Translate

segunda-feira, 27 de julho de 2020

A Bíblia como pano de fundo da literatura

Antonio Carlos Lua

A literatura sempre bebeu da fonte bíblica. Uma infinidade de obras clássicas e contemporâneas têm a Bíblia como pano de fundo, sendo o livro sagrado, indiscutivelmente, uma grande referência na tradição literária universal, tanto pela sua riqueza metafórica, como pela sua capacidade narrativa.

Da peça “Salomé”, de Oscar Wilde, ao romance “O evangelho segundo Jesus Cristo”, do escritor português José Saramago, enxergamos a literatura usando uma grande história bíblica como metáfora, a exemplo do romance “Esaú e Jacó”, de Machado de Assis. 

A influência da relação entre a Bíblia e a literatura na sociedade contemporânea revela o caráter antigo – e arcaico – de vários conflitos pelos quais o mundo passou e está passando, sendo esta uma questão que a boa literatura acompanha com a devida atenção. 

Com a literatura é possível entender que nada se esgota e que sempre é necessário uma nova inculturação, com narrativas que respondam às inquietações do mundo, num modelo de vida que não se desgasta e exige que as coisas da vida sejam reconfigurados criativamente.

A relação entre a Bíblia e a literatura universal constitui-se um grande telescópio voltado para a vida, sendo uma ferramenta prodigiosa não só para a leitura, mas também para a experiência coletiva, para a história e para a dimensão particular e universal.

Quem ignora a literatura não traduz a vida humana em sua universalidade e desconhece os testemunhos poéticos reveladores da história ao longo dos milênios. 

Precisamos de literatura, não como um ornamento supérfluo no nosso ‘habitat’ social e espiritual, mas como uma estrutura de sustentação e sobrevivência no mundo. 

Na Bíblia estão articuladas as representações de fé na literatura, que reativam constantemente os processos culturais que desembocam na criação de chaves de leitura consistentes e vitais, permitindo uma melhor leitura da história numa época rica de conhecimentos.

A Bíblia já é, por si só, uma boa literatura, com seus códigos indispensáveis para a dinâmica criativa entre a fé e a produção literária.

Essa relação aparece na origem e na aurora do mundo, nos levando a mergulhar poeticamente o mais fundo possível na busca de respostas às reivindicações humanas.

Não podemos esquecer que os poemas são os textos fundantes de grandes tradições religiosas. Na própria antiguidade grega encontramos a doutrina do entusiasmo, associando a inspiração poética à Bíblia e à Deus.

A literatura e a fé têm a mesma idade. Elas nasceram na mesma época, com a poesia sendo a alma dos ritos religiosos. Ambas são apaixonadas pelo ser humano. 

A Bíblia é o grande código da nossa cultura e se situa em outra dimensão, além das paredes invisíveis. Poeticamente o homem habita o mundo. Poeticamente Deus o visita.

Hoje é melhor voltar-se para os romancistas e escritores para melhor entender o mundo. São vários os nomes da literatura que ao escrever histórias e ao dar forma a personagens, não evitam o espaço do sagrado e a leitura da Bíblia. 

As quatro obras fundamentais do escritor, filósofo, jornalista e um dos maiores romancistas e pensadores da história, Fiódor Dostoiévski – “Crime e castigo”; “O idiota”; “Os demônios”, e “Os irmãos Karamázov” –  abordam a relação do homem com Deus.

quarta-feira, 22 de julho de 2020

A literatura sofisticada do padre Antônio Vieira

Antonio Carlos Lua

A importância do escritor, orador e padre jesuíta, Antônio Vieira, para a literatura moderna e para o barroco contemporâneo é inquestionável. 

Um dos mais influentes personagens do Século XVII, Antônio Vieira é um dos autores mais complexos da nossa literatura, merecendo contínua releitura e reflexão.

Com uma literatura sofisticada, ele deixou uma obra abrangente – cartas, poesias, textos para o teatro, escritos políticos e sermões, incluindo “Sermão de Santo Antônio ao Peixes”, proferido em São Luís (MA), em 13 de junho de 1654, Dia de Santo Antônio.

O padre Antônio Vieira era um gênio, um visionário. A sua capacidade de entender os problemas e propor soluções avançadas fizeram dele um precursor.

Construiu seus textos com recursos da arquitetura poética barroca, como a metáfora, a alegoria, a analogia, o paradoxo, o paralelismo, além das relações intertextuais que estabeleceu com os textos bíblicos e de autores clássicos greco-latinos.

O padre jesuíta abordou até a metalinguagem no “Sermão da Sexagésima”, escrevendo uma autêntica “arte de pregar”, quase um manifesto estético, polemizando com os oradores dominicanos, que eram seus rivais e praticavam um cultismo exacerbado, em detrimento de um sentido espiritual mais profundo.

Na obra ‘História do Futuro’, ele cobriu uma vasta gama de preocupações que iam desde os sentimentos humanos, a religião e o próprio destino da humanidade.

O padre jesuíta é mais moderno do que se imagina e – assim como Gregório de Mattos – fez um retrato da vida colonial brasileira, que permanece tristemente atual, principalmente quando ele toca na corrupção de funcionários públicos.

Antônio Vieira era partidário de uma tendência do barroco – o conceptismo – e condenava em seus adversários a retórica artificial e oca. Estava de algum modo demasiado avançado para o seu tempo. Por isso, muitos não o compreenderam.

Ele não buscava uma linguagem pura e próxima da abstração. No entanto, a construção estrutural de seus sermões e a maneira como ele faz o encadeamento discursivo, pode autorizar um paralelo com o autor francês, Mallarmé, com parêntesis e ressalvas.

Sendo, como dizia, "homem com alma", foi também "alma com homem", o que o não livrou de ser expulso do Brasil, atravessando o mar apenas com o Livro na mão.

Em Lisboa, depois de ser expulso pelos colonos portugueses, pediu ao rei que lhe permitisse regressar com o Livro na mesma mão, mas, desta vez, com a espada na outra.

Chamado pelo poeta Fernando Pessoa de “imperador da língua portuguesa”, o padre Antônio Vieira bem merece o título de profeta dos tempos modernos.

Prova disso é sua obra magna “A Chave dos Profetas”, um tratado teológico e político em dois volumes iniciado quando o padre jesuíta cumpria pena de reclusão determinada pela Inquisição em 1663, da qual escapou por indulto real. O tratado só foi concluído quando o padre estava à beira da morte.

O escritor português José Saramago confessou que costumava ler Antônio Vieira antes de escrever seus romances para se banhar nas águas cristalinas e puras do nosso idioma.

Saramago dizia, inclusive, que nunca a língua portuguesa foi tão bela como quando foi escrita pelo padre Antônio Vieira, que a usou com grande perfeição, traduzindo, na sua forma de escrever, pensamentos profundos, complexos e que ainda hoje nos aguçam a reflexão e a imaginação.

Como homem do século XVII, o grande viajante e missionário Antônio Vieira viveu experiências em espaços inóspitos. 

Foi ameaçado de morte e lidou com a experiência humana em toda sua diversidade e diferentes expressões. Isso lhe deu uma dimensão de universalidade extraordinária. Foi um mestre da língua portuguesa.

quarta-feira, 15 de julho de 2020

A literatura na caixa de ferramentas da teologia


Antonio Carlos Lua

Francisco de Assis não é apenas um dos santos e uma das figuras lendárias mais famosos da Igreja Católica. Ele também é considerado um escritor pioneiro. “Cântico das Criaturas” (Cantico delle criatura), de sua autoria, foi um dos primeiros textos da história da literatura italiana. 

O Papa Francisco – eleito Bispo de Roma em 2013 – tem também uma maneira interessante de usar textos literários. 

Embora não seja tão fluente em inglês, francês e alemão como os Papas Bento XVI e João Paulo II, há uma diferença linguística substancial que o marca em relação aos seus dois mais recentes antecessores. 

A linguagem do Papa Francisco é rica em metáforas, provérbios e expressões idiomáticas. Quem o observa enxerga um paralelo em sua maneira de empregar palavras e imagens.

Profundamente existencial é uma linguagem derivada de muitos anos de experiência pastoral do Pontífice como sacerdote, professor e bispo. 

Podemos dizer que Francisco é um “papa linguístico”. Diferentemente de seus antecessores, ele tem um currículo docente que se focava mais na literatura do que na filosofia.

Ele sempre tende a criar novos verbos e substantivos – como, por exemplo, misericordiare, “misericordiando”, e rapidacion, “rapidização”

Sua inspiração demonstra ser ancorada na experiência de São Francisco de Assis, a partir da leitura do Evangelho de Mateus, em 1942.

Entre 1964 e 1965, o Papa Francisco ensinou Cervantes, literatura gaúcha, muito popular na Argentina, no Brasil e no Uruguai entre 1870 e 1920. Ele transmite a experiência do povo através de dialetos e expressões populares, que ele considera puras e livres de sistematização.

Na exortação “Querida Amazônia”, o Papa Francisco recitou seis poesias – “Com a chuva estou vivendo”; “Chamado"; “O rio Amazonas”; “A transformação pela poesia”; “Aqueles que creram”; e “Carta de navegar” – narrando a beleza violada do pulmão verde do mundo,  em versos poéticos para descrever a Âmazônia.

Essa é uma das razões para que muitas pessoas admirem o Papa Francisco no seu diálogo com seguidores e os meios de comunicação social, tornando fácil entender porque suas palavras exigem uma análise poética e linguística e não apenas uma boa tradução teológica.

Na caixa de ferramentas da teología cristã – especialmente a católica – existe, ainda hoje, muito mais filosofia do que poesia. Mas o conceito cristão é tão poético quanto filosófico. Na própria Bíblia, encontra-se muito mais poesia do que a filosofia.

Francisco tem se mostrado um Papa verdadeiramente global e uma das principais provas dessa afirmativa é sua linguagem, que não se restringe ao discurso clássico e valoriza o caráter poético nas pregações religiosas.

A globalização do catolicismo está sendo acelerada na medida em que o Papa Francisco encontra novas expressões linguísticas para alimentar uma fé antiga, mas sempre nova.

domingo, 5 de julho de 2020

Literatura: direito inalienável do homem

A
Antonio Carlos Lua

No campo da literatura, Antonio Cândido é o intelectual mais destacado de sua geração, sendo o primeiro grande estudioso universitário a permanecer com obra imediatamente relevante até agora. 

Em vida, ele nos deu a certeza de que, sem distinções entre erudita e popular, a literatura deveria ser um direito inalienável do homem. 

Não à toa, um dos textos mais conhecidos de Antonio Cândido  – “O Direito à Literatura” – inclui a arte no rol dos direitos humanos. Ele dizia que “a literatura é o sonho acordado das civilizações e como não é possível haver equilíbrio psíquico sem o sonho durante o sono, talvez não haja equilíbrio social sem a literatura. Deste modo, ela é fator indispensável de humanização”.

Ele sempre fez questão de não tratar a literatura como fenômeno isolado, Como crítico e ensaísta atuou no tempo presente, escrevendo sobre as obras de Clarice Lispector, João Cabral de Mello Neto, Carlos Drummond de Andrade, voltando seu olhar também para Machado de Assis, Aluísio de Azevedo e Manuel Antônio de Almeida. 

Dessa forma, ele foi determinante para a ideia que se tem hoje da produção literária brasileira. Generoso, atuava no seu tempo. Escreveu muito sobre autores que fizeram das camadas mais baixas da sociedade seu tema principal. Talvez seja esta a razão da literatura ser vista por ele como um direito. 

Antonio Cândido dizia que uma das coisas mais importantes da ficção literária é a possibilidade de 'dar voz', de mostrar em pé de igualdade os indivíduos de todas as classes e grupos. 

No campo da sociologia, dedicou-se à figura do homem interiorano. Falou da organização social, da presença de uma cultura que, por vezes, tentou-se esquecer ou camuflar com a ideia de progresso. 

Com um olhar sempre para os de baixo, para os que estão “ao rés do chão”, evocando o título de um dos seus ensaios literários, sempre sustentou de forma clara suas posições políticas.

Por toda a sua vida, mesmo nos momentos mais agudos, nunca foi capaz de perder a preocupação com os fatores sociais e políticos, num mundo com uma situação de extremo retrocesso e de valores e bens que são muito diferentes do humanismo.

Viveu praticamente todo o conturbado século XX, escrevendo, debatendo, ajudando a dar lucidez, clareza e humanidade a toda uma geração de escritores, Faleceu em 12 de maio de 2017, aos 98 anos, não antes de trazer a literatura para a seara de todos, não só para a dos intelectuais. 

São muitos os legados deixados pelo crítico literário Antonio Cândido, que produziu textos fundamentais, como o “De Cortiço a Cortiço” no qual ele faz uma leitura de uma das mais importantes obras do Naturalismo brasileiro – “O Cortiço”, do escritor maranhense, Aluísio Azevedo.

A obra retrata o modo de vida no que diz respeito à moradia e estilo de vida da população brasileira no final século XIX, trazendo como cenário a vida social da população do Rio de Janeiro. 

Antonio Cândido foi um intérprete, do país, um humanista, que tinha um projeto cidadão, de inserção na vida de maneira cidadã e democrática. Era uma figura singular porque tinha uma “dupla militância – literatura na imprensa e sociologia na universidade. Com o feeling e a abordagem do crítico ‘impressionista, escrevia muito bem, com profundidade.

Foi inteligente, cosmopolita, utilizando as melhores estradas sociais para se manifestar politicamente. A obra mais famosa de Antonio Cândido é “Formação da literatura brasileira”, que, em lugar de ser lido como um livro de história da literatura e das ideias críticas que trazia sobre autores, passou a figurar como uma ousadia conceitual impressionante.