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domingo, 17 de fevereiro de 2019

Escalada de distorções


Antonio Carlos Lua

Os oito indivíduos mais ricos do mundo concentram riqueza equivalente ao patrimônio dos 3,8 bilhões de pessoas que formam a camada mais pobre da população mundial, ou seja, 50% dos habitantes do planeta.

Os dados não surpreendem. É uma tendência progressiva, irrefreável. A cada dois dias surge um bilionário. As fortunas aumentam 2,5 bilhões de dólares por dia. 

Os Estados Unidos – referência econômica para alguns – integra a escalada de distorções, registrando uma desigualdade com efeitos devastadores em termos de desenvolvimento social e bem-estar coletivo.

Para além das meras estatísticas sobre o Produto Interno Bruto (PIB), existem hoje nos Estados Unidos 20 milhões de pobres, dos quais 13 milhões em pobreza absoluta e desprovidos de assistência, num empobrecimento brutal e generalizado.

Em vários indicadores de desenvolvimento social os Estados Unidos aparecem em posição desconfortável em relação a outros países considerados ricos – e, às vezes, lado a lado com nações em desenvolvimento.

O relatório mais recente do Programa da ONU para o Desenvolvimento (Pnud) indica que a expectativa de vida dos americanos é de 79,2 anos. 

Esse dado coloca o país como o 40º do mundo, atrás de alguns países latino-americanos, como Chile e Costa Rica – uma incrível diferença no bem-estar entre os pobres e os americanos com mais recursos. 

A expectativa de vida para os homens afro-americanos sem educação superior é equivalente à dos cidadãos do Paquistão, Butão e Mongólia. 

Os números sobre mortalidade infantil – número de crianças que morrem por mil nascidos vivos – é outro indicador clássico que coloca os EUA no 44º lugar do mundo, com índices inferiores ao de Cuba, Bósnia e Croácia.

A taxa de mortalidade infantil entre os afro-americanos é  semelhante à de Togo, na África, e da Ilha de Granada, no Caribe. O bem-estar das crianças americanas também é colocado em xeque quando são considerados indicadores de pobreza infantil. 

Um estudo do Unicef – que comparou a situação de crianças em 35 países de economia avançada – coloca os Estados Unidos no penúltimo lugar.

O indicador de pobreza infantil relativa, que mede a porcentagem de crianças que vivem em uma família cuja renda – ajustada ao tamanho e à composição da família –  é inferior a 50% da renda média nacional, registrou 23,1% das crianças americanas nesta situação.

Desde o início do Século XXI, os Estados Unidos registraram um aumento nos índices de mortalidade materna, cuja taxa passou de 17,5 mortes por mil nascimentos, para 26,5 óbitos com a mesma quantidade de nascimentos

No relatório mais recente da ONU sobre Drogas e Crime, os Estados Unidos aparecem com uma taxa de homicídio de 4,88 óbitos por 100 mil pessoas, o que o coloca o país em 59º lugar no mundo. Esse número contrasta com o de países europeus, como Áustria (0,51), Holanda (0,61), Canadá (1,68) e até a Albânia (2,28) e Bangladesh (2,51).

A gravidez na adolescência é frequentemente associada à vulnerabilidade. Segundo dados do Banco Mundial, os EUA registram uma taxa de 21 nascimentos desse tipo para cada mil mulheres entre 15 e 19 anos de idade – colocando o país no 68º lugar do mundo, mesmo nível de Djibouti, na África, e Aruba, território autônomo neerlandês do Caribe, ao largo da costa da Venezuela. 

Os Estados Unidos sediam as melhores universidades do mundo. Mas isso não significa que a formação média dos americanos esteja à altura desses centros de excelência. 

No teste sobre a capacidade de leitura, entre aqueles que não haviam terminado o ensino médio, os americanos ficaram entre os cinco países com os piores resultados. Entre aqueles que completaram esse nível de estudos, o país ficou abaixo da média de todos.

Na avaliação das habilidades numéricas, os americanos ficaram consistentemente abaixo da média da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico nos três níveis educacionais estudados. Além disso, o país ficou na lanterna em dois níveis: entre os que não terminaram o ensino médio e aqueles que concluíram esta etapa.

Na União Europeia, a situação também é ruim, mas se tomada como um conjunto de países é menos grave que a dos Estados Unidos. Tratando-se de desigualdade, as nações europeias têm índices melhores que os EUA, mas socialmente insignificantes.

Desde a metade dos anos 1980, os 10% mais ricos de cada país no mundo capturam uma crescente parte da renda gerada pela economia, enquanto os 10% mais pobres estão perdendo terreno. No Japão, 100 milhões de pessoas se diziam de classe média, mas desde o fim da década de 1990 foi constatado aumento da desigualdade.

Na China, a desigualdade é semelhante à verificada na África do Sul, com os 10% mais ricos ficando com 60% da renda. A Índia acumula diversos bilionários, mas continua sendo o país com mais pobres no mundo. 

Não é uma coincidência o aumento da desigualdade no mundo. Ela é uma consequência das políticas do receituário neoliberal, palavra se tornou uma arma retórica, uma ideologia que venera o mercado, desregula economias ao redor do mundo e nos afasta das coisas que nos tornam humanos.

domingo, 3 de fevereiro de 2019

Tirania do capital

Antonio Carlos Lua

O posicionamento do Papa Francisco nas questões ligadas à democracia, justiça social, economia, meio ambiente e globalização tem gerado reações no mundo midiático que faz pouco esforço para compreender o que é que sustenta verdadeiramente o pontífice. 

Impõe-se a Francisco – primeiro Papa latino-americano, primeiro pontífice não europeu em mais de 1.200 anos e o primeiro Bispo de Roma jesuíta da história – o clichê pouco concentrado nos dogmas de fé, acusando ele de dedicar-se muito à denúncia dos males terrenos.

Aqueles com gostos pelos paradoxos definem Francisco como o melhor líder da esquerda, reforçando o discurso dos ultraconservadores que acham o Papa demasiadamente político.

Qualquer pessoa que analisar a postura do pontífice perceberá que os seus argumentos e suas as críticas têm um fio condutor. 

Não é absurdo o Papa dizer que a única força que agora parece governar o mundo é a busca do lucro, quando qualquer manifestação humana é submetida ao “deus dinheiro”. 

Hoje, o poder da riqueza foge de todas as regras, expandindo-se sem controle e determinando muitas injustiças. Bilhões de seres humanos são lançados na miséria pelo egoísmo de poucos. 

Todos sabem que o sistema econômico atual é uma gangrena que – mesmo maquiada – mais cedo ou mais tarde seu mau cheiro será sentido, com a fraude moral daqueles que ignoram os que estão em sofrimento.

Quando se produz a bancarrota de um banco, imediatamente aparecem somas escandalosas para salvá-lo, mas quando se produz esta bancarrota da humanidade não há nem uma milésima parte para salvar os cidadãos que sofrem. 

Temos um sistema cruel que escraviza, rouba, fere, ameaça e abate os pobres como gado até onde o dinheiro quer. 

O terrorismo de base que emana do controle do dinheiro nos ameaça a todo instante com a tirania semeado na sociedade que alimenta a exclusão, a opressão, a desigualdade e a violência econômica e social, gerando cada vez mais miséria numa espiral que parece não acabar nunca. 

Os governantes olham para aqueles que estão na miséria sem tocá-los, adotando um discurso repleto de eufemismos, mas sem fazer nada para resolver efetivamente os problemas sociais.

Esta atitude hipócrita expressa a ausência de compromisso com a sociedade. O desemprego é real, a violência é real, a corrupção é real, o esvaziamento da democracia é real. 

Com o ecossistema destruído pela exploração selvagem dos recursos naturais e com uma paz ameaçada em sua raiz pelos mercadores de armas cada vez mais destrutivas, temos povos culturalmente colonizados pelo pensamento único liberal e individualista.

Que mal há em dizer que a única origem desses males é a tirania do capital? 

A questão não é ser contra o livre mercado, contra o capitalismo, mas sim ser contra seus excessos, principalmente na América Latina, que continua sendo o “terceiro mundo”, como definia o saudoso jornalista Neiva Moreira, que por muito tempo cobriu o processo de desenvolvimento nos países latino-americanos como editor da revista “Cadernos do Terceiro Mundo”.

Ninguém vê com suspeita os empresários. O que não se admite é a especulação financeira, concorrência desleal, sonegação – estes sim comportamentos completamente indiferente ao destino da sociedade. 

Denunciar a raiz humana da crise ecológica e pedir para parar o crescimento baseado na espoliação do planeta não é querer voltar ao tempo das cavernas. 

Nenhuma visão cristã pode ser passiva ao ponto de não dizer que o mundo está à beira do suicídio e corre o risco de nele cair se não mudar decisivamente de rota e enfrentar os problemas ligados às mudanças climáticas, fruto do atual modelo de desenvolvimento.