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segunda-feira, 24 de agosto de 2020

Um lápis e um papel

Antonio Carlos Lua

Para Clarice Lispector – uma das maiores escritoras brasileiras do Século XX, com grande influência no modernismo – a literatura era uma questão de vida ou morte, e não um luxo ou uma afirmação existencial. Era um destino com tudo o que essa palavra carrega de mais difícil.

A escritora – que também era jornalista – desejava ir além das palavras para tocar o real. Encarava a literatura não como um instrumento, mas como um obstáculo que devia ser ultrapassado e vencido. Essa era uma posição solitária e radical que gerou muitas incompreensões.

Clarice Lispector usou muito material de suas crônicas para compor algumas narrativas. Preferia os paradoxos, os impasses, os abismos. Mas era coerente. Foi uma mulher muito sábia. 

Acreditava na potência da literatura, não se submetendo, porém, a regras, cânones, ou afirmativas consagradas. Corajosa, era fascinada pelas descobertas que o exercício da escrita lhe reservava.

Com um lápis e um papel enfrentava o desafio de dizer o que é impossível dizer dentro do código convencional da linguagem. Seu mundo era o das entrelinhas, da introspecção, das epifanias em meio ao cotidiano, das questões metafísicas, além e aquém da realidade prosaica.

Sua prosa mirava algo que não se entregava ao olhar realista. Seus objetos se situavam no escuro, fora da zona iluminada pela razão instrumental. Sondou todas as questões ocultadas pela alma que precisavam ser ouvidas, mas não deixou de enfocar o social de modo oblíquo e singular.

A obra da escritora ucraniana naturalizada brasileira é atual e até hoje decifra sentidos fugidios, buscando compreender o que se põe fora do campo do conhecido, aventurando-se e se posicionando no mundo sem clichês, sem estereótipos, sem disfarces, desmontando máscaras e mostrando o que há por trás delas. 

Clarice Lispector abominava a imagem de escritora misteriosa construída ao seu redor. Ela se dizia uma dona de casa que escrevia livros. Era bastante resguardada em relação à imprensa, mas recebia com prazer os jornalistas que queriam conhecê-la sem formalidades. Se há algo de misterioso em sua vida – o que é improvável – transpôs-se para sua obra como um modo de ser.

Sua escrita aceita o mistério como parte do universo vivido, tomando o cuidado para não decifrá-lo e com isso perdê-lo. Sua obra parece afirmar insistentemente que não sabemos tudo, não podemos e não devemos saber tudo. 

Essa zona de escuridão é justamente a condição de vermos o que não é visível na luz. Clarice Lispector pessoa e Clarice Lispector escritora não se distinguem no que almejam. Ambas querem a coisa irrevelada. O mistério, portanto, está no objeto da busca e não na autora e seu cotidiano.

Como cronista do Jornal do Brasil levantou questões relativas à sua época. Ela nunca se submeteu a qualquer patrulhamento que lhe tirasse a liberdade radical de dizer a verdade de si mesma. O processo de conscientização que sua literatura produziu nos anos difíceis da ditadura – e que produz até hoje – se deu pelo valor estético de seus textos.

A publicação das obras ‘Laços de família’ e ‘A legião estrangeira’ aproximou Clarice Lispector dos leitores. A época da publicação das obras era propícia para o desejo transgressor  expressado, abrindo canais para a necessidade de libertação e reposicionamento das pessoas. 

Muitos falam da relação de Clarice Lispector com a bruxaria.Talvez ela tenha influenciado mais os bruxos do que vice-versa. O mal é uma categoria importante na obra clariciana e talvez por aí haja correspondências com a magia e a bruxaria. Ela via o mal como pulsão transgressora de tudo o que teima em permanecer o mesmo.

Dizia sempre que havia nascido para escrever e amar. Mesmo com o amor à literatura – face luminosa da sua intensidade como escritora – ela carregou as marcas da negatividade e da redenção. Escrever, dizia Clarice Lispector, “é uma maldição. Mas uma maldição que salva”.

Ela ocupa um espaço de proeminência na literatura brasileira Apesar de ser considerada uma autora difícil, Clarice Lispector encontrou uma linguagem de comunicação das coisas mais profundas e densas de sua experiência de vida. 

O tema fundamental na obra da escritora é a própria linguagem. Ela explora o discurso, a palavra, combinações, fluências, ausências, para atravessar a palavra e pescar a não-palavra, aquilo que não pode ser dito. 

A obra de Clarice é um crescendo. Ela começa fechada, complexa e muito sintética, amalgamada, e vai se espraiando. Nos vazios e silêncios, vai recolhendo mais capacidade de expressão do que inicialmente. Sua obra transita em um tempo de grandes alterações, tanto da escrita, da comunicação literária, quanto da condição feminina.

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