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domingo, 28 de abril de 2019

Narrativa da escravidão


Antonio Carlos Lua

Os negros brasileiros formam o único grupo populacional do mundo que não sabe a origem dos seus ancestrais, apesar do país ter recebido mais de 4,8 milhões de africanos escravizados, entre os Séculos XVI e XIX. 

Isso ocorre porque a história verdadeira sobre a escravidão não é contada com sinceridade no Brasil, onde mais de 52% da população tem descendência africana, mas, mesmo assim, se usa muito a palavra “diversidade” para se referir aos negros, como se estes fossem minoria no país.

O Brasil foi o último país a abolir a escravidão e o que mais “importou” escravos africanos – o equivalente a 46% de todos os negros que foram trazidos coercitivamente para as Américas. 

A abolição da escravatura só foi pensada no Brasil a partir do momento em que a Inglaterra – maior potência mundial da época – deixou claro que só reconheceria a independência do país se os escravos fossem libertados. 

Na época, o governo inglês, agia como se fosse a ONU e tinha o poder de garantir o reconhecimento diplomático internacional. Era também uma espécie de FMI e emprestava dinheiro aos países das Américas. Contava com uma força naval que mandava em todos os mares, desde a batalha de Trafalgar (1805). 

Para que a abolição ocorresse no Brasil pesou também o fato de a Região Norte não escravista dos Estados Unidos ter garantido a eleição de Abraham Lincoln, 16° presidente americano. Ele ocupou o cargo de 4 de março de 1861 até seu assassinato, em 15 de abril de 1865. 

Membro do Partido Republicano, Abraham Lincoln era radicalmente contrário à expansão da escravidão e pregava a sua extinção. Durante o seu mandato ocorreu uma guerra civil sangrenta para acabar com a escravidão nos Estados Unidos, cujos traumas perseguem os norte-americanos até hoje. 

Foi nesse contexto que José Bonifácio de Andrada – que era na época uma espécie de primeiro-ministro do Brasil – mandou um projeto para a Assembleia Constituinte, estabelecendo a abolição progressiva do tráfico e da escravidão no país. 

Naquele momento, a classe dirigente e o corpo da administração imperial já tinham perfeita noção de que a manutenção do tráfico de escravos criaria um impasse no país e desagradaria o poderoso governo inglês, com o qual tinha uma  relação de dependência.

Em 1831 foi votado o fim do tráfico de escravos africanos. Porém, sobretudo no Rio de Janeiro, e em menor medida na Bahia e na cidade de Recife, em Pernambuco, foram organizadas redes de comércio clandestinos de escravos africanos. 

Somente a partir de 1850, foi reduzido o comércio de escravos, caindo de 60 mil africanos desembarcados, em 1849, para seis mil, em 1851.

O governo propôs, então, uma lei de imigração para trazer trabalhadores rurais, a redução das tarifas de exportação de café e a construção de uma estrada de ferro na região cafeeira, uma vez que transporte era feito, na época, em lombo de mula. 

Quando o tráfico de escravos cessou de vez no Brasil, acabou também a fonte de reprodução externo do sistema escravista, vindo depois a Lei do Ventre Livre, em 1871, que declarou livres os filhos de mães escravas que nascessem a partir daquela data. Assim, foi estancada outra fonte de reprodução da escravidão. 

Surge então, por parte do Império, uma estratégia gradualista em relação ao fim da escravidão. Era uma artimanha, uma manobra para que os donos de escravos não perdessem dinheiro. 

Foi quando entrou em cena o movimento abolicionistas, que se acentuou na década de 1880, com heroicas lideranças, como Luís Gama, André Rebouças e José do Patrocínio, que defendiam suas ideias fervorosamente nos tribunais e nos jornais. 

Na época, houve movimentos organizados para dar fuga a escravos. Grupos abolicionistas de São Paulo e da cidade de  Recife, em Pernambuco, ajudaram os escravos a fugirem para o Ceará. Lá, a maioria dos municípios já não tinha mais escravos, desde 1884. Os escravocratas eram minoritários no Estado. 

No regime de escravidão, a inquisição portuguesa institucionalizou a tortura como prova, até a pessoa confessar. O Código Criminal da época especificava que se o condenado fosse escravo ele não iria para a cadeia, pois a pena seria transformada em açoite. 

Essa regra existia porque caso o escravo fosse para cadeia, causaria uma perda de mão de obra e dinheiro para o seu senhor. Assim, o escravo era açoitado publicamente, humilhado, torturado. Quando ficava reestabelecido do açoitamento voltava trabalhar normalmente. 

Até 1888, a tortura era permitida no Brasil, mas somente para os escravos. Os mecanismos da repressão escravista contaminaram a sociedade inteira e tem reflexos até hoje no Brasil.

Logo depois da abolição, a escravidão saiu de pauta e passou a ser abordada apenas para convencer os negros que ela foi uma generosidade, uma benevolência da Coroa, do Governo e da redentora Princesa Isabel, embora todos saibam que, na época, a Monarquia já havia fracassado. 

Com o passar dos anos, criou-se no Brasil uma narrativa da escravidão e abolição forjada na mentira, não deixando espaço para a verdadeira História dos afro-brasileiros. 

Esse foi motivo do movimento negro ter proposto a troca do 13 de maio pelo 20 de novembro (Dia da Consciência Negra), da Princesa Isabel por Zumbi – numa luta política significativa. 

domingo, 21 de abril de 2019

Cheiro de pólvora

Antonio Carlos Lua

A face cruel da violência no campo resgata uma memória que a história oficial não conta. Em 13 de maio de 1888 – há 131 anos – o Senado do Império do Brasil aprovava a Lei Áurea, abolindo a escravidão. Naquele momento, não era apenas a liberdade dos escravos que estava em jogo. Havia outro tema pertinente no centro do debate: a reforma agrária. 

Na época, a discussão sobre a distribuição de terras nacionais havia sido proposto pelo abolicionista André Rebouças, engenheiro negro de grande prestígio. A intenção dele era criar um imposto sobre fazendas improdutivas e distribuir as terras para ex-escravos. 

O político Joaquim Nabuco – também abolicionista – apoiou a ideia. Já os fazendeiros, republicanos – e até mesmo os abolicionistas mais moderados – ficaram em polvorosa.

Como o movimento republicano fez um acordo com os latifundiários para que não houvesse mudança na propriedade rural, a aprovação da Lei Áurea acabou não trazendo, concretamente, nenhuma alternativa para os escravos libertados se inserirem no novo Brasil livre. 

Com isso, a ideia de reforma agrária não prosperou, uma vez que o movimento republicano e os latifundiários resolveram trazer imigrantes para trabalharem em fazendas, dispensando a mão de obra dos negros. Assim, os abolicionistas Joaquim Nabuco e André Rebouças acabaram apoiando a monarquia até o fim. 

Foi então que no livro "Minha Formação" (1900) Joaquim Nabuco passa a renegar totalmente sua juventude abolicionista e faz uma declaração monarquista que constitui uma das frases mais infames da história da política brasileira.

Ele disse que tinha convicção de que “a raça negra por um plebiscito sincero e verdadeiro teria desistido de sua liberdade para poupar o menor desgosto aos que se interessavam por ela, e que no fundo, quando ela (a raça negra) pensa na madrugada de 15 de novembro (data da proclamação da República), lamenta ainda um pouco o seu 13 de maio”.

Com a declaração, Joaquim Nabuco mostrou claramente que a Reforma agrária nunca esteve na pauta da maioria dos abolicionistas. Até hoje ela continua fora da agenda política brasileira. 

O Brasil é um dos únicos grandes países agroexportadores que nunca fez reforma agrária, cujo ciclo de vida no país é um fracasso assombroso, tratando-se de dura vilania política, pois, enquanto a miséria no campo se esconde atrás das muletas das políticas sociais, os governos coletam números destinados meramente ao autoelogio.

Mesmo com um gigantesco orçamento destinado à reforma agrária, verifica-se uma irresponsabilidade espantosa com a problemática. Os governantes mantêm-se impassíveis diante do clamoroso desperdício de vultosos recursos públicos para realizar o que eles próprios consideram irrealizável

Resta saber se algum governante nesse país terá a coragem de finalizar este capítulo da nossa História. Para que isso aconteça, será necessário primeiramente abrir as mentes, pois a ortodoxia e a ideologização dominantes só tem contribuído para a violência no campo. 

O cenário na seara agrária é tenso. Com o corte de 70% previsto na Lei Orçamentária Anual, tudo indica que o cheiro de pólvora permanecerá sendo o incenso de uma violência extrema em mais de 37 milhões de hectares de terras –área equivalente ao tamanho do Japão e maior que todo o território da Alemanha. 

O campo é extenso e pode ser cenário de vida com qualidade e fartura para todas e todos, desde que as terras e as águas sejam utilizadas com justiça agrária e hídrica, além de responsabilidade socioambiental, sem o uso abusivo da mãe terra e da irmã água 

No entanto, os agronegociantes seguem adotando uma prática agrícola voraz, com extensas plantações de soja contaminando as nascentes dos rios e córregos com agrotóxicos, deixando os lavradores “encurralados” pela monocultura, com a iníqua estrutura fundiária reinante no Brasil.

Os agronegociantes são os pivôs da discórdia no campo e seguem secando rios, lagos e lagoas pelo uso intensivo e pelo enorme desperdício por evaporação da água que é captada para plantar grandes monoculturas de soja e eucalipto. 

No Brasil, por agronegócio, entende-se a produção em larga escala, feita em grandes extensões de terra – latifúndio – com sofisticada tecnologia em quase monopólio de empresas transnacionais, uso indiscriminado de agrotóxico e, muitas vezes, com mão de obra em condições análogas à escravidão. 

O desmatamento seca as nascentes de rios, escorraça os pássaros e expulsa os trabalhadores rurais para as periferias das cidades. 

Com a pulverização de herbicidas, inseticidas e praguicidas, feita por aviões em voos rasantes em campos de soja, balaios e mais balaios de pássaros mortos podem ser recolhidos, vítimas dos venenos altamente tóxicos. 

domingo, 7 de abril de 2019

Brasil: uma moderna colônia norte-americana

Antonio Carlos Lua

O Brasil abre suas portas para a reinserção pragmática dos Estados Unidos na América Latina com o Acordo de Salvaguardas Tecnológicas que concede o uso comercial da Base de Alcântara, no Maranhão, para fazer do nosso país uma moderna colônia norte-americana. 

Caso o acordo seja aprovado no Congresso Nacional, os norte-americanos voltarão a se sentir interventores e donos do Brasil, trazendo para si a missão de salvaguardar a nossa soberania, esmagando um país subserviente, com reduzida capacidade estratégica e graves debilidades democráticas.

O famigerado acordo vem demarcar a base da política externa estadunidense na América Latina, fazendo valer a doutrina “América para os americanos”, apresentada, em 1823, ao Congresso dos Estados Unidos, pelo então presidente James Monroe. 

Embora o Governo negue sistematicamente, as premissas do acordo incluem a criação de uma área de domínio dos Estados Unidos, proibindo a utilização da base pelo Brasil, devido à confidencialidade tecnológica, aumentando a ingerência dos norte-americanos no país.

Certamente, ao assumir o comando da Base de Alcântara, os norte-americanos não dirão explicitamente que brasileiro não pode ter acesso às instâncias do complexo tecnológico, mas poderão condicionar a presença de cientistas a uma credencial de segurança. 

Como os norte-americanos terão poder de veto, hipoteticamente, um engenheiro do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais pode ser vetado se for considerado capaz de assimilar a tecnologia deles. 

Por razões técnicas e estratégicas, os EUA sempre desejaram ocupar a Base de Alcântara, tendo em vista a notável vantagem em termos de economia energética e viabilidade operacional.

A latitude privilegiada (2ºS), praticamente sobre a linha do Equador, com a força de rotação da Terra gera melhor aproveitamento para impulsionar satélites. A redução dos custos com combustível, comparado com o Cabo Canaveral (EUA) e Baikonur (Russia) varia de 13 a 31%.

Com o controle da base os EUA pretendem também continuar com o paradigma de ser a influência na América Latina, uma vez que ficou claro que a China pode se tornar esse paradigma com o desenvolvimento tecnológico do país asiático nos últimos tempos no continente.

Como hoje é real uma ameaça chinesa para as premissas de quase dois séculos da política externa dos Estados Unidos para a América Latina, os norte-americanos querem conter a emergência de novas potências com a Base de Alcântara sob seu comando, para  impor sua hegemonia geopolítica na região.

Assim, a primeira medida dos EUA quando for aprovado o acordo pelo Congresso Nacional será frear o avanço da China que – além de controlar hoje uma Base Espacial na Argentina, na província de Neuquén – registra uma ascensão com o aumento dos preços das commodities que redirecionam a política comercial cada vez mais intensamente para a Ásia. 

Para os Estados Unidos, o controle da Base de Alcântara é condição sine qua non para qualquer que seja seu interesse político na América Latina, onde, com exceção da Venezuela, Cuba e Bolívia, nenhum país se contrapõem a política externa agressiva norte-americana. 

Aliás, convém frisar que a própria Venezuela, mesmo com sua oposição retórica aos EUA, destina 40% da produção de petróleo aos norte-americanos. 

Já o Brasil, a Argentina e o Chile sempre se ajoelharam para os Estados Unidos, mostrando-nos que discursos político-ideológicos não se constituem aferidor confiável de convicção política.

Houve um momento em que a Agência Espacial Brasileira cogitou sair de Alcântara, mas mudou de ideia quando viu a possibilidade de implantar no município o mesmo projeto desenvolvido na Guiana Francesa que, à época, tinha Kourou como a maior base equatorial de foguetes do mundo. 

Em 2003, o VLS-1 V03 explodiu na Base de Alcântara, matando 21 cientistas. Na época, foi levantada a hipótese de sabotagem dos franceses, quando foram encontradas boias de comunicações em praias próximas de Alcântara, com capacidade de enviar, transmitir e medir frequência. 

A Agência Brasileira de Inteligência fez pelo menos três operações de contraespionagem cujos alvos eram espiões franceses.

A Base de Alcântara foi a segunda implantada no Brasil. Foi instalada numa área de muitos quilombos, violando direitos humanos nas comunidades de Espera, Cajueiro, Ponta Seca, Suassim, Petital, Marudá e Perú.

Na época, existiam 208 comunidades em Alcântara, com 90% delas remanescentes de quilombos. O município foi um dos grandes celeiros de fazendas e engenhos de cana-de-açúcar e algodão há 400 anos, com o trabalho mantido por mãos escravas. 

Atualmente, mais de 60% da área geográfica do município de Alcântara está sob o controle do Ministério da Aeronáutica.

sexta-feira, 5 de abril de 2019

Sinais dos tempos

Antonio Carlos Lua

A cena em que o Papa Francisco retira continuadamente a mão direita todas as vezes em que fiéis tentam se ajoelhar para beijar o Anel do Pescador repercute até hoje e o imortalizou pela estranheza que causou diante de uma tradição institucional no Vaticano. 

O Anel do Pescador é o símbolo que todo sucessor de Pedro – o primeiro Papa da Igreja – usa durante o seu pontificado. 

Por tradição, o anel é de ouro maciço e quando um Papa morre o camerlengo declara ‘Vere Papa mortuus est’ (O Papa está realmente morto), removendo, em seguida, o anel do cadáver para derretê-lo e com ele remodelar o anel para o novo Pontífice.

O Papa Francisco, no entanto, optou por usar o mesmo anel dos tempos de arcebispo, em Buenos Aires (Argentina), em prata dourada, tornando-se, assim, o primeiro Santo Padre a não ostentar uma joia pertencida a outro Pontífice. 

Convencido de que a Igreja deve ser simples e imersa nas raízes do povo, Francisco – desde o início do seu pontificado – sempre demonstrou grande desconforto em usar símbolos sagrados demasiadamente opulentos.

Os católicos conservadores que costumam acusar o atual Papa de se desviar da doutrina e da tradição da Igreja Católica, agora suspeitam que ele pretende acabar com os ritos tradicionais e milenares da Igreja. 

Na verdade, o Papa Francisco quer erradicar gestos de submissão, próprios de um clericalismo que representa um dos cavalos de batalha do seu pontificado. 

Ele tenta mostrar que a ‘adoratio’ (adoração) com sua pessoa não é necessária, uma vez que a Igreja deve ser serviço, nada mais, nada menos.

Francisco não gosta de falsos louvores e é um exemplo clássico da necessidade de mudanças radicais e profundas na Igreja Católica. Passou o tempo de riquezas e "ouropéis", e dos Papas infalíveis.