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domingo, 25 de maio de 2025

Irromperam os cavalos do apocalipse

Antonio Carlos Lua

O mundo assiste, atônito, desde de outubro de 2023, a desenfreada escalada de sangue e selvageria no conflito de grande proporção entre os israelenses e o grupo extremista islâmico Hamas, que nada mais é do que uma comprovada invenção política de Israel por mãos do ex-primeiro-ministro do país, Yitzhak Rabin, para desacreditar e matar, em 2004, o principal inimigo do Estado judeu e líder laico da Organização para a Libertação da Palestina (OLP), Yasser Arafat. Numa conversa entre o Rei Hussein, da Jordânia, e embaixadores judeus, o próprio Yitzhak Rabin admitiu o desastroso acordo, afirmando que o "apoio ao Hamas foi o erro mais grave cometido por Israel na sua história". Poucos meses depois da declaração, Yitzhak Rabin foi assassinado por um extremista judeu.

Já o líder palestino, Yasser Arafat, foi envenenado em 11 de novembro de 2004 com polônio radiativo, conforme testes feitos em amostras retiradas do seu próprio túmulo na cidade palestina de Ramallah, onde seu mausoléu foi aberto. Antes de morrer, Arafat assinou os acordos interinos de paz com Israel, em Oslo, em 1993, e liderou uma revolta posterior, após o fracasso das negociações, em 2000, sobre um acordo definitivo. Para mostrar os escorregadios backgrounds dessa guerra que, infelizmente, não dá sinais de acabar, é importante ressaltar que os conflitos entre os Israelenses e os palestinos começaram a se desenhar após a Segunda Guerra Mundial, quando a Organização das Nações Unidas (ONU) cedeu uma porção da terra para o povo judeu, antes habitada por árabes cuja maioria protestou, veementemente, contra o fato de a nação israelita ocupar aquela terra.

O genocídio sofrido pelos judeus na Europa, durante a Segunda Guerra Mundial, chocou o mundo e estabeleceu as condições políticas para que um Estado judeu pudesse ser criado na Palestina. A Inglaterra – autoridade colonial da região na época – abriu mão de seu domínio e entregou a disputa de palestinos e judeus para a ONU. Havia nessa divisão uma grande contradição, pois os judeus, que correspondiam a 30% da população, ficariam com uma parcela maior do território. Os palestinos, por sua vez, correspondiam a 70% da população e ficariam com uma parcela menor, num território que concentrava as terras menos férteis e com acesso mais limitado à água potável.

Dessa forma, a proposta foi aceita pelos judeus, mas foi rejeitada pelos árabes. Mesmo assim, ela foi aprovada pela ONU, em novembro de 1947. Revoltadas, as nações árabes, inimigas de Israel – incluindo a Jordânia, Síria, Arábia Saudita, Iraque e o Egito – resolveram se unir para atacar Israel, mas foram derrotadas, aumentando ainda mais a hostilidade entre Israel e seus vizinhos árabes. Os conflitos entre Israel e a Palestina, portanto, são travados desde a década de 1940 com os dois lados reivindicando o seu próprio espaço de soberania. A área de disputa entre os dois lados em questão localiza-se no Oriente Médio, mais precisamente na Palestina, tendo como foco a cidade de Jerusalém, um ponto de forte potencial turístico religioso, considerado um lugar sagrado para as três grandes religiões monoteístas do planeta: o cristianismo, o islamismo e o judaísmo.

Hoje, tanto o grupo extremista Hamas, como o primeiro-ministro de Israel, Benjamin Netanyahu, prestam o pior dos seus serviços aos seus respectivos povos, alimentando o terror, medo, luto e destruição, esquecendo que não há heróis numa guerra que mata crianças. Se a assistência e apoio militar do Irã ao Hamas é um erro, o mesmo ocorre com os Estados Unidos, que vêm garantindo ao governo de Israel a transferência de novos e letais armamentos. Sob o prisma religioso, o conflito entre Israel e Palestina remonta ao ano de 1850 (a.Cristo), quando um velho mercador da cidade de Ur, na Mesopotâmia (atual Iraque), recebeu um chamado de Deus. O Senhor ordenou-lhe que juntasse todos os seus pertences, abandonasse seu país natal e partisse em busca de um novo lar, rumo ao oeste, ou seja, a terra de Canaã.

Lá o mercador devia estabelecer sua descendência e dedicar-se ao culto de seu benfeitor, Jeová, o Deus único – uma novidade naqueles tempos politeístas. Assim seguiu Abraão, com seu séquito de parentes, escravos e concubinas. Ao longo da jornada, o favorito divino teve dois filhos. O mais velho, nascido de sua serva Agar, foi batizado de Ismael. O segundo, filho de Sara, esposa legítima do patriarca, recebeu o nome de Isaac. Segundo a lenda, os tataranetos de Abraão deram origem a dois povos – árabes e judeus – de aparência, língua e cultura muito parecidas, mas que agora se entrincheiram em lados opostos no 'front' da política internacional. Essa história vem inteiramente de relatos religiosos. A Torá, livro sagrado judaico que corresponde ao Velho Testamento cristão, aponta Isaac como o antepassado dos judeus. O Corão, por sua vez, remonta a genealogia dos árabes até Ismael, o primogênito de Abraão.

Todos esses personagens talvez não passem de mitos. Mas o estreito parentesco entre árabes e judeus é consenso científico. Em 2000, cientistas europeus, israelenses e africanos coletaram os cromossomos de 1,3 mil homens de ambas as etnias, em mais de 30 países ao redor do mundo. Os estudos conformaram que o DNA dos árabes e dos judeus são idênticos. Ou seja, as duas nações descendem de uma mesma tribo, que viveu em algum lugar do Oriente Médio por volta de 4000 (a. Cristo) – muito antes de Abraão. Portanto, israelenses, palestinos, sírios, egípcios e libaneses não são apenas primos. São irmãos genéticos.


quarta-feira, 21 de maio de 2025

A ameaça humana na era do fogo

Antonio Carlos Lua

Diante da envelhecida visão de dominação e exploração sustentada no divórcio profundo entre a economia e a natureza, surgem no nosso horizonte várias mensagens de alerta diante dos crescentes problemas climáticos que hoje massacram a natureza cujos limites estão sendo aceleradamente ultrapassados com o nosso estilo de vida antropocêntrico, exigindo uma nova ética que nos faça entender que não somos Deus e que não podemos continuar gerando um desequilíbrio que pode resultar na destruição de Gaia, deusa grega primordial da potência da Terra, responsável pelo cordão umbilical da vida no planeta.

As alterações radicais do Código Ambiental são cúmplices das devastadoras catástrofes que afetam hoje regiões com baixo índice de conservação de biomas, onde os eventos climáticos extremos causam inúmeras tragédias anunciadas por cientistas que, desde a década de 1970, alertam que o aquecimento global trará impactos inimagináveis nos seres vivos e no planeta, sendo necessário mudarmos os rumos de uma civilização baseada na queima de combustíveis fósseis e na devastação do meio ambiente. 

A ciência e a sabedoria dos povos nos dizem que fenômenos iguais aos que destroem hoje várias regiões do mundo vão se repetir cada vez mais com maior intensidade se não atuarmos decididamente nas causas dos problemas socioambientais, num momento em que vivemos uma realidade escamoteada pela voracidade das demandas de acumulação do capital, que se sustenta na firme e dogmática crença do progresso modernizante no qual plantas e animais são literalmente sacrificados para aumentar a energia para as classes dominantes e impérios. Como disse Gandhi, “a natureza pode suprir todas as necessidades da humanidade, menos a sua ganância”.

Desde a Conferência de Estocolmo, em 1972, a ciência alerta claramente sobre os riscos e os perigos das mudanças climáticas globais que, com a nossa incoerência e arrogância, vem acelerando um processo de destruição incontrolável, atingindo negativamente, de formas variadas, todo o planeta.

Mesmo com os alertas globais, várias décadas se passaram sem que nenhuma medida significativa fosse adotada para reduzir as emissões de gases de efeito estufa, evidenciando uma sociedade insensível que tenta a todo custo prosperar vilipendiando a natureza e um planeta que tem mais de quatro bilhões de anos. 

Com tanto massacre à natureza, que entrou em ebulição e passou a reagir enviando vírus, bactérias, tufões e tempestades rigorosas, a temperatura aumentou, significativamente, trazendo efeitos danosos para o planeta, provocando o colapso da civilização com o homem seguindo o mesmo destino dos dinossauros. Tal afirmativa não se trata de um alarmismo com viés catastrófico-ficcional. O recado da ciência é claro. O mundo que nos acolhe está desmoronando e, talvez, se aproximando de um ponto de ruptura.

sábado, 23 de março de 2024

Uma contraposição à tirania


ANTONIO CARLOS LUA

A democracia – que surgiu na Grécia como um sistema político alternativo à tirania – visa criar um ambiente social de livre discussão e argumentação, para que ideias antagônicas possam ser debatidas, evitando que desacordos ideológicos sejam resolvidos pela força.

Ela foi implantada em Atenas, por volta de 510 (antes de Cristo), quando Clístenes liderou uma rebelião vitoriosa contra o último tirano que governou a cidade-estado. As reformas políticas adotadas por Clístenes visavam resolver graves conflitos sociais decorrentes da estratificação social em Atenas, já que os aristocratas detinham o poder político e econômico sobre comerciantes, artesãos, camponeses e escravos.

Estes últimos grupos sociais haviam apoiado uma série de reformas anteriores, realizadas principalmente por Drácon e Sólon, mas que não haviam sido suficientes para resolver os conflitos.

O regime político e democrático instituído por Clístenes tinha por princípio básico a noção de que “todos os cidadãos têm o mesmo direito perante as leis”. Entretanto, apenas os homens atenienses maiores de 21 eram considerados cidadãos, excluindo da vida política as mulheres, os estrangeiros, os escravos e os jovens.

A democracia ateniense era, portando, dessa forma, elitista, patriarcal e escravista, porque apenas uma pequena minoria de homens proprietários de escravos poderia exercê-la. Ela teve seu fim por volta de 404 (antes de Cristo), quando a cidade-estado foi derrotada por Esparta na Guerra do Peloponeso, voltando a ser governada por uma oligarquia. 

Trazendo a questão para o momento atual, constatamos que, mesmo sendo todos nós cidadãos, compartilhando do mesmo ‘ethos democrático’, ainda nos deparamos com  contradições seculares que inviabilizam a construção de um regime verdadeiramente democrático no país, onde o processo político se deu com a reprodução de heranças coloniais, num processo político disfuncional, sem fidelidade com o povo.  

Passamos por uma recessão democrática. Estamos tendo, talvez, a última chance de mostrar que a democracia é o melhor caminho para o progresso social. Caso continuem se repetindo os escândalos e as ineficiências que prevaleceram nas últimas décadas, a bela ideia de uma sociedade verdadeiramente democrática pode sucumbir diante da descrença geral da sociedade.

A desinformação e a pseudociência

ANTONIO CARLOS LUA

As eleições municipais de 2024 entraram na pauta política nacional. Em comum – além dos eventos democráticos – está a preocupação com as ‘Deepfakes’, prática criminosa que consiste no uso da tecnologia de inteligência artificial para manipular ou produzir imagens credíveis de situações que nunca aconteceram, trocando o rosto de pessoas em vídeos, sincronizando movimentos labiais, expressões e demais detalhes, com resultados impressionantes e bem convincentes.

Ao invés de depender de edição manual, o criminoso, por meio da ‘Deepfake’, precisa apenas de uma fonte para reconhecer o modelo do rosto da “vítima”, mapear a estrutura da cabeça destino e fazer a sobreposição. 

Por mais que o foco do ‘Deepfake’ seja a troca de rosto em vídeos, engana-se quem pensa que a prática se restringe a isso. A técnica também é utilizada para a manipulação de áudios, onde podem ser criadas gravações que simulam a voz de determinada pessoa, facilmente compartilhável em mensageiros como o WhatsApp.

Com os avanços tecnológicos, o método criminoso – que traz riscos para a democracia e para o pleito eleitoral – tem se tornado cada vez mais sofisticado. Na prática, as ‘Deepfakes’ utilizam técnicas similares aos efeitos especiais usados em produções de Hollywood, onde se insere digitalmente uma pessoa que originalmente não faz parte do contexto. 

A técnica mais usada é a chamada “troca de cabeças”, que utiliza uma “pessoa-origem” e insere a imagem na “pessoa-destino”. Assim, com o uso de softwares que usam algoritmos de inteligência artificial é possível transferir o rosto da “pessoa-origem” para o corpo da “pessoa-destino” de forma que pareça que a “pessoa-origem” realmente faz parte do vídeo.

Essa técnica – que foi utilizada pelo diretor James Cameron no filme recorde de bilheteria ‘Avatar’, em 2009, dando vida aos gigantes azuis do mundo de Pandora – usa um mecanismo de aprendizado de máquina, dentro das técnicas de inteligência artificial, para fazer essa máquina criar imagens que nunca existiram, de forma barata e rápida. 

A popularização das ‘Deepfakes’ vem ocorrendo desde 2017, quando rostos de celebridades começaram a ser utilizados em filmes pornográficos. Mas não demorou muito até esse fenômeno chegar na política.

Com as ‘Deepfakes’, criminosos podem fazer você falar o que quiserem, colocar você em qualquer lugar do mundo. O pior. Não precisam de você. Podem criar as pessoas que quiserem com as características e pensamentos que bem entenderem, em

combinações de algoritmos, geradas a partir de técnicas da inteligência artificial. A prática tem avançado a passos largos no Brasil e na velocidade atual das redes sociais e do WhatsApp mina a reputação de figuras públicas, em vídeos extremamente realistas, que colocam as vítimas em situações constrangedoras e inusitadas, servindo perigosamente para a desinformação política.

As ‘Deepfakes’ representam a mais nova ameaça à cybersegurança, sem que ainda se saiba como combatê-los. Não há regulação, normatização, legislação ética sobre a sua má utilização com os geradores de textos falsos, imagens falsas, vídeos falsos, clonagem não só de vozes, mas também de pessoas.

Ao mesmo tempo em que a tecnologia evolui para facilitar nossas vidas, trazendo facilidades e soluções interessantes para a evolução humana, ela também é utilizada por criminosos para modernizar seus ataques e fazer novas vítimas com consequências irreversíveis no primeiro momento. Há tempos estamos lidamos com a desinformação em diversos níveis.

Agora, com a evolução dos meios tecnológicos de comunicação, enfrentamos desafios desconhecidos, que causam grande impacto em nossas vidas. Ainda que conceber pessoas digitalmente não seja uma novidade, uma vez que técnicas como essa são amplamente utilizadas na indústria cinematográfica, sua aplicação fora dos estúdios tem desdobramentos dramáticos, ao se fazer uso de tecnologia no âmbito da política para fragilizar os processos democráticos.

Com quantidade de fotos disponíveis nas redes sociais, qualquer pessoa pode se tornar vítima. Os criminosos só precisam das fotos para treinar seus algoritmos quando quiserem usá-las para roubar identidade, chantagear ou divulgar notícias negativas sobre políticos ou pessoas famosas ou influentes.

A verdade é que vivemos hoje um perigo real, com a criação de mundos paralelos, com máquinas potentes, hardwares, guiados por mentes com domínio tecnológico nos apresentando vídeos tão perfeitos sem que possamos perceber sua falsificação, manipulando o sentimento coletivo.

Vivemos num mundo dispótico, onde prevalece a desinformação e a pseudociência, levando ao emburrecimento e à celebração da ignorância, com as redes sociais levando centenas de milhões de pessoas a se informar apenas por meio das Fake News sem nenhuma preocupação de confronto com os fatos da realidade.

A civilização baseada na investigação científica e na busca da verdade – desde o Renascimento, nos Séculos XV e XVI, e o Iluminismo, nos séculos XVIII e XIX – está seriamente ameaçada.

Império da lei

ANTONIO CARLOS LUA

Neste exato momento, algum brasileiro ou brasileira, em algum lugar do País, está cumprindo ao menos uma lei que não deveria ter entrado em vigor, por ser inconstitucional. Oito em cada dez leis julgadas – no mérito – pelo Supremo Tribunal Federal (STF), são consideradas inconstitucionais no todo ou em parte. A forma de editar uma lei, mais do que o seu conteúdo, está entre os principais erros cometidos.

É pública e notória a constatação de um número infindável de leis inconstitucionais em vigência no País. O Poder Legislativo aprova uma lei e sabe que depois tem um encontro marcado com o Poder Judiciário para rediscuti-la.

No Brasil, é comum que leis sejam editadas para atender interesse de poucos, que não teriam o direito que conquistaram se determinadas normas não estivessem no ordenamento jurídico.

Tal situação apenas escancara aquilo que já vem acontecendo há muito tempo e que acaba sendo paradoxalmente desprezada pelo Poder Legislativo, responsável pela criação e edição de diplomas legais.

O Brasil supera as democracias do mundo em número de leis questionadas, colocando o Poder Judiciário como a terceira arena de discussão, por ter que apreciar medidas legislativas, sendo bastante demandado para a verificação de possíveis inconstitucionalidades que viciam inúmeras legislações.

A despeito da inconstitucionalidade de leis federais, a criação de leis estaduais e municipais denuncia uma série de fatores já conhecidos de todos, mas que, até agora, não foram resolvidos.

Nessa direção, é possível detectar leis totalmente inconstitucionais, ora pela falta de competência das instâncias legislativas para a sua edição, ora pelo desvio de finalidade de atos normativos com o objetivo de favorecer demandas de caráter ilícito.

Como consequência óbvia da ineficiência e dos equívocos na criação de legislações, o Poder Judiciário encontra-se abarrotado com a chegada de inúmeras Ações Diretas de Inconstitucionalidade, Arguições de Descumprimento de Preceito Fundamental, além dos Mandados de Injunção.

Isso acaba prejudicando os processos cujas demandas sofrem com a duração alongada de seus julgamentos, além de fazerem brotar outros processos correspondentes aos desvios de finalidade de atos de agentes públicos, definidos como atos de improbidade administrativa.

Assim, o aumento da demanda e a consequente perda da qualidade na criação de leis remetem à necessidade de um controle jurisdicional da sua constitucionalidade, promovendo um crescente protagonismo do Poder Judiciário em todas as suas instâncias.

É importante ressaltar que todos esses fatores que provocam a inconstitucionalidade de diplomas legais, são responsáveis pela crescente judicialização da política.

De acordo com o sistema jurídico adotado no Brasil, as leis gozam de presunção de constitucionalidade e, por isso, tão logo publicadas, passam a integrar o ordenamento jurídico, entrando em vigor na forma de suas próprias prescrições.

Sabemos, porém, que as leis, em seus respectivos processos de produção – quanto à forma e conteúdo – devem estar alinhadas e em perfeita sintonia com Constituição Federal. Quando assim não ocorre, cabe aos interessados questionar a sua constitucionalidade.

Muitas leis sancionadas não se encaixam à realidade social pela centralização de poder e pela distância de certos legisladores distanciados do cotidiano das pessoas. Embora a quantidade de leis aprovadas possa ser um termômetro para medir o protagonismo do Poder Legislativo, não há relação entre muitas leis aprovadas e um bom Parlamento, até porque o legislador também tem função de fiscalizar o Poder Executivo.

No mundo moderno, a lei é o princípio da autoridade. É a lei que define os limites da particularidade dentro da universalidade. É o império da lei o garantidor da liberdade. Fora da lei, reina a arbitrariedade, gerando um ingrediente negativo no conturbado contexto de questionamento de normas.

Na verdade, no caso do Brasil, a explicação para a significativa produção de leis inconstitucionais está em nossas raízes. Se fizermos uma análise histórica de nossa formação cultural, constataremos que o estatismo brasileiro não é um acaso, e sim uma obra de séculos. Isso se reflete na opinião dos cidadãos.

O veneno em nossa mesa

ANTONIO CARLOS LUA

Dados da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO/ONU) apontam que o Brasil continua liderando o ranking dos países que mais usam agrotóxicos, embora não seja o campeão mundial de produção agrícola. Aprovados em grande escala, os agrotóxicos receberam o nome simpático de “defensivos agrícolas” e ganharam a afeição no país, que libera cada vez mais venenos na mesa do brasileiro.

O uso excessivo de agrotóxicos no Brasil para atender às demandas da agricultura de exportação, vem colocando o país – principal destino de pesticidas proibidas no exterior – como uma espécie de latrina tóxica com o uso de produtos comprovadamente nocivos, seja porque causam a contaminação de recursos hídricos seja porque também se mostram altamente prejudiciais à saúde humana.

Por que o Brasil lidera o ranking de uso de agrotóxicos? Temos mais pragas que os demais países? A ciência vem mostrando os imensos riscos dos agrotóxicos para as pessoas e para a fauna, mas, no entanto, os dados científicos não convenceram o Brasil em relação aos efeitos perversos dessas pesticidas na contaminação de rios e solos, constituindo-se uma ameaça à biodiversidade, gerando um debate emblemático para pensarmos o futuro da população no país.

Altamente maléficos, os agrotóxicos causam sérios danos ao ser humano, que vão desde alterações genéticas, como as malformações de embriões, até efeitos mais agudos. Eles estão presentes na nossa comida, na água que bebemos, no ar que respiramos e nos lugares em que nossas crianças brincam. Até mesmo nossas sementes melhoradas já são pensadas para usar agrotóxicos.

Os dados sobre o consumo de agrotóxicos usados na agricultura no Brasil são alarmantes. Imagine tomar um galão de cinco litros de veneno a cada ano. É o que os brasileiros consomem de agrotóxico anualmente, segundo laudo científico do Instituto Nacional do Câncer (INCA). Mais de 70% dos alimentos ‘in natura’ consumidos no país estão contaminados por agrotóxicos.

Desses alimentos – segundo a Anvisa – 28% contêm substâncias não autorizadas. Isso sem contar os alimentos processados, que são feitos a partir de grãos geneticamente modificados e cheios dessas substâncias químicas, que estão altamente associadas à incidência de sérias doenças genéticas.

O Brasil possui – desde a década de 1970 – legislações que regulamentam o registro, a produção, o uso e o comércio dessas substâncias danosas em seu território. Além da relativa frouxidão dessas legislações, exemplificada pela liberação de produtos proibidos em diversas regiões do planeta, a grande fragilidade está na fiscalização e nas medidas adotadas para que as normas sejam cumpridas.

Se formos mais a fundo nessa discussão, constataremos que é uma contaminação intencional. Em termos jurídicos, tem o crime culposo quando a pessoa não teve a intenção de cometê-lo e doloso quando essa

intenção fica provada e caracterizada. No caso em questão não é um crime culposo. Não é culpa do vento que mudou o agrotóxico de direção, mas do agricultor que cometeu um ato inseguro e intencional. Existe a intenção de poluir para atingir o alvo dele – no caso, os insetos, as pragas. Ele aceita conscientemente essa consequência.

O emblemático legado de José Saramago



ANTONIOCARLOS LUA

O saudoso escritor, romancista, poeta e tradutor, José Saramago (1922/2010), agraciado, em vida, com o Prêmio Nobel de Literatura (1998) e o Prêmio Camões (1995) – ambos de reconhecimento internacional – completará, em 18 de junho deste ano, 14 anos distante do mundo terreno da literatura. 

O escritor – que também era jornalista com atuação em veículos de imprensa como comentarista político – iniciou sua atividade literária em 1947, com o romance “Terra do Pecado”. Em 1980, alcançou notoriedade com o livro “Levantado do Chão”. Anos depois o sucesso se repetiu com “Memorial do Convento”.

Em sua trajetória na literatura, Saramago procurou destacar o fator humano que se esconde por detrás dos acontecimentos mais díspares. Escritor produtivo, publicou diários, romances, contos, peças teatrais, crônicas e poemas, eivados de aflição intelectual, de inconformismo, de denúncia e de insaciável fome de justiça social. 

Em 1980, alcançou notoriedade com o livro “Levantado do Chão”. Anos depois o sucesso se repetiu com “Memorial do Convento”. O seu reconhecimento na literatura veio com o controverso romance ‘O Evangelho segundo Jesus Cristo’, no qual ele mergulha profundamente em assuntos teológicos.

Mesmo sendo ateu, Saramago se mostrou imerso numa cultura moldada pela ideia de Deus, impregnada no DNA da civilização Ocidental. Era apaixonado pela Teologia e pelos personagens bíblicos em geral.

Apesar do ateísmo, ele conhecia a ideia de Deus. Isso o seduzia fazendo com que produzisse as melhores páginas da literatura universal contemporânea, se comportando como se fosse uma espécie de quinto evangelista, dando sua versão para os fatos, por meio da ficção. Intelectual considerado sem nenhuma admissão metafísica, José Saramago escreveu até os últimos anos de sua vida, assinando obras de grande relevância.

Partidário convicto do pessimismo antropológico – mas profundo conhecedor do espírito humano – partia do princípio de que nós, como seres humanos, não somos bons e não temos coragem de reconhecer isso. 

Na trama do livro ‘Ensaio sobre a Cegueira’ – um de suas obras mais conhecidas, adaptada para o cinema, em 2008, pelo cineasta brasileiro Fernando Meirelles – ele afirmou que a espécie humana não melhorou sequer minimamente, com o mundo dos cegos abrindo o caminho para o mundo dos bárbaros.

José Saramago se preocupou com a realidade de seu tempo e, não obstante à sua visão distópica do mundo, nos ajudou a refletir sobre o comportamento humano, especialmente nos momentos mais complexos e imprevisíveis da vida. Com sua visão humanista, relançou, em janeiro de 2010, o livro “A Jangada de Pedra”, direcionando toda a renda da edição para as vítimas do terremoto no Haiti.

Polêmico e contundente em suas críticas, Saramago comparou – em 2002 – a situação nos territórios palestinos com o campo de concentração nazista de Auschwitz, durante um encontro entre a

delegação de membros do Parlamento Internacional de Escritores e o ex-líder palestino, Yasser Arafat, em Ramallah. Até hoje, não faltam a admiradores a José Saramago. Ele reinventou a literatura do Século XX e converteu-se em uma espécie de herói das letras lusófonas.

Escritor raro com uma obra extensa, adotou um estilo singular na produção de suas obras, carregadas de ideias e reflexões, com muitas vírgulas, ausência de aspas e longas digressões filosóficas.

O seu legado comporta dimensões e um alcance raros, para além da sua obra literária. Num tempo em que nos defrontamos com crises e ameaças que põem em causa o futuro da Humanidade, sua obra revela-se importante nos planos social, ideológico, político e ético. Os romances, contos, peças de teatro e poemas de José Saramago tornam o poeta português uma referência para o presente e para o futuro.