Translate

domingo, 22 de março de 2020

A bolha protetora de riqueza foi destruída.

Antonio Carlos Lua

O coronavírus não conhece fronteiras e se espalhou pelos países afetando a todos, sem distinção entre ricos e pobres. Ao contrário das tragédias do passado, como a ‘Peste Negra’ e a ‘Gripe Espanhola’, a atual pandemia afeta a humanidade inteira, sem diferença de nacionalidade, cultura, língua e religião, confirmando, de forma dramática, a nossa vulnerabilidade.

O contágio espalha o vírus temido por toda parte, nas mãos, na boca, no dinheiro, nas maçanetas das portas, nas roupas, nos transportes públicos, enfim, em todos os objetos do mundo. 

Dos seus efeitos devastadores podemos constatar que a presumida bolha protetora de riqueza está sendo destruída. Mas não é boa a ideia de que se deva aprender com as desgraças, depois de esbarrarmos nelas. Ficará sempre na nossa memória essa difícil experiência que estamos vivendo juntos.

É quase impossível saber como sairemos disso. Apesar do crescimento das riquezas e das conquistas tecnológicas, continuamos expostos às catástrofes, algumas delas provocadas por nós mesmos com a poluição irresponsável e outras pelas pandemias que consistem em calamidades.

Emergência Global 

Todos estamos inseridos num contexto de emergência global, que exige também uma resposta igualmente global, com medidas eficazes, a fim de evitar que a variedade dos procedimentos adotados favoreçam o contágio e multipliquem os danos para todos. 

Nos mostramos despreparados para essa emergência. O coronavírus acabou com a dissimulação de gestões públicas catastróficas submissas ao capitalismo financeiro dominante, mostrando que sempre há mais dinheiro para os bancos e cada vez menos leitos e profissionais da saúde para os hospitais. 

Há décadas que o bem público está comprometido com o setor hospitalar, pagando o preço de uma política que favorece os interesses financeiros em detrimento da saúde dos cidadãos. 

Ameaça iminente

Diante do perigo, nossa primeira reação é a fuga, afastando-se da ameaça iminente o mais rápido possível, mobilizando nosso distanciamento. Mas no caso do Coronavírus a ameaça não é localizável. Ela foge de qualquer determinação. Sua presença é invisível. 

Por outro lado, há uma expectativa de que este seja um momento de redescoberta dos valores primários, do diálogo e da união. Há uma esperança para a qual todos somos chamados a colaborar, reconhecendo e protegendo os valores da existência, não somente quando estamos em extremo perigo. Afinal, somos todos iguais. Não temos receitas de salvação. 

Os países se movem de modo esparso, cada um adotando estratégias diferentes, cujas consequências se tornam visíveis nos terríveis números de mortos e infectados. 

As nações aplicam medidas diferentes, às vezes totalmente insuficientes como as tomadas nos Estados Unidos e na Inglaterra, cujos governos estão subestimando o perigo para não prejudicar as suas economias. 

Ruptura antropológica

Estamos diante da passagem forçada da angústia ao medo, diante de fenômeno ameaçador. O perigo é percebido em todos os lugares. A estratégia de evitar o perigo se torna quase impossível justamente por causa da indeterminação do fato ameaçador. 

A crise do coronavírus é pós-moderna e provoca uma ruptura antropológica no estatuto geral da pessoa. Nosso contato com o mundo hoje é semelhante ao que acontece com o fenômeno ‘hikikomori’, onde adolescentes japoneses vivem isolados e se recusam a sair de casa, mas se comunicam de forma intensa com o mundo inteiro através das redes sociais. 

Não vemos mais os rostos por trás das máscaras. A própria voz está suspensa, pois as interações vivas se dão à distância. Não há mais cara a cara. 

Quando a crise acabar, haverá uma alegria por existir. As primeiras horas serão muito intensas. Será um momento de encontro com os sentidos e com o mundo exterior. Vamos nos dar conta de que se locomover é um grande privilégio que havíamos esquecido.

Elemento perturbador

Não é por acaso que já estão sendo encontradas em pacientes a multiplicação das crises de pânico ou de comportamentos fóbicos caracterizados por afastamento social, autorreclusão, isolamento, medo de qualquer forma de contato. 

Do ponto de vista estritamente relacionado ao medo, a pandemia põe em xeque qualquer forma coletiva poderosa de defesa contra ameaças. Diante do alto risco mortal, todos se sentem impotentes e expostos ao flagelo da doença, tendo a  morte como protagonista absoluta e perturbadora da cena.

Por outro lado, a pandemia nos mostra que a ideologia da fortaleza autossuficiente é ilusória, frustrando impiedosamente aqueles que se empenham arduamente para bloquear os processos rumo a uma maior integração entre os países. O coronavírus frustra a evidente paixão de alguns governantes pelos muros, pelas barreiras, pela militarização de fronteiras. 

Se a presença do estrangeiro não habita o além de nossas fronteiras, ela se espalha entre nós e se insere em nossos corpos. Mais do que nunca, são necessários esforços comuns – hoje para combater o vírus, amanhã para se recuperar economicamente. 

A defesa paranoica diante da ameaça dos imigrantes se desmembrou, dando origem a uma fragmentação da massa e, consequentemente, aos fenômenos do pânico e do retiro social. O sentimento sólido produzido pela defesa paranoica foi substituído pela fragilidade e na falta de ação, com a presença inconsciente ou consciente da morte. 

Virtude heroica  

A crise do coronavírus expôs contradições quando o médico chinês, Li Wenliang, do Hospital Central de Wuhan, foi impedido de cumprir seu dever de fazer seu alerta sobre o poder destrutivo do coronavírus. Cumprindo o seu dever profissional, ele foi punido e considerado culpado de espalhar mentiras perturbadoras na China. 

A figura do jovem oftalmologista – que morreu da doença que tentara, sem sucesso, impedir de se transformar em pandemia – marca época. O caso do coronavírus eclodiu após uma longa série de escândalos na área da saúde na China. 

A virtude heroica do médico Li Wenliang expôs os erros políticos de Xi, o grande imperador. Para um presidente que acumulou todos os poderes como nunca desde Mao Tsé Tung, esse é obviamente o estado máximo de alerta.

Li Wenliang foi a primeira pessoa a alertar o público sobre o surto de coronavírus de Wuhan. Em 30 de dezembro, o médico enviou uma mensagem para colegas alertando sobre um possível surto de doença respiratória com sintomas semelhantes aos da Síndrome Respiratória Aguda Grave, (SARs-CoV), que matou mais de 700 pessoas no início dos anos 2000. 

Li Wenliang recomendou aos companheiros de trabalho que usassem equipamentos de segurança para evitar a infecção. O médico fez o alerta após perceber que, naquele fim de ano, o hospital no qual trabalhava já tinha recebido sete casos de infecção com sintomas graves. 

Em 3 de janeiro de 2020, a polícia de Wuhan convocou Li Wenliang e o advertiu por estar fazendo comentários falsos na Internet. Ele foi forçado a assinar uma carta na qual prometia não divulgar informações sobre a doença. 

Em 6 de fevereiro de 2020, ele morreu de uma infecção por coronavírus em uma sala de unidade de terapia intensiva (UTI). Li Wenliang foi contaminado enquanto tratava uma paciente infectada. 

Ele contou em seu perfil numa rede social, que, em 10 de janeiro de 2020, começou a tossir. No dia seguinte passou a ter febre e, dois dias depois, foi para o hospital. Seus pais também ficaram doentes e foram internados.

Li Wenliang disse que os primeiros exames deram negativo para coronavírus. Mas, em 30 de janeiro de 2020 ele postou novamente dizendo que um teste mais específico identificou o vírus. 

No fim de janeiro, o médico publicou em uma rede social chinesa um pedido de desculpas do governo chinês, que admitiu falha na resposta à epidemia do novo coronavírus.

Nenhum comentário:

Postar um comentário