizadamente as diferenças.  

É nesse aspecto que está a atualidade do livro “Raízes do Brasil” nos fazendo entender que com o tempo a crise de representação política se tornou um problema permanente na democracia, quando o ódio e as polarizações abrem terreno para o ressurgimento de agendas regressivas e extremamente  perigosas. 

Esse fato pode ser constatado atualmente no Brasil, onde os mecanismos da democracia são utilizados contra a própria democracia. A xenofobia, o racismo e o sexismo estão vencendo uma agenda mais inclusiva com sinais fortes de que entramos num momento de exaustão.

‘Raízes do Brasil’ é um texto em movimento e comprova que a permanência de oligarquias na República brasileira tem a ver com a manutenção de privilégios numa sociedade marcada pela origem escravista com a superioridade de uns em relação a outros. 

Embora seja uma evidência, essa questão continua sendo negada nos tempos atuais por aqueles que querem fazer tábula rasa da história do Brasil.

segunda-feira, 27 de julho de 2020

A Bíblia como pano de fundo da literatura

Antonio Carlos Lua

A literatura sempre bebeu da fonte bíblica. Uma infinidade de obras clássicas e contemporâneas têm a Bíblia como pano de fundo, sendo o livro sagrado, indiscutivelmente, uma grande referência na tradição literária universal, tanto pela sua riqueza metafórica, como pela sua capacidade narrativa.

Da peça “Salomé”, de Oscar Wilde, ao romance “O evangelho segundo Jesus Cristo”, do escritor português José Saramago, enxergamos a literatura usando uma grande história bíblica como metáfora, a exemplo do romance “Esaú e Jacó”, de Machado de Assis. 

A influência da relação entre a Bíblia e a literatura na sociedade contemporânea revela o caráter antigo – e arcaico – de vários conflitos pelos quais o mundo passou e está passando, sendo esta uma questão que a boa literatura acompanha com a devida atenção. 

Com a literatura é possível entender que nada se esgota e que sempre é necessário uma nova inculturação, com narrativas que respondam às inquietações do mundo, num modelo de vida que não se desgasta e exige que as coisas da vida sejam reconfigurados criativamente.

A relação entre a Bíblia e a literatura universal constitui-se um grande telescópio voltado para a vida, sendo uma ferramenta prodigiosa não só para a leitura, mas também para a experiência coletiva, para a história e para a dimensão particular e universal.

Quem ignora a literatura não traduz a vida humana em sua universalidade e desconhece os testemunhos poéticos reveladores da história ao longo dos milênios. 

Precisamos de literatura, não como um ornamento supérfluo no nosso ‘habitat’ social e espiritual, mas como uma estrutura de sustentação e sobrevivência no mundo. 

Na Bíblia estão articuladas as representações de fé na literatura, que reativam constantemente os processos culturais que desembocam na criação de chaves de leitura consistentes e vitais, permitindo uma melhor leitura da história numa época rica de conhecimentos.

A Bíblia já é, por si só, uma boa literatura, com seus códigos indispensáveis para a dinâmica criativa entre a fé e a produção literária.

Essa relação aparece na origem e na aurora do mundo, nos levando a mergulhar poeticamente o mais fundo possível na busca de respostas às reivindicações humanas.

Não podemos esquecer que os poemas são os textos fundantes de grandes tradições religiosas. Na própria antiguidade grega encontramos a doutrina do entusiasmo, associando a inspiração poética à Bíblia e à Deus.

A literatura e a fé têm a mesma idade. Elas nasceram na mesma época, com a poesia sendo a alma dos ritos religiosos. Ambas são apaixonadas pelo ser humano. 

A Bíblia é o grande código da nossa cultura e se situa em outra dimensão, além das paredes invisíveis. Poeticamente o homem habita o mundo. Poeticamente Deus o visita.

Hoje é melhor voltar-se para os romancistas e escritores para melhor entender o mundo. São vários os nomes da literatura que ao escrever histórias e ao dar forma a personagens, não evitam o espaço do sagrado e a leitura da Bíblia. 

As quatro obras fundamentais do escritor, filósofo, jornalista e um dos maiores romancistas e pensadores da história, Fiódor Dostoiévski – “Crime e castigo”; “O idiota”; “Os demônios”, e “Os irmãos Karamázov” –  abordam a relação do homem com Deus.

quarta-feira, 22 de julho de 2020

A literatura sofisticada do padre Antônio Vieira

Antonio Carlos Lua

A importância do escritor, orador e padre jesuíta, Antônio Vieira, para a literatura moderna e para o barroco contemporâneo é inquestionável. 

Um dos mais influentes personagens do Século XVII, Antônio Vieira é um dos autores mais complexos da nossa literatura, merecendo contínua releitura e reflexão.

Com uma literatura sofisticada, ele deixou uma obra abrangente – cartas, poesias, textos para o teatro, escritos políticos e sermões, incluindo “Sermão de Santo Antônio ao Peixes”, proferido em São Luís (MA), em 13 de junho de 1654, Dia de Santo Antônio.

O padre Antônio Vieira era um gênio, um visionário. A sua capacidade de entender os problemas e propor soluções avançadas fizeram dele um precursor.

Construiu seus textos com recursos da arquitetura poética barroca, como a metáfora, a alegoria, a analogia, o paradoxo, o paralelismo, além das relações intertextuais que estabeleceu com os textos bíblicos e de autores clássicos greco-latinos.

O padre jesuíta abordou até a metalinguagem no “Sermão da Sexagésima”, escrevendo uma autêntica “arte de pregar”, quase um manifesto estético, polemizando com os oradores dominicanos, que eram seus rivais e praticavam um cultismo exacerbado, em detrimento de um sentido espiritual mais profundo.

Na obra ‘História do Futuro’, ele cobriu uma vasta gama de preocupações que iam desde os sentimentos humanos, a religião e o próprio destino da humanidade.

O padre jesuíta é mais moderno do que se imagina e – assim como Gregório de Mattos – fez um retrato da vida colonial brasileira, que permanece tristemente atual, principalmente quando ele toca na corrupção de funcionários públicos.

Antônio Vieira era partidário de uma tendência do barroco – o conceptismo – e condenava em seus adversários a retórica artificial e oca. Estava de algum modo demasiado avançado para o seu tempo. Por isso, muitos não o compreenderam.

Ele não buscava uma linguagem pura e próxima da abstração. No entanto, a construção estrutural de seus sermões e a maneira como ele faz o encadeamento discursivo, pode autorizar um paralelo com o autor francês, Mallarmé, com parêntesis e ressalvas.

Sendo, como dizia, "homem com alma", foi também "alma com homem", o que o não livrou de ser expulso do Brasil, atravessando o mar apenas com o Livro na mão.

Em Lisboa, depois de ser expulso pelos colonos portugueses, pediu ao rei que lhe permitisse regressar com o Livro na mesma mão, mas, desta vez, com a espada na outra.

Chamado pelo poeta Fernando Pessoa de “imperador da língua portuguesa”, o padre Antônio Vieira bem merece o título de profeta dos tempos modernos.

Prova disso é sua obra magna “A Chave dos Profetas”, um tratado teológico e político em dois volumes iniciado quando o padre jesuíta cumpria pena de reclusão determinada pela Inquisição em 1663, da qual escapou por indulto real. O tratado só foi concluído quando o padre estava à beira da morte.

O escritor português José Saramago confessou que costumava ler Antônio Vieira antes de escrever seus romances para se banhar nas águas cristalinas e puras do nosso idioma.

Saramago dizia, inclusive, que nunca a língua portuguesa foi tão bela como quando foi escrita pelo padre Antônio Vieira, que a usou com grande perfeição, traduzindo, na sua forma de escrever, pensamentos profundos, complexos e que ainda hoje nos aguçam a reflexão e a imaginação.

Como homem do século XVII, o grande viajante e missionário Antônio Vieira viveu experiências em espaços inóspitos. 

Foi ameaçado de morte e lidou com a experiência humana em toda sua diversidade e diferentes expressões. Isso lhe deu uma dimensão de universalidade extraordinária. Foi um mestre da língua portuguesa.