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segunda-feira, 28 de outubro de 2019

Uma pedra irrevogável no caminho da poesia brasileira


Antonio Carlos Lua 

Poeta, contista e cronista de vários jornais brasileiros, Carlos Drummond de Andrade  – um dos mais influentes poetas do Século XX – foi o expoente da segunda geração do Modernismo brasileiro, traduzindo em sua obra a realidade social. 

Se a vocação para o jornalismo não pôde ser inteiramente cumprida, ela esteve sempre presente na trajetória de Drummond, desde a vida no interior de Minas Gerais até a notoriedade nos jornais ‘Correio Manhã’ e ‘Jornal do Brasil’, ambos do Rio de Janeiro.

Em 1945  aceitando convite do líder político de esquerda, Luís Carlos Prestes  ele assumiu a editoria do jornal do Partido Comunista Brasileiro (PCB), ‘Tribuna Popular’, do qual saiu contrariado com algumas imposições. 

A estreia de Drummond no jornalismo foi precoce. Ele era ainda estudante quando publicou seus primeiros textos em jornais de pequena circulação. Mais tarde, a imprensa diária lhe garantiria parte do sustento. Em 1921, no jornal ‘Diário de Minas’, expôs ideias renovadoras, com textos sobre o novo ideário literário e intelectual.

Dono de vasta obra literária, Drummond apoiou vários poetas brasileiros, incluindo João Cabral de Melo Neto, que o considerou a árvore, à sombra da qual muitos poetas cresceram no Brasil. 

A poesia de Drummond interage com diversos tipos de dicção, desde a mais próxima do coloquial (Alguma poesia, José, Brejo das almas), passando por uma linha mais social (A rosa do povo) e por outra mais hermética (Claro enigma, A vida passada a limpo e Lição de coisas), sem, no entanto, serem rigidamente separadas, como observam vários críticos em seus estudos sobre o poeta. 

Muitos de seus poemas ficaram populares, sobretudo alguns versos: “Quando nasci, um anjo torto; desses que vivem na sombra / disse: Vai Carlos! ser gauche na vida”;“E agora, José?”, “Tinha uma pedra no meio do caminho”.

Até hoje, sua poesia traz constantemente o choque com a modernidade e uma alteridade, que se reproduz em poemas amorosos e metalinguísticos. Boa parte da fortuna crítica de Drummond deve-se ao interesse das questões mais vivas, formuladas com tanta intensidade, que o poeta disseminou em seus discursos poéticos. 

A modernidade de Drummond não escamoteou os lados atrasados da sociedade brasileira. Ele soube tratá-los com imaginação e se relacionar criticamente com eles. 

No curso da Segunda Guerra, quando aflorou à consciência artística a necessidade de participação nos acontecimentos, Drummond não tomou o partido fácil de escolher entre os dois polos. Pelo contrário, fez do seu engajamento uma tensão permanente entre puro e impuro, poético e antipoético, entre centramento lírico e abertura do poema ao mundo.

São essas tensões que alimentam ‘A rosa do povo’, colocando sob suspeita a viabilidade de uma ou outra forma de expressão. Dessa maneira, Drummond experimentou as possibilidades da linguagem poética até o limite de suas forças expressivas. 

Drummond acompanhou e registrou os acontecimentos nacionais e internacionais mais marcantes de seu tempo. É o passado que ainda vive subjetivamente no presente, invadindo ou embaçando o olhar que se dirige ao mundo, tendo uma força de revelação inegável para melhor compreendermos o movimento modernista no Brasil. 

Mesmo sendo um poeta ligado ao seu passado patriarcal, assumiu posições socialistas lúcidas e sempre atentas às disparidades da sociedade brasileira. É difícil dizer que Drummond escreveu realmente algum poema de amor. Talvez tenha usado os temas amorosos para revelar a condição humana em sua finitude e efemeridade. 

Praticou a crítica literária e artística e o ensaísmo à sua maneira. Sua obra poética é uma indagação permanente sobre a poesia, o poema e a linguagem, sempre inserida no quadro histórico em que o poeta viveu. 

Com uma obra fervilhando de análises, Drummond problematizou os impasses do século XX e instalou-se como pedra irrevogável no meio do caminho da poesia brasileira. 

Numa entrevista concedida ao jornalista Pedro Bial o biógrafo de Drummond, José Maria Cançado, chegou a dizer que o poeta era imbiografável. De fato, a biografia, mesmo de um falecido, está sempre em movimento, em gestação, crescendo no imaginário alheio. Enquanto houver escrita e memória, as coisas que se foram voltarão sempre. 

No livro ‘O dossiê Drummond’ (Editora. Globo/1990), tem uma declaração curiosa de Carlos Drummond de Andrade feita numa entrevista concedida ao saudoso jornalista da Rede Globo, Geneton Moraes. 

Ao ser perguntado por Geneton sobre os versos de sua autoria “e como ficou chato ser moderno. Agora serei eterno!”, Drummond respondeu: “Isso, evidentemente, é uma brincadeira. Não tenho a menor pretensão de ser eterno. Pelo contrário: tenho a impressão de que daqui a 20 anos – e eu já estarei no Cemitério São João Batista – ninguém vai falar de mim, graças a Deus. O que quero é paz”. Seu pedido, obviamente, não foi atendido e ele continua vivo, vivíssimo. 

domingo, 6 de outubro de 2019

Vícios históricos


Antonio Carlos Lua

A Constituição Federal – lei fundamental suprema do país, que serve de parâmetro de validade a todas as demais espécies normativas, situando-se no topo do ordenamento jurídico – está completando 31 anos de existência, exercendo nesse período uma influência marcante em todos os ramos do Direito. 

A atual Carta Magna – que revogou antigas orientações constitucionais que regravam um Estado autoritário – foi promulgada simbolizando a liberdade democrática, com ênfase na soberania, cidadania, dignidade da pessoa humana, valores sociais do trabalho e da livre iniciativa e o pluralismo político. 

As mudanças que ocorreram ao longo desses 31 anos exigem, no entanto, uma avaliação. Assim, será possível saber se as cláusulas pétreas – fundamentais para o cidadão e para a sociedade – ainda continuam sendo o núcleo fundamental do nosso ordenamento jurídico, e se as perspectivas otimistas que existiam na época da Assembleia Nacional Constituinte foram, de fato, consolidadas. 

Nos deparamos com algumas conclusões desanimadoras. A atual Carta Magna foi a que mais sofreu alterações com as reformas de Estado, capitaneadas pela onda neoliberal, que se abateu inclusive sobre os direitos previdenciários, após mais de três décadas do início do processo de redemocratização do país. 

As garantias constitucionais não estão sendo respeitadas. A violência, a injustiça social e a corrupção se agravaram. O país ainda não conseguiu transformar direitos declarados em direitos efetivos. 

Quando a Constituição foi promulgada, acreditava-se que ela seria o suficiente para transformar a realidade do Brasil. Infelizmente, o país ainda carrega vícios históricos de injustiça social, de absoluta confusão entre o público e o privado. 

É lamentáveis verificar a falta de efetividade das leis brasileiras e admitir que ao longo desse anos o país foi palco de um verdadeiro festival de normas de todos os tipos, a maioria desfavoráveis aos cidadãos. 

São mais de 4,35 milhões de novas regras federais, estaduais e municipais editadas. Das 4,5 milhões de novas normas aprovadas nos últimos 25 anos, 155.954 mil são federais e – além das mais de 70 emendas – incluem duas leis delegadas, 80 leis complementares, 4.762 leis ordinárias, 1.162 medidas provisórias originárias, 5.491 reedições de medidas provisórias, 10.590 decretos federais e 133.793 normas complementares, o correspondente a uma média de 18,57 normas federais editadas por dia. 

A quantidade de regras editadas corresponde a 518 novas normas por dia, ou 776 por dia útil, gerando um emaranhado confuso de assuntos, trazendo instabilidade e insegurança jurídica para os cidadãos brasileiros, que ficam impossibilitados de entender conteúdo das leis, inclusive para saber seus direitos e obrigações. 

No âmbito estadual, foram editadas mais de 1.136.185 normas, sendo 259.889 leis complementares e ordinárias, 376.994 decretos e 499.301 normas complementares. Em média, foram editadas 135,28 normas por dia. Os municípios brasileiros são responsáveis pela edição de 3.061.526 normas, divididas em 542.745 leis complementares e ordinárias, 577.500 decretos, e 1.941.282 normas complementares.

Das 4,35 milhões normas criadas a partir da promulgação da atual Constituição Federal, mais de 275 mil se referem a tributos. Dessas novas normas tributárias, 29,5 mil são federais, 85,7 mil estaduais e 159,8 mil municipais. Chama a atenção a quantidade de taxas e impostos criados e modificados – na maioria dos casos, aumentados – no período.

Foram produzidas mais de 33 normas tributárias por dia, com a edição de 6,1 a cada hora útil. Ocorreram também 15 reformas parciais de natureza tributária, que resultaram na criação de inúmeros tributos, entre eles a Cofins, Cides, CIP, CSLL, entre outros.

Do total de normas editadas, 13,02% (566.847) permanecem em vigor. Atualmente, 20.082 normas tributárias estão em vigor. Cada empresa cumpre, em média, 3.507 normas tributárias. Para realizar o acompanhamento das modificações da legislação, as  empresas gastam cerca de R$ 45 bilhões por ano. Só para o ICMS, existem no país 27 legislações diferentes. 

No Brasil, para ser considerado um especialista em impostos o cidadão deve conhecer pelo menos 30.384 artigos, 91.764 parágrafos e 293.408 incisos.  Nunca o país produziu tantas leis quanto nas últimas duas décadas, muitas delas destinadas à lata de lixo da História por inconstitucionalidade ou irrelevância. 

O fracasso das regras absurdas não inibe a fúria legiferante do Poder Legislativo. Atualmente tramitam no Senado mais de 700 projetos de lei e, na Câmara Federal, mais de quatro mil proposições para criação de normas.

Foram mais de 73 emendas e mais seis emendas de revisão desde a sua promulgação. Para se ter uma ideia, a Carta Magna dos Estados Unidos, que tem 34 artigos e 225 anos, recebeu até agora apenas 27 emendas. 

Diante de tantas e tão extravagantes normatizações resultantes da compulsão na produção de regras legais, as leis essenciais também acabam negligenciadas. Falta senso de objetividade aos legisladores brasileiros, que desconhecem o ensinamento do historiador romano Cícero, para quem “o mais corrupto dos Estados tem o maior número de leis”.