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domingo, 23 de dezembro de 2018

O jornalismo de imersão do escritor Euclides da Cunha


Antonio Carlos Lua

Há 109 anos morria o escritor e jornalista Euclides da Cunha, primeiro repórter a escrever, no Brasil, um livro-reportagem – a obra clássica “Os Sertões” – sobre a Guerra de Canudos, confronto entre um movimento popular de fundo sociorreligioso, liderado por Antônio Conselheiro, e o Exército da República, que durou de 1896 a 1897, sendo o fato jornalístico mais importante da época.

Saber o que significou exatamente a Guerra de Canudos e a observação da imprensa sobre o acontecimento é importante para compreender a função do repórter Euclides da Cunha, enviado pelo jornal ‘O Estado de S.Paulo’, para fazer a cobertura jornalística do que viria a ser a derrocada de Canudos. 

Euclides da Cunha viveu intensamente o contexto da guerra como repórter e como analista social, narrando a vida de um povo negligenciado pela metrópole, sofrendo diretamente as consequências do que o Brasil tinha – e, infelizmente ainda tem até hoje – de profundamente colonial, revelando um conjunto de práticas que constituem hoje preocupações do jornalismo contemporâneo.

Foi o primeiro escritor brasileiro a unir o jornalismo com a literatura e com a história, na série de reportagens enviada para o jornal ‘O Estado de S.Paulo’, relatando a campanha que exterminou a revolta dos jagunços aquartelados dentro de um mísero arraial nas paragens do fundão nordestino. 

Em parte escorado na ciência do Século XIX e por outra parte manejando sua prodigiosa capacidade de observação, Euclides da Cunha oferecia nas suas reportagens uma leitura dialética da formação brasileira: as cidades do litoral em confronto ao sertão arcaico, o exército blindado, mas impotente diante da guerrilha armada pelo sertanejo, o desastre de Canudos rasgando uma fenda intransponível entre civilização e barbárie. 

O resultado das reportagens de Euclides da Cunha na Guerra de Canudos – que inclui uma complexa investigação – mudou totalmente a maneira de ver o Brasil, constituindo o precedente incontornável de abordagens sociológicas, tocando um nervo exposto e sempre latejante da história humana. 

Sua paixão pela verdade o ajudou a transpor para as páginas do jornal ‘O Estado de S.Paulo’ as mazelas a que jamais ficou insensível. Devotamente, Euclides da Cunha foi o precursor de uma interpretação do Brasil fundada no conhecimento direto e exato da verdadeira situação do homem e da terra.

Sua viagem ao sertão baiano para contar jornalisticamente a história da Guerra de Canudos modificou até mesmo a forma de se fazer jornalismo no Brasil. 

Ao contrário dos outros jornalistas que atuavam na zona de conflito, Euclides da Cunha quis – além de narrar os fatos com precisão – compreender o que se passava naquele pedaço do Brasil. Isso incluía desvendar o ambiente, o clima e principalmente se envolver com pessoas. 

Essa postura de entrega, somada a seu texto rico e consistente, foi responsável pelo pioneirismo do chamado Jornalismo Literário no Brasil. Três características presentes no livro-reportagem “Os Sertõs” definem Euclides como um jornalista literário. A primeira delas foi o mergulho na realidade do conflito, a chamada imersão. A segunda foi a sua visão do mundo.

Culto e politizado, Euclides entendeu que o problema com o qual se deparava – e que era a sua pauta jornalística – não era simplesmente uma coincidência de fatos. Havia, em Canudos, um contexto histórico, humano e geográfico e ele queria compreender textualmente aquela realidade dramática. 

Nenhum outro escritor deixou marcas tão fortes quanto Euclides da Cunha, pelo testemunho que trouxe, mesmo a Guerra de Canudos não sendo a única na nossa história, embora ela simbolize todas as outras rebeliões reprimidas na ponta da espada no Brasil. 

Obra rica, “Os Sertões” quebra a cabeça de bibliotecários. É encontrado nas seções “geografia”, “romance”, podendo, também, ser classificado como uma grande reportagem, mostrando que Euclides da Cunha cumpriu um papel decisivo ao demonstrar que é possível praticar a literatura da realidade de maneira competente sem recorrer apenas a recursos de ficção.

O livro “Os Sertões”, traduzido para várias línguas, influenciou grandes escritores brasileiros, como Guimarães Rosa, e autores como o peruano Mario Vargas Llosa (A guerra do fim do mundo-1981); e o húngaro Sandor Marai (Veredicto em Canudos-2002). 

Além de marcar o jornalismo literário no Brasil, “Os Sertões” tornou-se a obra autêntica, mostrando que, na verdade, o jornalismo sempre esteve ligado, se não à literatura, aos literatos. Escritores como Daniel Defoe, Charles Dickens e Jack London estão entre os muitos que são citados tanto no campo da ficção quanto na história do jornalismo.

Na tradição americana, esse tipo híbrido de narrativa tem várias denominações: jornalismo literário, literatura de não-ficção, ensaio, jornalismo de autor, novo jornalismo. Os especialistas exigem alguns requisitos para que uma obra possa ser classificada como pertencente ao Jornalismo Literário. 

Ela precisa estar ancorada em fatos. Sua matéria-prima é o trabalho de grande apuração: muitas entrevistas, muito bate-pé de repórter, pesquisa em arquivos, exaustiva investigação de fatos, levantamento de dados. Essa técnica é chamada de “reportagem de imersão”. 

Os representantes do novo jornalismo fizeram dela um de seus dogmas, a tal ponto que George Plimpton treinou em times profissionais de beisebol e de futebol americano e lutou com um ex-campeão peso-pesado para se sentir qualificado a escrever sobre esportes. 

No momento em que o jornalismo, por força das mudanças acentuadas da vida contemporânea, encontra-se em fase de redefinição, uma volta aos clássicos do jornalismo literário pode ser útil para se desenhar alguns modelos, principalmente para aqueles que acreditam que o futuro dos jornais e das revistas de papel está na diferenciação pela qualidade, não só da informação e da análise, mas também do texto.

5 comentários:

  1. Bom dia, meu ilustre amigo! Mais um brilhante texto para enriquecer nosso domingo!
    Parabéns!!!

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    1. Obrigado, meu amigo! Seus elogios são estimulantes para continuarmos nossa missão de bem informar a sociedade. Grande abraço!

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  2. Eis aqui uma verdadeira lição, tanto para quem escreve como para quem lê. Em tempos de notícias breve o presente artigo mostra a importância de uma escrita - e portanto de uma leitura - que aprofunda para formar, ao invés de superficialmente informar.
    Parabéns.

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  3. Obrigado, fraterno amigo! Seu comentário é muito pertinente e deixa bem claro o real papel social do jornalista no mundo contemporâneo, onde a informação perde cada vez mais a sua força na formação e educação dos cidadãos. Forte abraço!

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  4. Maravilhiso texto analítico, reflexivo sobre a importância do bom jornalista, no desempenho da atividade jornalística de responsabilidade, cuidado e paixão, tal qual ao seu trabalho. Parabéns.

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