Antonio Carlos Lua
Há algo de profundamente poético na missão do jornalista. À primeira vista, pode parecer que ele se limita aos fatos, à objetividade, à busca incessante pela verdade nua e crua. No entanto, sob a superfície das manchetes e do ruído informativo, pulsa um coração que tenta compreender — e traduzir — o mundo humano em toda a sua complexidade. Na essência, o jornalista é um poeta da realidade.
Ambos — o repórter e o poeta — partilham a escuta atenta, um ato raro e quase sagrado em tempos de vozes que se atropelam. Tanto os jornalistas como os poetas tentam — à sua maneira — traduzir a vida. A diferença é que, enquanto o poeta pode reinventar o real, o jornalista precisa revelar o que nele já está — mesmo quando a verdade é áspera.
Há quem acredite que o jornalista vive de fatos, que sua função é contar o que aconteceu com a frieza técnica de quem pesa palavras em gramas. Mas quem já vestiu o colete de repórter e enfrentou desafios em busca de uma história sabe que há poesia no ofício de informar. O bom jornalismo nasce da curiosidade, se sustenta na apuração rigorosa, mas só ganha vida quando guiado pela sensibilidade.
O saudoso jornalista colombiano, Gabriel García Márquez —considerado um dos autores mais importantes do século XX, com mais de 40 milhões de livros vendidos em 36 idiomas — foi repórter antes de ser romancista. Ele dizia que “o jornalismo é o melhor ofício do mundo”. E talvez seja justamente por unir o rigor da apuração ao espanto diante do humano — uma combinação rara, quase alquímica.
Grandes nomes da literatura também começaram no jornalismo. Ernest Hemingway, João Guimarães Rosa, Clarice Lispector e Machado de Assis passaram pelas redações. Todos compreenderam que o jornalismo, assim como a poesia, é uma forma de escuta do mundo. E como dizia Ryszard Kapuściński — considerado um dos maiores jornalistas do século XX ¬— “para ser jornalista, é preciso ser, antes de tudo, humanisticamente, uma boa pessoa”.
Quando um repórter se senta diante de alguém para ouvir sua história, ele se torna tradutor de vidas. Traduz em palavras o que o outro viveu, sem perder o tom, o ritmo, o respiro. Nesse gesto, o jornalismo se aproxima da poesia, buscando nas entrelinhas a verdade que mora dentro das pessoas, recolhendo pedaços da alma humana e costurando-os em narrativa.
É claro que a objetividade é necessária. Mas sem sensibilidade, a notícia se torna fria, mecânica, distante. O jornalismo, afinal, é feito de gente — e de histórias que batem à porta pedindo para ser contadas com respeito, empatia e alma. O repórter que escuta a dor de uma mãe em meio a uma tragédia, que acompanha o desalento de uma comunidade esquecida ou a luta anônima de alguém por dignidade, precisa dominar a técnica, mas também a ternura.
O poeta trabalha com metáforas e o jornalista com palavras que precisam resistir à prova da realidade. Ainda assim, ambos partem da mesma fonte: a condição humana. Cada reportagem é uma tentativa de decifrar o homem diante de suas alegrias, dores, contradições e esperanças — uma crônica viva do nosso tempo. O filósofo francês Michel Foucault dizia que “todo conhecimento é atravessado pelo poder e pela subjetividade”. O jornalista, ao narrar os fatos, precisa ser vigilante para que a verdade conte mais que os interesses.
Hoje, num cenário dominado pela velocidade das redes sociais, pela desinformação e superficialidade das narrativas digitais, o papel poético — e ético — do jornalista se torna ainda mais urgente. Estudos recentes da UNESCO alertam para o avanço das fake news e para as ameaças contra a democracia. Assim, em tempos de excesso de informação, o jornalista precisa ser farol, filtrando o ruído para revelar o essencial.
Contar o real também é um ato de arte e de responsabilidade social. O jornalismo de profundidade — investigativo, humano, comprometido — tem o poder de transformar realidades, denunciar injustiças e provocar mudanças estruturais. Foi assim com o caso Watergate, com reportagens sobre violações de direitos humanos e com coberturas que mobilizaram políticas públicas.
A boa reportagem nasce quando o jornalista se deixa atravessar pelo que vê — sem permitir que a emoção o cegue, mas também sem deixar que a frieza o desumanize. Ele precisa equilibrar a precisão do cronista com a delicadeza do poeta. Afinal, o jornalismo mais profundo não apenas descreve o mundo, mas também o interpreta, o reconecta às pessoas.
O jornalista revela o que está por trás do aparente, o que o olhar apressado ignora, o que o silêncio insiste em dizer. A palavra é a ferramenta do jornalista e do poeta. Mas, para o jornalista, ela carrega uma dupla missão: informar e humanizar. Cada reportagem é uma ponte entre quem vive a história e quem a lê, entre a dor e a compreensão, entre o fato e o sentido.
A boa escrita jornalística, quando feita com ética e sensibilidade, é capaz de despertar consciências e inspirar empatia — sendo um eficaz antídoto contra a indiferença. Num mundo em que algoritmos priorizam o que viraliza, cabe ao jornalista resgatar o que importa. É por isso que o jornalista precisa de rigor técnico, mas também de ternura. É justamente a ternura que o impede de reduzir pessoas a números, tragédias, estatísticas e manchetes. É ela que transforma o repórter em poeta — não do lirismo romântico, mas da verdade vivida.
Ser jornalista é habitar o espaço onde o fato encontra o sentimento. É escrever sobre o real com o cuidado de quem segura algo precioso: a história humana. É, enfim, exercer uma forma de poesia que não inventa mundos, mas revela a poesia que já existe neles. Entre o lirismo e o rigor, o jornalista traduz o mundo — e, ao fazê-lo, nos lembra de que toda notícia, no fundo, é um poema sobre o que é ser humano.
Como disse o imortal um poeta português identificado com o modernismo, Fernando Pessoa — cuja obra também revela um olhar jornalístico sobre a existência: o jornalista é um poeta da alma humana.

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