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quinta-feira, 14 de dezembro de 2023

Efeitos potenciais da Inteligência Artificial

ANTONIO CARLOS LUA

A Inteligência artificial está levando a comunidade jurídica a repensar a atual concepção do Direito, inclusive em suas áreas mais clássicas. Como a ciência jurídica – pela sua natureza – não é um sistema estático, a Inteligência Artificial abre cada vez mais espaço no campo do Direito, levando magistrados, advogados e outros profissionais da área jurídica a se debruçarem sobre esta nova realidade, se colocando como parte imprescindível no processo de evolução tecnológica. 

Com múltiplas aplicações – seja buscando dados, sugerindo decisões, apontando eventuais riscos, reduzindo possíveis erros, indicando correlações e incongruências – a Inteligência Artificial vem se tornando protagonista no meio jurídico, de modo cada vez mais frequente, em vários contextos.

No âmbito do Poder Judiciário, a primeira norma nacional específica sobre o uso da Inteligência Artificial foi publicada pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) na Resolução nº 332, constituída por 31 artigos, distribuídos em 10 capítulos. 

Vários tribunais brasileiros se utilizam hoje dos recursos da Inteligência Artificial, entre eles o Supremo Tribunal Federal, que tem os robôs “Victor” – utilizado para análise de temas de repercussão geral na triagem de recursos recebidos – “Rafa”, desenvolvido para integrar a Agenda 2030 da ONU ao STF, e o “VitórIA” – plataforma que amplia o conhecimento sobre o perfil dos processos recebidos naquela Corte, permitindo o tratamento conjunto de temas repetidos ou similares. 

A movimentação do Judiciário em torno da Inteligência Artificial – termo cunhado pelo cientista da computação John McCarthy – vem garantindo, indiscutivelmente, mais eficiência e economicidade ao trabalho de várias Cortes de Justiça, expressando uma crescente maturidade institucional quanto ao uso de novas tecnologias para apoiar o trabalho dos magistrados, otimizando tempo e tornando os procedimentos mais céleres e eficientes.

Indiscutivelmente, o uso da Inteligência Artificial no âmbito da Justiça está ajudando os tribunais na superação de muitos desafios de ordem tecnológica, a partir do trabalho colaborativo dedicado às questões complexas e estratégicas, com vistas a garantir julgamentos com mais segurança jurídica, rapidez e consistência.

Numa rápida reminiscência histórica, é importante ressaltar que a primeira aparição sobre seres artificiais dotados de inteligência remonta a Galateia e Pigmalião, na história lendária contada pelo romano Ovídio, quando a inteligência artificial ganhava corpo ficcional nos contos mitológicos. Entre as sutilezas e irrealidades da época, o homem demonstrava que compreendia criticamente melhor o seu mundo, projetando melhorias.

Naquela época, as ideias ganhavam espaços imaginários nas mentes dos místicos que – com certa dose de alquimia – relatavam a possibilidade de colocar a mente na matéria. Foi exatamente nessa linha de plano imaginário que, no Século XIX, ideias sobre homens artificiais e máquinas pensantes foram desenvolvidas em ficção, a exemplo de “Frankenstein”, de Mary Shelley, ou em especulações como “Darwin entre as máquinas”, de Samuel Butler. 

Hoje, constatamos que foi com essas ideias que o legado imaginário de Inteligência Artificial não parou mais de crescer, tornando-se uma realidade nos dias atuais, trazendo um desafio adicional à conquista do conhecimento, fato que em tempos remotos se desenrolou em termos mitológicos, quando Prometeus roubou o fogo da sabedoria da posse exclusiva dos deuses do Olimpo. Como castigo, Zeus condenou Prometeus a viver acorrentado a uma rocha por toda a eternidade, enquanto uma águia comia todos dias o seu fígado, que se regenerava no dia seguinte. 

Embora acorrentado, Prometeus conseguiu passar o conhecimento aos humanos e não prestou obediência a Zeus, como explica no famoso poema “Prometheus” (1774) o escritor e estadista alemão do Sacro Império Romano-Germânico com incursões pelo campo da ciência natural, Wolfgang von Goethe.

O passo que estamos dando rumo ao desenvolvimento com a utilização dos recursos da Inteligência Artificial é, sem sombra de dúvida, muito importante, mas, porém, a humanidade – no intuito de amplificar os frutos de abundância fáustica – não pode passar, jamais, o bastão do fogo prometeico para as máquinas inteligentes, perdendo o controle de sua posição privilegiada de cérebro do Planeta.

domingo, 26 de novembro de 2023

Jornalismo, justiça e cidadania


 
ANTONIO CARLOS LUA

Temos assistido nestes finais de tempo um deboche geral aos princípios formadores da lei, gerando o enfraquecimento da cidadania e a distorção da própria moral, com a incoerente defesa de conceitos que marcam negativamente a democracia, criando uma frustração que compromete os prognósticos de um futuro saudável.

Assim, não podemos hesitar em dizer que o reduto derradeiro de todas as expectativas de mudanças no campo da cidadania ainda está no Jornalismo, que tem a missão de defender e mostrar a verdade de forma independente e altiva, não se curvando diante dos arbítrios que violam a democracia, em assustadores acontecimentos que tonificam e robustecem os noticiários.

Vigilante, o Jornalismo tem a força de fazer imperar a justiça, vendo a lei como o único parâmetro saudável de convivência social, funcionando com autonomia diante dos poderosos e infratores que tentam infringir a ordem legal e as diretrizes constitucionais em vigência no país.

Esta deve ser a tônica do comportamento de todos os profissionais de imprensa como arautos primeiros da verdade a ser levada no seu testamento cívico aos cidadãos, não prescindindo jamais do poder simbólico do Jornalismo de agendar, enquadrar temas e fomentar o debate na sociedade.

Onde? Quem? Quando? Por quê? Como? É comum pensar que a atribuição do Jornalista é apenas responder a essas perguntas, embora o seu potencial não seja apenas o de informar sobre os fatos, mas também o de ter uma prática horizontalizada, democrática em constante diálogo com a sociedade, exercendo o seu papel de decodificar a informação, para provocar a reflexão e o debate.

Cabe ao Jornalista ter uma relação dialógica com o leitor e, dessa forma, levá-lo a esclarecer os fatos, para que ele possa elaborar a sua própria reflexão como testemunha do seu tempo, dando voz a grupos marginalizados e subrepresentados na sociedade.

Jornalismo de verdade se faz optando pela informação de qualidade e assumindo efetivamente a agenda do cidadão, separando a notícia do lixo declaratório. O centro do debate tem que ser sempre o cidadão, permitindo à sociedade uma análise dos eventuais descompassos nas questões sociais, políticas, econômicas e culturais.

Novos paradigmas do Jornalismo

ANTONIO CARLOS LUA

Temos a impressão de que os dias estão cada vez mais curtos. As tradicionais 24 horas diárias parecem já não ter os mesmos 1.440 minutos de outrora. Essa mudança na percepção da passagem do tempo está relacionada ao desenvolvimento tecnológico que provocou o que chamamos de “compressão do tempo-espaço”.

Ela vem provocando profundas transformações na atuação dos jornalistas numa sociedade, onde a informação é o ponto central. É legítimo afirmar que os novos paradigmas da comunicação estão obrigando os jornalistas a assumirem um novo papel numa sociedade transitória.

Se era aceitável em outras épocas descobrir sobre um fato no dia seguinte, hoje essa limitação é inquietante. O público quer saber tudo e rapidamente. Hoje a notícia jornalística é compreendida como construção social da realidade.

Esse paradigma tem como pressuposto que a notícia – à medida que mostra o fato – evidencia importantes verdades, construindo, em tempo real, o processo de transformação da realidade social.

Nesse contexto, em meio à enxurrada de notícias falsas, o valor agregado de um jornalista surgirá de sua credibilidade. O jornalista precisa construir confiança em relação ao seu trabalho, ouvindo e interagindo diretamente com seu público, adotando transparência.

Há mudanças importantes ocorrendo na produção da notícia, exigindo maior agilidade e novas habilidades dos jornalistas. Novos meios, novos contextos de produção, novas linguagens estão alterando acentuadamente o fazer jornalístico. Como resultado desse desenvolvimento tecnológico, as notícias se tornam um produto superabundante, barato e instantâneo.

O Século XXI – o terceiro milênio – é marcado por grandes transformações digitais, muitas delas no campo profissional do Jornalismo. Quem atua na área de comunicação sabe que esse fenômeno está mudando hábitos sociais, com o incremento de novas tecnologias.

Assim, a imprensa que definiu as democracias ocidentais no Século XX, enfrenta, agora, em pleno Século XXI, o desafio de adaptar-se a emergente sociedade digital, para que o Jornalismo não só sobreviva, mas avance, prospere e triunfe.

A constatação da mudança na concepção geral da atividade jornalística na era digital tem como corolário a necessidade de revisar as rotinas e normas vigentes para incorporar o conjunto de atores na escala de valores da atividade.

O julgamento da noticiabilidade de um dado, fato ou evento tem que ser determinado por um conjunto de princípios, entre os quais o compromisso com o fortalecimento da democracia.

Na atual conjuntura brasileira, o Jornalismo de Dados e multiplataforma, o Jornalismo Cidadão, o Jornalismo Independente e o Jornalismo Alternativo têm sido apresentados como soluções, tanto para o mercado jornalístico, quanto para a esfera pública dos direitos à informação e à livre expressão.

Cidadania vilipendiada

ANTONIO CARLOS LUA

A face cruel da violência no campo resgata uma memória que a história oficial não conta. Em 13 de maio de 1888 – há 135 anos – o Senado do Império do Brasil aprovava a Lei Áurea, abolindo a escravidão. Naquele momento, não era apenas a liberdade dos escravos que estava em jogo. Havia outro tema pertinente no centro do debate: a reforma agrária.

Na época, a discussão sobre a distribuição de terras nacionais havia sido proposta pelo abolicionista André Rebouças, engenheiro negro de grande prestígio. A intenção dele era criar um imposto sobre fazendas improdutivas e distribuir as terras para ex-escravos. O político Joaquim Nabuco – também abolicionista – apoiou a ideia. Já os fazendeiros, republicanos – e até mesmo os abolicionistas mais moderados – ficaram em polvorosa.

Como o movimento republicano fez um acordo com os latifundiários para que não houvesse mudança na propriedade rural, a aprovação da Lei Áurea acabou não trazendo, concretamente, nenhuma alternativa para os escravos libertados se inserirem no novo Brasil livre. Com isso, a ideia de reforma agrária não prosperou, uma vez que o movimento republicano e os latifundiários resolveram trazer imigrantes para trabalharem em fazendas, dispensando a mão de obra dos negros.

Assim, os abolicionistas Joaquim Nabuco e André Rebouças acabaram apoiando a monarquia até o fim. Foi então que no livro "Minha Formação" (1900) Joaquim Nabuco passa a renegar totalmente sua juventude abolicionista e faz uma declaração monarquista que constitui uma das frases mais infames da história da política brasileira.

Ele disse que tinha convicção de que “a raça negra por um plebiscito sincero e verdadeiro teria desistido de sua liberdade para poupar o menor desgosto aos que se interessavam por ela, e que no fundo, quando ela pensa na madrugada de 15 de novembro (data da proclamação da República), lamenta ainda um pouco o seu 13 de maio”. Com a declaração, Joaquim Nabuco mostrou claramente que a Reforma agrária nunca esteve na pauta da maioria dos abolicionistas.

O certo é que a falta de Reforma Agrária acelera até hoje o processo de pobreza absoluta e a migração da população rural pobre para as áreas urbanas. O Brasil é um dos únicos grandes países agroexportadores que nunca fez reforma agrária, o que caracteriza um fracasso assombroso em todos os sentidos.

No país, os agronegociantes seguem invadindo de forma obsessiva áreas de plantação com uma prática agrícola voraz. As extensas plantações de soja contaminam com agrotóxicos as nascentes dos córregos e dos rios, além de serem também responsáveis pelo confinamento dos pequenos agricultores, que ficam “encurralados” pelas monoculturas. Os agronegociantes são os pivôs da discórdia e seguem secando rios, lagos e lagoas pelo uso intensivo e pelo enorme desperdício por evaporação da água que é captada para plantar grandes monoculturas de soja, de eucalipto, de milho.

Por agronegócio, entende-se a produção em larga escala, feita em grandes extensões de terra – latifúndio – com sofisticada tecnologia em monopólio de empresas transnacionais, uso indiscriminado de agrotóxico e, quase sempre, com mão de obra em condições análogas à escravidão.

O campo é extenso e se não fosse a crueldade dos grandes latifundiários com seus aparatos de guerra para ameaçar, torturar e despejar trabalhadores rurais, poderia ser cenário de vida com qualidade e fartura para todos, com as terras e as águas sendo utilizadas com justiça agrária e responsabilidade socioambiental. Resta-nos finalizar este triste capítulo da nossa História. Afinal, a terra é sagrada e é através dela que podemos fazer uma verdadeira mudança no país.

José de Alencar e suas contradições

ANTONIO CARLOS LUA

A escravidão deixou cicatrizes profundas em nossa história. Mesmo que a Lei do Ventre Livre (antecessora da Áurea) tenha determinada, em 28 de setembro de 1871, que as mulheres escravizadas dariam à luz apenas bebês livres – não sendo permitido o nascimento de nenhum escravizado em solo brasileiro – as bases da escravidão permaneceram, tendo como um dos seus principais defensores o consagrado escritor cearense, José de Alencar.

O posicionamento de José de Alencar a favor da escravidão pode ser resumido em uma série de cartas escritas entre os anos de 1867 e 1868, endereçadas ao Imperador D. Pedro II, sob o título de ‘Cartas de Erasmo de Roterdã’, nas quais o escritor cearense mostra sua retórica racista, defendendo a manutenção da escravidão no Brasil.

Na época, José de Alencar era então deputado no Rio de Janeiro, eleito pelo Ceará, e tentava convencer o imperador a abandonar a ideia de abolir a escravatura. Naquele período, o Imperador – que fazia grande pressão pelo fim do comércio humano – ameaçava até desistir do trono se os parlamentares não votassem pelo fim dos cativeiros.

Nas cartas, José de Alencar valia-se das técnicas da retórica clássica relacionada às conquistas de Roma Antiga à moderna ideologia imperialista. Depois que a liberdade dos escravos se tornou uma conquista, a série de cartas do desapareceu e não entrou nas obras completas do escritor cearense, publicadas em 1959. Até serem redescobertas, em 2008, elas ficaram desaparecidas por 140 anos.

José de Alencar afirmava que “se a escravidão não fosse inventada, a marcha da humanidade seria impossível". Para ele, escravidão fazia parte da tradição brasileira e era importante para a identidade nacional. Com essa ideia, o escritor dizia que o país não deveria ceder às pressões abolicionistas da França e da Inglaterra, cuja influência jamais poderia salvar um país de costumes bárbaros, expondo uma faceta malograda da sua personalidade.

Na verdade, o que o autor do açucarado romance ‘Iracema’ postulava era a política de manutenção do trabalho escravo defendida pelos chamados saquaremas, em oposição à política que o combatia, em tese defendida pelos conservadores, aliados do trono e da realeza. 

O posicionamento de José de Alencar em relação à escravidão é, sintomaticamente, um petardo na consciência das novas gerações que só conhecem o escritor consagrado pelo cânone do romantismo, através de seus livros obrigatórios nas aulas de literatura. 

Ele era brilhante como escritor, medíocre como político e insensível como defensor do comércio de seres humanos. Foi ao mesmo tempo, criador e criatura de sua própria trajetória pessoal. 

A escravidão era intrínseca na história de vida de sua família. O pai do escritor, o famoso senador Martiniano de Alencar, em 3 de outubro de 1853 – há seis dias do nascimento de José do Patrocínio, considerado, o mais ferrenho tribuno da abolição – levaria a um cartório do centro do Rio de Janeiro a longa lista de seus filhos naturais, para reconhecê-los, por escritura pública. Como o exemplo vem de casa, a escravidão e o poder corriam no sangue do romancista.

José de Alencar pertence hoje ao passado. Se não fosse isso, não faria falta alguma se suas Cartas a favor da escravidão continuassem no estado de letargia a que permaneceram todo esse tempo. 

Allende não se rende!!


ANTONIO CARLOS LUA

Há 50 anos – após mil dias de governo – morria, em 11 de setembro de 1973, o ex-presidente do Chile, Salvador Allende, durante um golpe de Estado liderado pelo então general Augusto Pinochet, comandante-chefe do Exército chileno.

Com o Palácio Presidencial ‘La Moneda’ sendo bombardeado, Allende pediu um salvo conduto aos militares para que seus assessores mais próximos e sua filha pudessem deixar o local. Quando os militares lhe ofereceram um avião para que saísse do país acompanhado pela família, Allende recusou, dizendo que só sairia morto do Palácio.

“Não serei um governante derrubado por golpistas! Deste lugar saio vivo como presidente constitucional do Chile, ou derrotado, mas morto! Meu sacrifício não será em vão. Tenho a certeza que, pelo menos, será uma lição moral que castigará a deslealdade, a covardia e a traição. Não vou renunciar! Colocado numa encruzilhada histórica, pagarei com a vida a lealdade ao povo. Saibam que, antes do que se pensa, de novo se abrirão as grandes alamedas por onde passará o homem livre, para construir uma sociedade melhor”. Minutos depois, ouviu-se o seu grito estridente: “Allende não se rende!!”

Este trecho do último discurso do presidente Salvador Allende, em plena resistência no Palácio de La Moneda, revela o compromisso inabalável de um político com o povo que o elegeu, com a democracia, com a liberdade e com a construção de uma sociedade mais justa e igualitária.

Em vez do exílio junto com sua família, que lhe foi oferecido pelos golpistas, Salvador Allende optou pelo sacrifício da própria vida. E resistiu como um bravo, de armas na mão, junto com um grupo reduzido de combatentes que lutaram até o fim.

Allende – que pagou com a vida a defesa de princípios que lhe eram caros – cumpriu o que disse horas antes na Rádio Magallane, quando afirmou que, pelo seu compromisso com o Chile, não seria usado como ferramenta de propaganda daqueles que classificou como "traidores".

Homem político forjado nas lutas cotidianas, Allende visava conquistar espaços para uma política popular, num sistema democrático e representativo, em que as políticas de aliança para favorecer a esquerda fossem factíveis. Ele nunca abandonou a crítica ao capitalismo e o desejo de socialismo.

Médico, dedicou toda a vida ao povo chileno, sendo um símbolo de luta social no país. Enfrentou a resistência da burguesia chilena e a perseguição política dos Estados Unidos. Por sinal, partiu do então presidente norte-americano, Richard Nixon, a ordem para derrubar Allende, financiando o movimento de conspiração contra o seu governo no Chile e dando a Agência de inteligência Norte-americana (CIA), a ordem para sabotar as reformas propostas pelo governo chileno.

Após as versões distorcidas de que Allende poderia ter sido assassinado pelas Forças Armadas do Chile, a Justiça chileno autorizou, em 2011, a exumação e autópsia dos seus restos mortais, cujo laudo concluiu que ele se matou com um rifle AK-47, dada a ele como presente pelo seu amigo e então presidente de Cuba, Fidel Castro, trazendo uma placa dourada com a inscrição: "Ao meu bom amigo Salvador Allende, que por diversos meios tenta atingir os mesmos objetivos que defendemos”.

A autorização do ex-presidente dos Estados Unidos, Bill Clinton, para o desarquivamento dos documentos que tratavam sobre o Golpe Militar no Chile, em 1999 – ano em que o ditador Augusto Pinochet estava preso, em Londres, a pedido da Justiça espanhola – mostrou que logo após a eleição de Allende, em 1970, o ex-presidente Richard Nixon autorizou o então diretor da CIA, Richard Helms, a minar o governo chileno por temer que este se tornasse uma nova Cuba. Na época, Kissinger era o conselheiro de Segurança Nacional dos Estados Unidos.

O desarquivamento autorizado por Bill Clinton desenterrou detalhes sobre as operações secretas da Agência de Inteligência Norte-americana no Chile entre os anos de 1962 e 1975, tanto para impedir que Allende fosse eleito, como também para desestabilizar seu governo e, finalmente, para apoiar a ditadura de Pinochet, após o golpe sangrento do dia 11 de setembro de 1973. 

Práticas manipuladoras da pós-verdade


ANTONIO CARLOS LUA

Estamos cruzando as portas de um novo tipo de civilização – a digital – com as modernas tecnologias levando à conectividade de tudo, em registros digitais cuja integridade é garantida pelo uso de complexas criptografias. Os novos modos de produção estão tendo repercussões em cascata nas esferas da sociedade, na política e na cultura.

Diante das mudanças, confrontam-se duas narrativas. Uma é catastrófica com o fim do trabalho humano. A outra – triunfalista – com as máquinas fazendo o esforço no nosso lugar.

Não há dúvidas de que a civilização digital tem efeitos positivos em termos de prosperidade material, de oportunidades de escolha, de acesso ao conhecimento, interação e trocas em escala global.

Hoje, basta um clique para ter acesso a todos os tipos de informação, inclusive aquelas sobre o que os políticos estão fazendo, em todos os níveis de governos.

Mas é preciso separar o joio do trigo. Existe o outro lado da moeda, que é a inundação das notícias falsas – as chamadas Fake News – que funcionam como câmaras de eco dos fascistas online, com os discursos de ódio racial, étnico, religioso e de práticas manipuladoras da pós-verdade.

Existem três tipos de Fake News. O primeiro é o boato espontâneo, que nasce do nada e se alastra como fogo. O segundo tem a intenção de fazer dinheiro. É quando a manchete chama atenção e a pessoa desatenta clica e chega a um site cheio de publicidade. O terceiro tem objetivo político e ocorre quando várias notícias falsas surgem ao mesmo tempo colocando histórias no ar, sem que se consiga descobrir e mapear o seu percurso.

O mundo está, convenhamos, perdido no que se refere a relação entre tecnologia e política. Em cada manifestação de políticos nas redes sociais surgem mais dúvidas do que certezas.

Há uma verdadeira desinformação, através de uma miríade de posts ‘ad hoc’ (com um fim específico) para influenciar a orientação política de milhões e milhões de usuários das redes sociais.

Hoje, os humanos – e não os robôs – são os principais responsáveis pela disseminação de informações enganosas, que se espalham mais rapidamente do que as notícias reais por uma margem substancial, embora se destruam também mais amplamente do que a verdade em todas as categorias de informação.

As informações falsas, com histórias inexatas e notícias imprecisas, são mais replicadas do que as histórias reais, verdadeiras.

A informação duvidosa, distorcida e quase inverossímil deve ser criminalizada, não sendo plausível os países conviverem com legislações que protegem ações obscuras alegando defender a sociedade.

Para citar um único exemplo, devemos relembrar as denúncias de Edward Snowden, ex-administrador de sistemas da CIA e ex-contratado da NSA, que trouxe a público documentos ultrassecretos que deixavam clara a vigilância norte-americana a cidadãos comuns, num escândalo que fez alterar legislações mundo afora.

Seguindo a espetacularização que se tornou norma em nossa sociedade, as autoridades deveriam declarar guerra às chamadas ‘Fake News’, eliminando as inverdades, os exageros e as distorções.

Empiricamente, é muito fácil constatar que a democracia brasileira convive hoje com grandes mentiras, que destilam o ódio, o racismo, a homofobia, a misoginia e o fundamentalismo religioso, sem os elementos constitutivos daquilo que é verdadeiro.

É também fácil perceber que quase todas as guerras modernas começaram a partir de mentiras, de notícias falsas. No caso dos Estados Unidos, praticamente nenhuma guerra que o país realizou deixou de se valer de uma notícia falsa como ponto de partida.

Basta lembramos as supostas armas de destruição em massa do Iraque, nunca encontradas. A essa notícia falsa devemos a morte de 400 mil crianças e um embargo que impediu a chegada de remédios no Iraque.

Um imperativo humanitário


ANTONIO CARLOS LUA

Uma ameaça intolerável paira hoje sobre a paz mundial. O mundo inteiro está se desintegrando numa orgia de violência e barbaridades com massacres em massa, genocídios e terríveis limpezas étnicas e religiosas, descumprindo-se acordos diplomáticos e regramentos de Direito Internacional. Foi-se por terra a missão de conter a violência e de promover regras estáveis intercontinentais para que as nações pudessem se dedicar às artes da paz, com o crescimento econômico, a valorização da cultura, das liberdades políticas e a promoção dos direitos individuais e coletivos. Essa grande arquitetura institucional internacional está, infelizmente, ruindo.

Os valores supremos de liberdade e democracia estão violentamente ameaçados de cair numa nova idade das trevas, com guerras cada vez mais cruéis e sangrentas num nível de violência sem precedentes, tendo como principais vítimas desta nova Idade Média os mais fracos, ou seja, as populações dos países pobres e emergentes. Em contraposição à paz, os países em todo o planeta se armaram como nunca nas últimas décadas, mostrando que tudo pode acontecer quando existe a ameaça de uso de armas nucleares em conflitos de alta intensidade entre países em várias regiões do mundo.

Essa realidade bélica é um dos fantasmas que ameaça a paz e o sistema internacional com o imenso arsenal de guerra que hoje funciona como uma bomba relógio pronta para explodir, trazendo implicações devastadoras para toda a humanidade, desconsiderando as obrigações de tratados internacionais. Enquanto existirem armas nucleares, a possibilidade de seu uso não pode ser descartado com o arsenal nuclear em muitos países ameaçando a humanidade. Hoje existem cerca de 13.000 arsenais nucleares entre táticos e estratégicos, principalmente nos Estados Unidos, com 5.428 armas nucleares, e na Rússia com 5.977.

O restante está presente na China, com 350 armas nucleares, Grã-Bretanha, com 225, França com 290, Índia com 160, Paquistão com 165, Israel com 90 e Coreia do Norte com 20 armas nucleares. A Rússia tem 1.912 ogivas táticas ou de teatro, não instaladas e presentes em depósitos. Do lado norte-americano são cerca de 200, das quais metade em depósitos no exterior.

Outras 100 armas nucleares estão em bases europeias na Itália, Bélgica, Holanda, Alemanha e Turquia. A diferença numérica das ogivas táticas deve-se às escolhas ligadas às diferentes posições geopolíticas das duas superpotências – ou seja – a Rússia e os Estados Unidos. Desde a época da Guerra Fria existe a chamada cláusula do no ‘first-use’, que é o compromisso de não usar a arma nuclear. Mas, no entanto, sabemos que os arrogantes donos dessas armas podem usá-las quando quiserem. Segundo uma estimativa da Universidade de Princeton, dos Estados Unidos, uma guerra nuclear global em poucas horas levaria a 90 milhões de mortes.

O quadro é apocalíptico. Os efeitos de Chernobyl e Fukushima nos dão uma ideia das consequências de uma guerra nuclear. Uma realidade que se torna terrivelmente concreta é que a guerra que se desenvolve agora no coração da Europa é uma tragédia e não pode cruzar o limiar nuclear se constituindo uma catástrofe para a humanidade.

Todos os países que detêm armas nucleares estão aumentando ou potencializando seus arsenais. Cerca de 9.440 ogivas das 12.705 existentes no início de 2022 estão em condições de uso potencial. Mais de 3.732 delas estão acopladas a mísseis e aeronaves. Cerca de 2 mil – quase todas pertencentes à Rússia ou aos EUA – são mantidas em estado de alerta operacional máximo.

Rússia e Estados Unidos possuem conjuntamente mais de 90% de todas as ogivas, mas a China está no meio de uma expansão substancial de seu arsenal nuclear que, de acordo com algumas imagens de satélite, inclui a construção de mais de 300 novos silos para mísseis.Desta forma, se reforça o letal paradigma do ‘dominus’ – senhor e dono – contrapondo a alternativa de fraternidade proposta pelo Papa Francisco em sua encíclica ‘Fratelli Tutti’, inspirado no melhor homem do Ocidente, chamado Francisco de Assis.

Essa obsessão fez com que ocorressem duas grandes guerras no Século XX com 100 milhões de vítimas. Hoje, quando exaspera a arrogância dos que defendem a guerra, constatamos que há suficientes loucos no Pentágono e na Rússia com a razão tornada irracional, enlouquecida e suicida, cavando a nossa própria sepultura.

sexta-feira, 24 de novembro de 2023

Memória da imprensa no Brasil


ANTONIO CARLOS LUA

O jornal é utilizado há mais de dois mil anos, tendo o seu início com o imperador romano Júlio César, que criou o “Acta Diurna”, onde eram divulgadas as conquistas militares. Os textos do jornal eram escritos em tábuas e fixadas nos muros das principais localidades do Império. 

Na China, no final da Dinastia Han, circulava o jornal ‘Tipao’, que reunia as principais informações sobre o Governo. Entre 713 e 714 (depois de Cristo), foi publicado o “Kaiyuan Za Bao”, jornal da Corte Chinesa cuja escrita era realizada na seda de forma totalmente manual. 

Contudo, somente com a invenção da Prensa de Gutenberg, no Século XV, foi possível o surgimento dos jornais no formato que conhecemos hoje. Mesmo com diversos relatos de atividades jornalísticas e de imprensa anteriores à prensa, é só a partir dela que se torna possível a produção em massa dos jornais impressos. 

No Brasil, a história do jornal teve início em 13 de maio de 1808 na cidade do Rio de Janeiro, com a chegada da família real portuguesa, que trouxe junto uma imprensa que ganhou o nome de ‘Impressão Régia’, hoje conhecida como Imprensa Nacional. 

Em 10 de setembro de 1808 surgiu o ‘Gazeta do Rio de Janeiro’, órgão oficial de comunicação do governo português.  Com o jornal, a família real pretendia moldar a opinião pública a seu favor. O veículo divulgava basicamente comunicados oficiais e publicações sobre decisões do Governo. Apesar de publicar também notícias sobre a política internacional, era considerado um veículo parcial, devido ao seu aspecto extremamente oficial.

Foi também em 1808 que Hipólito José da Costa, que se encontrava exilado em Londres, lançou o “Correio Braziliense”, no dia 1º de junho. Produzido em Londres o jornal tinha como objetivo se consolidar como voz da oposição, criticando, entre outras questões, os problemas administrativos.

Mesmo se declarando conservador, o “Correio Braziliense”, por conta de seu conteúdo jornalístico, foi proibido no Brasil. Na época, a ‘Imprensa Régia’ também sofria uma certa censura prévia, tendo todas as suas publicações analisadas por uma comissão. Os assuntos divulgados contra o governo eram vetados.

Em 28 de agosto de 1821 ocorreu a extinção à censura prévia por conta da deliberação das Cortes Constitucionais de Lisboa. Em 1824, com a Promulgação da primeira Constituição do Brasil, surgia a total Liberdade de Imprensa no Brasil.

No entanto, a censura voltaria a atacar a Imprensa muitos séculos depois com a Ditadura Militar de 1964, em especial com a promulgação do Ato Institucional AI-5, de 1968, que estabeleceu censura prévia e perseguiu aos veículos de imprensa contrários ao Governo Militar. 

A censura da Ditadura Militar caiu com a promulgação da Constituição Federal de 1988 que mais uma vez definia a total Liberdade de Imprensa no Brasil, surgindo então a evolução tecnológica, em especial da Internet e as redes sociais, que obrigaram os jornais a se adaptar à nova realidade.

Com o tempo, das pedras e tábuas o jornal foi para os papéis de seda escritos à mão, papéis impressos em grande quantidade. Atualmente, eles se transformaram também em jornais online. Ou seja, o jornal continuará sempre vivo não importando a forma como será a sua circulação na sociedade.

Ele continuará sempre presente em nossa rotina, trazendo informações e dados essenciais da realidade em que vivemos, sendo fontes essenciais de debate e questionamento políticos, sociais, econômicos, culturais, buscando, sistematicamente, auxiliar na evolução da sociedade, reverenciando a cada momento histórico as lutas vencidas e aquelas ainda por vencer.

segunda-feira, 9 de outubro de 2023

Não há heróis numa guerra que mata crianças


Antonio Carlos Lua

O mundo assiste, atônito, o acirramento do conflito de grande proporção entre os israelenses e o grupo extremista islâmico Hamas, que nada mais é do que uma comprovada invenção política de Israel por mãos do ex-primeiro-ministro do país, Yitzhak Rabin, para desacreditar e matar, em 2004, o principal inimigo do Estado judeu e líder laico da Organização para a Libertação da Palestina (OLP), Yasser Arafat.

Numa conversa entre o Rei Hussein, da Jordânia, e embaixadores judeus, Yitzhak Rabin admitiu o desastroso acordo, afirmando que o "apoio ao Hamas foi o erro mais grave cometido por Israel na sua história". Poucos meses depois da declaração, Yitzhak Rabin foi assassinado por um extremista judeu.

Já o líder palestino, Yasser Arafat, foi envenenado em 11 de novembro de 2004 com polônio radiativo, conforme testes feitos em amostras retiradas do seu próprio túmulo na cidade palestina de Ramallah, onde seu mausoléu foi aberto. Antes de morrer, Arafat assinou os acordos interinos de paz com Israel, em Oslo, em 1993, e liderou uma revolta posterior, após o fracasso das negociações, em 2000, sobre um acordo definitivo.

Para mostrar os escorregadios backgrounds dessa guerra que, infelizmente, não dá sinais de acabar, é importante ressaltar que os conflitos entre os Israelenses e os palestinos começaram a se desenhar após a Segunda Guerra Mundial, quando a Organização das Nações Unidas (ONU) cedeu uma porção da terra para o povo judeu, antes habitada por árabes cuja maioria protestou, veementemente, contra o fato de a nação israelita ocupar aquela terra. 

O genocídio sofrido pelos judeus na Europa, durante a Segunda Guerra Mundial, chocou o mundo e estabeleceu as condições políticas para que um Estado judeu pudesse ser criado na Palestina.  Autoridade colonial da região na época, a Inglaterra abriu mão de seu domínio e entregou a disputa de palestinos e judeus para a ONU. 

Havia nessa divisão uma grande contradição, pois os judeus, que correspondiam a 30% da população, ficariam com uma parcela maior do território. Os palestinos, por sua vez, correspondiam a 70% da população e ficariam com uma parcela menor, num território que concentrava as terras menos férteis e com acesso mais limitado à água potável.

Dessa forma, a proposta foi aceita pelos judeus, mas foi rejeitada pelos árabes. Mesmo assim, ela foi aprovada em Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas no dia 29 de novembro de 1947. No ano seguinte, os britânicos se retiraram da Palestina e, em 14 de maio de 1948, foi proclamada a fundação do Estado de Israel.

Revoltadas, as nações árabes, inimigas de Israel, incluindo a Jordânia, Síria, Arábia Saudita, Iraque e o Egito, resolveram se unir para atacar Israel, numa tentativa de exterminá-lo, mas foram derrotadas, aumentando ainda mais a hostilidade entre Israel e seus vizinhos árabes. 

Os conflitos entre Israel e a Palestina, portanto, são travados desde a década de 1940 com os dois lados reivindicando o seu próprio espaço de soberania, embora atualmente esse direito seja exercido plenamente apenas pelos israelenses. 

Ao longo do Século XX, uma série de conflitos, como a 'Guerra dos Seis Dias', foram travados no contexto do acirramento na relação entre as nações árabes e Israel.

Atualmente os palestinos são obrigados a viver em condições bastante precárias. Com isso, guerras são travadas, grupos considerados terroristas erguem-se, vidas são perdidas, e uma paz duradoura encontra-se cada vez mais distante.

A área de disputa entre os dois lados em questão localiza-se no Oriente Médio, mais precisamente na Palestina, tendo como foco a cidade de Jerusalém, um ponto de forte potencial turístico religioso, considerado um lugar sagrado para as três grandes religiões monoteístas do planeta: o cristianismo, o islamismo e o judaísmo.

Hoje, tanto o grupo extremista, Hamas, como o primeiro-ministro de Israel, Benjamin Netanyahu, prestam o pior dos seus serviços aos seus respectivos povos, alimentando o terror, medo, sofrimento, luto e destruição, esquecendo que não há heróis numa guerra que mata crianças. Se a assistência e apoio militar do Irã ao Hamas é um erro, o mesmo ocorre com os Estados Unidos, que vêm garantindo ao governo de Israel a transferência de novos e letais armamentos, mostrando que tanto Netanyahu como o Hamas estavam ansiosos para deflagrar essa guerra.

Sob o prisma religioso, o conflito entre Israel e Palestina remonta ao ano de 1850 (antes de Cristo), quando um velho mercador da cidade de Ur, na Mesopotâmia (atual Iraque), recebeu um chamado de Deus. O Senhor ordenou-lhe que juntasse todos os seus pertences, abandonasse seu país natal e partisse em busca de um novo lar, rumo ao oeste, ou seja, a terra de Canaã. 

Lá o mercador devia estabelecer sua descendência e dedicar-se ao culto de seu benfeitor, Jeová, o Deus único – uma novidade naqueles tempos politeístas. Assim seguiu Abraão, com seu séquito de parentes, escravos e concubinas.

Ao longo da jornada, o favorito divino teve dois filhos. O mais velho, nascido de sua serva Agar, foi batizado de Ismael. O segundo, filho de Sara, esposa legítima do patriarca, recebeu o nome de Isaac. 

O país prometido aos descendentes de Abraão era uma terra de desertos e oliveiras, banhada pelas águas do Rio Jordão. Ficou conhecido ao longo dos séculos como a Terra Santa – paisagem dos grandes dramas da Bíblia, território adorado pelas três maiores religiões do planeta e, hoje, palco de um dos conflitos mais preocupantes de nosso tempo. 

A região em disputa é considerada sagrada para as três religiões, todas elas de origem abraâmicas. Os judeus consideram Jerusalém sagrada porque foi a capital do Reino de Davi. Os cristãos, por conta da trajetória de Cristo naquela região. Para os muçulmanos, Jerusalém foi o local de peregrinação de Maomé após passar por Meca e Medina. A Mesquita de Al-Aqsa, na Cidade Velha de Jerusalém, é o terceiro local mais sagrado do Islã.

Segundo a lenda, os tataranetos de Abraão deram origem a dois povos  árabes e judeus de aparência, língua e cultura muito parecidas, mas que agora se entrincheiram em lados opostos no 'front' da política internacional.

Essa história vem inteiramente de relatos religiosos. A Torá, livro sagrado judaico que corresponde ao Velho Testamento cristão, aponta Isaac como o antepassado dos judeus. O Corão, por sua vez, remonta a genealogia dos árabes até Ismael, o primogênito de Abraão. Todos esses personagens talvez não passem de mitos. Mas o estreito parentesco entre árabes e judeus é consenso científico.

Em 2000, cientistas europeus, israelenses e africanos coletaram os cromossomos de 1,3 mil homens de ambas as etnias, em mais de 30 países ao redor do mundo. A conclusão dos estudos é que os DNAs árabe e judeu são idênticos. 

As duas nações descendem de uma mesma tribo, que viveu em algum lugar do Oriente Médio por volta de 4000 (antes de Cristo) – muito antes de Abraão. Portanto, israelenses, palestinos, sírios, egípcios e libaneses não são apenas primos. São irmãos genéticos.

quarta-feira, 5 de julho de 2023

Uma democracia inconclusa


ANTONIO CARLOS LUA

Em 15 de novembro de 1889, um grupo de militares liderados pelo marechal Manuel Deodoro da Fonseca destituiu o imperador Pedro II e instalou um governo provisório. 

Embora a historiografia tradicional ainda confirme que o marechal Deodoro da Fonseca foi o líder desse movimento, sabe-se que, de fato, a República foi proclamada na Câmara-Geral do Rio de Janeiro, então capital do Brasil.

Esse teria sido apenas o ponto alto de um movimento republicano que tencionava o Império. São muitas as correntes que defendem que o processo republicano brasileiro se iniciou em 1817, quando a Revolução Pernambucana explodiu como uma revolta contra os exageros para manter a Família Real vinda de Portugal, em 1808. 

Mas, o certo é que, após 130 anos da instalação da República, ainda não é possível fazer uma comemoração plena. Vivemos numa República que, infelizmente, não pratica plenamente os valores de uma democracia, cujo processo está, ainda, inconcluso, sem o lastro latente do princípio da igualdade, preconizado no artigo 5º da Constituição da República.

Nem mesmo quando acabou com a escravidão o Brasil conseguiu tratar seu povo com equidade, pois negros foram libertados, mas não inseridos na sociedade, uma lógica, infelizmente, ainda presente atualmente. 

A igualdade nunca foi um valor, uma qualidade extensiva no nosso país. Nossos ideais republicanos não foram plenificados nem mesmo nas matrizes que os inspiram, como a francesa e a inglesa. 

Continuamos mantendo as amarras que impedem a efetivação de um autêntico espírito republicano. Nossa Carta Magna tem um arcabouço legal bem-apanhado para assegurar a democracia plena, mas não temos cultura constitucional.

Não podemos continuar sendo condenados pelo passado, mantendo a longa tradição de valores e estruturas sociais arcaicas. Infelizmente, os legados do patrimonialismo, da escravidão, da falta de educação, até hoje pesam sobre nossa sociedade. 

Comprovam essa afirmativa a desigualdades de cor, os baixos níveis de escolaridade e os índices de qualidade da educação. Ainda que a Carta Magna de 1988 tenha permitido avanços à cidadania, nosso republicanismo caminha a passos lentos.

A lógica perversa dos planos de saúde

ANTONIO CARLOS LUA

A saúde vem sendo tratada como mercadoria pelos planos de saúde privados, que cobram caro e vendem o que não entregam com reduzida cobertura, obrigando os clientes a recorrerem ao Sistema Único de Saúde (SUS) para não morrerem por falta de atendimento.

Mesmo assim, são os proprietários desses planos de saúde que criticam seletivamente a Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) por entenderem que a intervenção estatal ameaça seus lucros. Pousam de liberais antiestatistas, mas, contraditoriamente, exigem sempre mais subsídios, créditos e empréstimos públicos.

Além disso, combinam entre si o que é ou não incluído como garantia nos contratos, restringindo, ao máximo, a cobertura, obrigando seus segmentos de clientela a recorrem ao SUS para receber medicamentos de alto custo, bem como realizarem transplantes e outros procedimentos clínicos, os quais se negam radicalmente a realizar.

As operadoras particulares de saúde não investem em ciência, tecnologia e inovação, quesitos essenciais para os sistemas de saúde modernos, deixando inteiramente para o SUS as tarefas de pesquisa e modernização tecnológica. Mesmo assim, passam a ideia de que os serviços públicos de saúde são ultrapassados e os privados inovadores, numa inversão perversa que visa tão somente a captação de clientela. 

Plano de saúde, como diz o nome, serve para evitar improvisação. É um contrato de pré-pagamento que assegura aos pacientes a certeza de chegar numa unidade de saúde e receber atendimento seguro e de qualidade. Mas nem sempre isso acontece, uma vez que muitas operadoras vendem o chamado plano-improviso, cobrando antecipadamente, sem garantir, porém, assistência adequada.

Ao contrário da propaganda enganosa, as operadoras de saúde não estão desafogando o Sistema Único de Saúde. Ao contrário, estão é reduzindo a cobertura pública e ainda reclamam que o regramento estatal ameaça seus lucros. Assim, tentam sistematicamente intervir na definição das políticas regulatórias, buscando estabelecer, forçosamente, uma promiscuidade entre o público e privado.

Sendo assim, o caminho é fortalecermos o SUS. Somos mais de 200 milhões de habitantes e não podemos entregar a saúde para grupos empresariais que priorizam somente os locais em que se situam segmentos sociais de maior renda, combinando entre si o que deve ser ou não incluído como garantia nos contratos. 

Nessa lógica perversa, eles seguem buscando a desregulamentação das coberturas, restrição radical da escolha de prestadores de serviços, não ressarcimento ao SUS, o fim das penalidades impostas pela legislação, bem como a redução do poder de definição de reajustes de preços e de fiscalização da Agência Nacional de Saúde. 

Além disso, ambicionam vender mais planos sem atendimento  emergenciais, realização de exames, diagnósticos e tratamentos para câncer, ampliando o mercado mediante a comercialização de produtos segmentados por oferta assistencial, reduzindo, assim, a cobertura e enfraquecendo a lei que prevê o atendimento aos problemas de saúde catalogados no Código Internacional de Doenças. 

Não podemos permitir que lógicas mercantilistas ditem as regras na gestão de saúde pública no Brasil. Vender mais planos de saúde privados nunca foi e jamais será sinônimo de solução para o país, que está às voltas com imensos problemas de saúde pública.

quarta-feira, 28 de junho de 2023

O Brasil despótico e a pobreza multidimensional

ANTONIO CARLOS LUA

Governos não podem renunciar a excelsa e primária função de ser serviço do bem comum do seu povo. Quando falta uma ação apropriada dos poderes públicos surgem as desigualdades, com os direitos e os deveres do cidadão carecendo de eficácia prática.  

Vivemos uma etapa histórica de grandes transformações com multifacetadas formas de violência, que colocam em jogo a alma das pessoas. 

Verifica-se um paradoxo. Por um lado, um fenomenal desenvolvimento normativo. Por outro, uma deterioração no gozo efetivo dos direitos consagrados globalmente. 

No Brasil, histórica e estruturalmente, o “cidadão de bem” é praticamente sinônimo de “cidadão de bens”. Negros, mestiços, mulatos, indígenas, caboclos e tantos outros oprimidos sempre estiveram excluídos da cidadania. 

Mesmo após a abolição da escravatura, o estigma de superexploração e a discriminação racial mantiveram seu vigor negativo, com os negros tornando-se “livres” para mendigar ou para “mourejar feito doido”, como o personagem “Nego Leléu”, na obra “Viva o Povo Brasileiro”, do saudoso escritor baiano, João Ubaldo Ribeiro.

Desse processo resultou, historicamente, uma cidadania pífia e enferma, com cidadãos deserdados, sem terra, sem trabalho, sem teto, sem comida, rechaçados para os porões, periferias e lixões, longe do olhar de políticos submergidos unicamente em interesses eleitorais ou agarrados em visões enviesadas, peremptórias, reduzidas. 

Uma multidão de cidadãos sem vez e sem voz despenca cada vez mais para níveis sociais críticos de extrema pobreza. O país utópico do futuro sem pobreza está cada vez mais distante e o Brasil despótico é a realidade que insiste em permanecer presente. 

A pobreza geradora de fome tornou-se uma chaga no Brasil, sendo uma das formas mais violentas de humilhar as pessoas e ferir-lhes a alma. Nos últimos 30 anos a renda dos mais pobres permaneceu inalterada, enquanto a dos mais ricos cresceu 300%. 

Não há atenuante. Num país que produz alimentos suficientes para garantir comida a todos os seus habitantes, a fome nada mais é do que um crime, que trai o dom originário destinado à humanidade sem qualquer exclusão.

Nesse marco, faz-se necessário passar das palavras a uma ação vigorosa e consistente. Não para nos deixar levar aos borbotões e pelos titulares intermitentes e passageiros, mas para encarar sem trégua, com justiça e coerência, a fome e as causas que a provocam.

sexta-feira, 23 de junho de 2023

Um futuro assombroso



ANTONIO CARLOS LUA

Há muito tempo o homem abusa das condições dos ecossistemas planetários, comprometendo de maneira integral os sistemas geradores de vida na Terra,

Estamos há 250 anos emitindo gases que contribuem para o efeito estufa e, agora, temos o aquecimento global. Precisamos ficar atentos para o que poderá acontecer nesse vasto mundo onde os indivíduos se refugiam.

Se os biólogos estiverem certos, o desenho do futuro é assombroso, uma vez que nos próximos cem anos os humanos poderão eliminar até 50% de todas as espécies da Terra.                                                                                                      

Até 2048 os oceanos atingirão um ápice em que não mais será permitido a retirada de recursos alimentares, tendo em vista que a excessiva atividade de pesca não respeita o tempo de reposição dos cardumes. Mais de 1 milhão de espécies de animais e vegetais estão ameaçados de extinção.

Todas essas ocorrências configuram um drama que altera todo o sistema de funcionamento da Terra, enfraquecendo biologicamente o planeta e afetando a ordem da vida, que é o imperativo maior e o princípio máximo que a inteligência humana conhece


Tragédia brasileira

 ANTONIO CAROS LUA

Precisamos discutir no Brasil o conceito de democracia, em todas as arenas políticas. Não a democracia onde o poder de mando do povo seja uma ilusão. Esta não é a democracia, é a enganação ilusória com nome de democracia.

No Brasil, cujo cenário político é conturbado e desesperador, precisamos de política de vida e não uma política que se sobrepõe a vida, com as determinações simultâneas destinadas à violação e ao fracasso da ordem social.

Os tempos, definitivamente, registram uma alta turbulência política que assola impiedosamente o Brasil, onde o grau de descrença em relação a nossa desfigurada democracia torna o sistema político nacional insustentável.

 


A nódoa da violência de gênero

ANTONIO CARLOS LUA

Dois milênios após o cenário do Brasil Colônia (1500-1822), a vida das mulheres no Brasil ainda traz a nódoa da violência tatuada em seu corpo pela urgência sexual dos homens, causando perplexidade e indignação. 

O cotidiano das mulheres no país continua sendo marcado pela violência, desde o assédio sexual e o estupro até o caso mais extremo – o feminicídio – que é um crime de poder, de decisão sobre vida e morte que muitos homens julgam ter sobre os corpos femininos. 

O sentimento de posse, dominação, perda do controle e soberania sobre o segmento feminino são alguns dos motivos pelos quais os homens matam as mulheres no Brasil, onde um estupro é registrado a cada oito minutos. 

No país, cerca de 89,9% das mulheres são mortas pelo companheiro ou ex-companheiro. Quase 60% dos brasileiros já testemunharam situações de violência contra mulheres em seu bairro ou comunidade. É muito grave a situação das mulheres no Brasil, onde a desigualdade de gênero é uma das mais altas no mundo. 

Assédios sexual e moral, violência doméstica, estupros, preconceito e discriminação têm sido a tônica da vida das mulheres brasileiras numa sociedade extremamente patriarcal, conservadora, que ainda acha que a família, mesmo mantida com base na violência, deve ser mantida a todo custo e sofrimento.


O poeta é um jornalista de alma humana

 ANTONIO CARLOS LUA

A informação ganha cada vez mais velocidade. Hoje fazemos jornalismo à luz da informatização. Sumiram as laudas, a máquina de escrever, os revisores.

A alta tecnologia coloca o texto mais perto da rotativa, encurtando o trajeto entre o jornal e o leitor. A sofisticação nos leva, agora, a ter páginas prontinhas na frente do computador.

Aperta-se um botão e nossos textos são transformados em matrizes para ação das velozes rotativas, que transformam nossos textos em reflexo cotidiano, acrescendo análises e respeitando a inteligência alheia, com um caráter ético e plural.

Na velocidade em que as informações são transmitidas, corre-se o risco da emoção ser atropelada na rodovia. 

Mas isso só ocorrerá se alma pequena – como diz o imortal jargão do grande poeta Fernando Pessoa. É por isso que o poeta é um jornalista de alma humana.

Novos paradigmas do jornalismo

ANTONIO CARLOS LUA

Temos a impressão de que os dias estão cada vez mais curtos. As tradicionais 24 horas diárias parecem já não ter os mesmos 1.440 minutos de outrora. Essa mudança na percepção da passagem do tempo está relacionada ao desenvolvimento tecnológico que provocou o que chamamos de “compressão do tempo-espaço”.

Ela vem provocando profundas transformações na atuação dos jornalistas numa sociedade, onde a informação é o ponto central. É legítimo afirmar que os novos paradigmas da comunicação estão obrigando os jornalistas a assumirem um novo papel numa sociedade transitória.

Se era aceitável em outras épocas descobrir sobre um fato no dia seguinte, hoje essa limitação é inquietante. O público quer saber tudo e rapidamente. Hoje a notícia jornalística é compreendida como construção social da realidade. 

Esse paradigma tem como pressuposto que a notícia – à medida que mostra o fato – evidencia importantes verdades, construindo, em tempo real, o processo de transformação da realidade social.

Nesse contexto, em meio à enxurrada de notícias falsas, o valor agregado de um jornalista surgirá de sua credibilidade. O jornalista precisa construir confiança em relação ao seu trabalho, ouvindo e interagindo diretamente com seu público, adotando transparência.

Há mudanças importantes ocorrendo na produção da notícia, exigindo maior agilidade e novas habilidades dos jornalistas. Novos meios, novos contextos de produção, novas linguagens estão alterando acentuadamente o fazer jornalístico. Como resultado desse desenvolvimento tecnológico, as notícias se tornam um produto superabundante, barato e instantâneo.

O Século XXI – o terceiro milênio – é marcado por grandes transformações digitais, muitas delas no campo profissional do Jornalismo. Quem atua na área de comunicação sabe que esse fenômeno está mudando hábitos sociais, com o incremento de novas tecnologias.

Assim, a imprensa que definiu as democracias ocidentais no Século XX, enfrenta, agora, em pleno Século XXI, o desafio de adaptar-se a emergente sociedade digital, para que o Jornalismo não só sobreviva, mas avance, prospere e triunfe.

A constatação da mudança na concepção geral da atividade jornalística na era digital tem como corolário a necessidade de revisar as rotinas e normas vigentes para incorporar o conjunto de atores na escala de valores da atividade. 

O julgamento da noticiabilidade de um dado, fato ou evento tem que ser determinado por um conjunto de princípios, entre os quais o compromisso com o fortalecimento da democracia. 

Na atual conjuntura brasileira, o jornalismo de dados e multiplataforma, o Jornalismo cidadão, o Jornalismo independente e o Jornalismo alternativo têm sido apresentados como soluções, tanto para o mercado jornalístico, quanto para a esfera pública dos direitos à informação e à livre expressão.

terça-feira, 20 de junho de 2023

A Justiça no Século XXI


ANTONIO CARLOS LUA

Vindos do além-mar para desbravar e colonizar nossas terras continentais, os pioneiros – logo que chegaram ao nosso país  se deram conta da complexidade da atividade judiciária no então Novo Mundo. Coube a Pero Borges – ouvidor e magistrado de carreira que se fixou na Bahia, em 1549 – a tarefa de organizar a distribuição do sistema de Justiça na vastidão das terras brasileiras. 

Na época, se estabeleceram diversas categorias de agentes do Judiciário entre eles os juízes ordinários, juízes leigos, juízes eletivos, juízes de fora, juízes de vintena e juízes de órfãos. Ficou definido que os recursos interpostos contra as decisões de primeira instância deveriam ser apreciados pela Corte, em Lisboa, Portugal.  

Foi o Rei Felipe II, de Portugal e Espanha, se preocupou com a criação de um colegiado nas colônias e, assim, nasceram, no Brasil, os Tribunais de Relação na Bahia, em 1609; no Rio de Janeiro, em 1751; no Maranhão, em 1813; e em Pernambuco, em 1822. 

Foram criados mais sete Tribunais de Relação, até que a Constituição de 1891 atribuiu aos Estados a competência para a instituição de seus tribunais de segunda instância. Formou-se então no país uma vasta e capilarizada rede de prestação de serviços judiciários, passando a ser atribuição de cada Estado a gestão e a distribuição da Justiça em todo o seu território. 

Hoje, no Século XXI, com os valores republicanos já consolidados em nossa sociedade, observamos o Poder Judiciário vivendo um momento de reinvenção, estando presente em todos os rincões do país como símbolo de soberania e independência, registrando atos da vida civil, defendendo a cidadania e decidindo questões próprias da vida social, sejam estas de caráter individual ou coletivo,  

Assim, com muito dinamismo na prestação jurisdicional, o Poder Judiciário evidencia sua vocação de servir à sociedade, se posicionando ao alcance do cidadão, de forma perene, gratuita, acessível e ininterrupta, não sendo apenas a Justiça de ente, mas também a Justiça de gente, ocupando-se das questões dos seres humanos, solucionando conflitos que externam a dramaticidade da vicissitude natural das relações humanas e sociais.

quarta-feira, 1 de março de 2023

A revolução tecnológica e o fim da humanidade

 

ANTONIO CARLOS LUA

Com o avanço da Inteligência Artificial, estudiosos já se perguntam como será o nosso futuro quando ela alcançar a singularidade e se tornar superior aos humanos. 

Um estudo sobre os riscos relacionados à Inteligência Artificial desenvolvido por cientistas das Universidades de Oxford (Reino Unido), Yale (EUA) e do Future of Life Institute (EUA) aponta a probabilidade de máquinas com nível de inteligência equivalente à dos humanos estarem funcionando até o ano de 2028, resgatando alguns insights preocupantes do cosmólogo e físico britânico, Stephen Hawking, um dos mais influentes cientistas da história, que faleceu em março deste ano. 

Em mais de uma ocasião Stephen Hawking externou sua preocupação com a nossa capacidade de controlar a Inteligência Artificial, afirmando que os robôs podem chegar a um ponto onde poderão evoluir sozinhos, com a corrida para o desenvolvimento de armamentos baseados nessa tecnologia. 

Em todas as suas manifestações sobre o assunto, o cosmólogo britânico não se mostrou otimistas no que diz respeito ao futuro da humanidade com a Inteligência Artificial. Em seu último artigo, publicado no jornal britânico “The Independent”, o físico faz um questionamento sobre uma potencial ameaça da Inteligência Artificial, cuja criação – segundo ele – seria o maior evento na história da humanidade, mas, infelizmente, também o último.

É importante frisar que os frutos da inteligência artificial que temos até agora são relativamente inofensivos, como um computador que vence humanos no game show Jeopardy, assistentes pessoais no smartphone e carros que se dirigem sozinhos. Mas já são dados passos não tão seguros, como aqueles na direção militar, com armas que selecionam e eliminam inimigos de maneira autônoma – uma iniciativa que inclusive já foi freada pela Organização das Nações Unidas (ONU).

O entendimento é de que com o desenvolvimento da Inteligência Artificial, não há como fazer uma previsão sobre como ela poderá se organizar, levando-nos a imaginar essa tecnologia ficando mais inteligente que mercados financeiros, inventando mais que pesquisadores humanos, manipulando líderes e criando armas que sequer entendemos. 

Enquanto o impacto da Inteligência Artificial, a curto prazo, depende de quem a controla, a longo prazo dependerá se ela poderá ser controlada. Esse é o ponto central e relevante na discussão deflagrada por especialistas a partir do estudo desenvolvido pelos cientistas das Universidades de Oxford (Reino Unido), Yale (EUA) e do Future of Life Institute (EUA).

O alerta dado por Stephen Hawking é preocupante quando ele aponta que a  união da Inteligência Artificial com os robôs pode gerar uma situação em que as máquinas avançariam por conta própria e se reprojetariam em ritmo sempre crescente, enquanto os humanos – limitados pela evolução biológica lenta – não conseguiriam competir e seriam automaticamente desbancados.

A Inteligência Artificial traz um desafio adicional à conquista do conhecimento, fato que se desenrolou, pelo menos em termos mitológicos, quando Prometeus roubou o fogo da sabedoria da posse exclusiva dos deuses do Olimpo. Como castigo, Zeus condenou Prometeus a viver acorrentado a uma rocha por toda a eternidade, enquanto uma águia comia todos dias o seu fígado, que se regenerava no dia seguinte. 

Embora acorrentado, Prometeus conseguiu passar o conhecimento aos humanos e não prestou obediência a Zeus, como explica no famoso poema “Prometheus” (1774), o escritor e estadista alemão do Sacro Império Romano-Germânico com incursões pelo campo da ciência natural, Wolfgang von Goethe.

Talvez o perigo apontado em direção à Inteligência Artificial seja uma manifestação alarmista, mas o fato de um dos cientistas mais brilhantes do Século como Stephen Hawking enfatizar que o avanço dela pode ser nocivo para os seres humanos, talvez seja importante refletir se a humanidade, no intuito de amplificar os frutos de abundância fáustica, passe o bastão do fogo prometeico para as máquinas inteligentes, perdendo o controle de sua posição privilegiada de cérebro do Planeta.

domingo, 26 de fevereiro de 2023

Invisibilidade, indiferença e aniquilamento


ANTONIO CARLOS LUA

A história do mundo é pródiga em transformar facínoras na espécie mais vulgar de heróis descobridores. Passados cinco séculos do descobrimento das Américas e, consequentemente, do Brasil, o testemunho de extermínio da população indígena vem sendo feito de geração em geração até os dias atuais. 

O processo de extermínio teve início com a colonização portuguesa das Américas, quando da implementação do cultivo da cana-de-açúcar na costa brasileira, ocasionando a redução das populações indígenas. 

Dos 2,5 milhões de povos indígenas que viviam na região que hoje compreende o Brasil na época da chegada de Cabral, menos de 10% sobreviveram até o ano 1600. 

A situação dos indígenas é dramática. Eles têm sido vítimas sistemáticas do crime de genocídio. Esta afirmativa não é uma mera especulação, mas um enquadramento jurídico que já está plenamente configurado. 

O crime de genocídio se configura justamente a partir da conduta intencional e deliberada de provocar a destruição no todo ou em parte de um grupo étnico, que é exatamente o que estabelece a Lei 2.889 de 1956 que – aprovada em 1948 pela ONU – teve sua redação baseada na convenção contra o genocídio. 

As penas relativas às condutas que se enquadram na tipificação do genocídio podem chegar a 30 anos de prisão. No atual governo brasileiro, vão se acumulando as evidências de condutas deliberadas que objetivam dizimar os povos originários.

As atrocidades que estão sendo perpetradas contra a população indígena é um imperativo ético em meio à barbárie que marca este momento tão triste da história brasileira, com o registro de graves violações aos direitos humanos.