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domingo, 21 de abril de 2019

Cheiro de pólvora

Antonio Carlos Lua

A face cruel da violência no campo resgata uma memória que a história oficial não conta. Em 13 de maio de 1888 – há 131 anos – o Senado do Império do Brasil aprovava a Lei Áurea, abolindo a escravidão. Naquele momento, não era apenas a liberdade dos escravos que estava em jogo. Havia outro tema pertinente no centro do debate: a reforma agrária. 

Na época, a discussão sobre a distribuição de terras nacionais havia sido proposto pelo abolicionista André Rebouças, engenheiro negro de grande prestígio. A intenção dele era criar um imposto sobre fazendas improdutivas e distribuir as terras para ex-escravos. 

O político Joaquim Nabuco – também abolicionista – apoiou a ideia. Já os fazendeiros, republicanos – e até mesmo os abolicionistas mais moderados – ficaram em polvorosa.

Como o movimento republicano fez um acordo com os latifundiários para que não houvesse mudança na propriedade rural, a aprovação da Lei Áurea acabou não trazendo, concretamente, nenhuma alternativa para os escravos libertados se inserirem no novo Brasil livre. 

Com isso, a ideia de reforma agrária não prosperou, uma vez que o movimento republicano e os latifundiários resolveram trazer imigrantes para trabalharem em fazendas, dispensando a mão de obra dos negros. Assim, os abolicionistas Joaquim Nabuco e André Rebouças acabaram apoiando a monarquia até o fim. 

Foi então que no livro "Minha Formação" (1900) Joaquim Nabuco passa a renegar totalmente sua juventude abolicionista e faz uma declaração monarquista que constitui uma das frases mais infames da história da política brasileira.

Ele disse que tinha convicção de que “a raça negra por um plebiscito sincero e verdadeiro teria desistido de sua liberdade para poupar o menor desgosto aos que se interessavam por ela, e que no fundo, quando ela (a raça negra) pensa na madrugada de 15 de novembro (data da proclamação da República), lamenta ainda um pouco o seu 13 de maio”.

Com a declaração, Joaquim Nabuco mostrou claramente que a Reforma agrária nunca esteve na pauta da maioria dos abolicionistas. Até hoje ela continua fora da agenda política brasileira. 

O Brasil é um dos únicos grandes países agroexportadores que nunca fez reforma agrária, cujo ciclo de vida no país é um fracasso assombroso, tratando-se de dura vilania política, pois, enquanto a miséria no campo se esconde atrás das muletas das políticas sociais, os governos coletam números destinados meramente ao autoelogio.

Mesmo com um gigantesco orçamento destinado à reforma agrária, verifica-se uma irresponsabilidade espantosa com a problemática. Os governantes mantêm-se impassíveis diante do clamoroso desperdício de vultosos recursos públicos para realizar o que eles próprios consideram irrealizável

Resta saber se algum governante nesse país terá a coragem de finalizar este capítulo da nossa História. Para que isso aconteça, será necessário primeiramente abrir as mentes, pois a ortodoxia e a ideologização dominantes só tem contribuído para a violência no campo. 

O cenário na seara agrária é tenso. Com o corte de 70% previsto na Lei Orçamentária Anual, tudo indica que o cheiro de pólvora permanecerá sendo o incenso de uma violência extrema em mais de 37 milhões de hectares de terras –área equivalente ao tamanho do Japão e maior que todo o território da Alemanha. 

O campo é extenso e pode ser cenário de vida com qualidade e fartura para todas e todos, desde que as terras e as águas sejam utilizadas com justiça agrária e hídrica, além de responsabilidade socioambiental, sem o uso abusivo da mãe terra e da irmã água 

No entanto, os agronegociantes seguem adotando uma prática agrícola voraz, com extensas plantações de soja contaminando as nascentes dos rios e córregos com agrotóxicos, deixando os lavradores “encurralados” pela monocultura, com a iníqua estrutura fundiária reinante no Brasil.

Os agronegociantes são os pivôs da discórdia no campo e seguem secando rios, lagos e lagoas pelo uso intensivo e pelo enorme desperdício por evaporação da água que é captada para plantar grandes monoculturas de soja e eucalipto. 

No Brasil, por agronegócio, entende-se a produção em larga escala, feita em grandes extensões de terra – latifúndio – com sofisticada tecnologia em quase monopólio de empresas transnacionais, uso indiscriminado de agrotóxico e, muitas vezes, com mão de obra em condições análogas à escravidão. 

O desmatamento seca as nascentes de rios, escorraça os pássaros e expulsa os trabalhadores rurais para as periferias das cidades. 

Com a pulverização de herbicidas, inseticidas e praguicidas, feita por aviões em voos rasantes em campos de soja, balaios e mais balaios de pássaros mortos podem ser recolhidos, vítimas dos venenos altamente tóxicos. 

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