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domingo, 1 de setembro de 2019

Democracia sem memória

Antonio Carlos Lua

Há 40 anos era promulgada a controversa Lei da Anistia, que concedeu perdão a todos que cometeram crimes políticos, crimes conexos e crimes eleitorais entre os dias 2 de setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979. 

A anistia foi estendida ainda aos que tiveram seus direitos políticos suspensos, aos servidores públicos ligados à administração estatal, aos militares e aos dirigentes e representantes sindicais punidos pelos Atos Institucionais e Complementares durante a ditadura militar.

A Lei da Anistia não é um tema do passado, como muitos dizem. É um assunto atual, adiado por muito tempo. O debate em torno da referida Lei é extremamente  necessário, para a uma avaliação da qualidade da democracia que o Brasil vem tentando construir nos últimos 30 anos. 

A ambiguidade da Lei de 1979 teve dois ingredientes. Por um lado, significou a interrupção da perseguição política em larga escala com a capilaridade que vinha tendo através do Sistema Nacional de Informações (SNI). 

Significou também o retorno dos exilados e a libertação dos presos políticos, com a diferença de que os presos que estavam condenados pelos chamados “crimes de sangue” — como se falava à época — ou seja, os condenados por terem tomado parte na luta armada, não estavam incluídos e ficaram de fora do texto final da Lei da Anistia. 

Por outro, houve injustiças, pois aqueles agentes públicos que praticaram crimes contra a humanidade, torturaram, mataram e, portanto, também praticaram “crimes de sangue”, não viriam a ser investigados e, consequentemente, não vieram a sofrer responsabilizações sob o ponto de vista criminal. 

Assim, a seletividade que a lei estabeleceu foi prejudicial àqueles que foram perseguidos políticos. A sociedade organizada nos Comitês de Anistia queria a responsabilização dos torturadores. No entanto, a forma como o governo controlou esse processo impediu que isso viesse a acontecer.

Dessa forma, a Lei da Anistia estabeleceu um tratamento discriminatório em relação aos perseguidos políticos. Ou seja, reverberou a seletividade da perseguição política e também trouxe um bloqueio para que se pudesse investigar os crimes praticados pela ditadura, caminhando, assim, em direções ambíguas. 

A Lei da Anistia trouxe consigo um ingrediente de reposição do período de perseguição política, repetida em muitos dos seus artigos na Emenda Constitucional (EC 26/1985), que chamou a Assembleia Nacional Constituinte. 

A emenda repetiu os termos da Lei da Anistia de 1979 com uma mudança que diz respeito à definição do que seriam crimes conexos. A definição muito pouco precisa fez com que um julgamento do Supremo Tribunal Federal sobre a constitucionalidade da referida lei, em 2010, ressuscitasse essa interpretação heterodoxa do conceito de crime conexo. O entendimento do STF foi de que conexão criminal seria tudo o que se relacionaria a crime político, de qualquer natureza. 

A ditadura construiu uma interpretação para a ideia de crime conexo, afirmando que um eventual “crime” que o agente público teria cometido para perseguir quem praticava o crime político ou o crime que é conexo ao político, também seria considerado crime conexo. 

Isso é algo que não é sustentável em nenhum livro de Direito Penal ou reflexão acadêmica, teórica ou técnica, do Direito Penal. Foi um estratagema utilizado para anistiar os crimes dos agentes da ditadura sem assumi-los, sem dizer com todas as letras que estariam anistiados os crimes de tortura, de assassinato, entre outros crimes praticados, inclusive, por agentes públicos.

Essa foi a interpretação que na época da ditadura predominou, alcançando uma elasticidade impressionante, inclusive do ponto de vista temporal, valendo para trás e para frente, de maneira muito aberta e generalizada, para impedir que as investigações pudessem caminhar. 

Uma das questões atuais da Lei da Anistia de 1979 está presente, sem dúvida alguma, nessa barreira de esquecimento e de silêncio que se impôs a partir da sua promulgação, com a desculpa e a referência institucional dela. Talvez esse seja um dos aspectos atuais mais evidentes dessa herança gerada na Lei da Anistia, com as limitações da nossa redemocratização.

Como uma boa parte da nossa democracia desse período que chamamos de República Nova se estabeleceu com a crença de que estávamos num processo ascendente de fortalecimento democrático, colocamos as deficiências da lei debaixo do tapete, sem o devido enfrentamento. 

Mas, agora, vivemos um processo social e político no qual essas questões não conseguem mais ficar onde estavam. Elas estão ressurgindo sem que possamos manter escondidos os desafios que foram postergados. 

Precisamos lutar contra essa tendência, que é própria da modernidade, de querer pensar sempre para frente, no sentido de esquecer o que veio antes e de achar que o progresso é inevitável e linear. Não é. Se formos pensar numa sociedade mais justa e menos violenta, vamos olhar para trás e ver que não houve muito progresso. 

Para podermos chegar nos pontos cegos da nossa sociedade temos que ter esse compromisso de conversar com o passado e de saber que a interpretação que temos do passado é determinante para o nosso presente e para o nosso futuro. 

Se não fizermos isso, andaremos às cegas. Um país violento como o Brasil clama por essa atitude. Devemos nos colocar entre aqueles que veem na rememoração da anistia brasileira e na discussão dela não um tema do passado, mas um tema atual.

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