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domingo, 30 de agosto de 2020

Nietzsche: a biopolítica afirmativa

Antonio Carlos Lua

Há 120 anos falecia o filósofo heterodoxo, Friedrich Nietzsche. Conoclasta, profundo conhecedor da cultura grega, crítico da modernidade com grande influência nas tendências do pensamento do Século XX, Nietzsche era o detetive da linguagem e pôs em dúvida o que até então era dado por sagrado, bom, reto e verdadeiro. 

Ele abalou os três pilares da cultura ocidental ao questionar temas como ‘Ser’, ‘Razão’, ‘Sentido’, ‘Verdade’, ‘Ciência’, ‘Estado’, ‘Revolução’, ‘Lógica’, abordados pelos filósofos até o Século XIX. Para Nietzsche, estes pilares eram valores morais que domesticavam o homem e anulavam sua criatividade.

Friedrich Nietzsche nasceu em 15 de outubro de 1844, em Rökken, Prússia (atual Alemanha).  Ao contrair sífilis, sofrer com intensas dores de cabeça e constatar uma crescente deterioração nos olhos, ele atribui os problemaa de saúde ao poder que supostamente detinha de conferir uma clarividência e uma lucidez superior.

Em certa ocasião, ao ver um cocheiro chicoteando um cavalo, abraçou o pescoço do animal para protegê-lo e caiu no chão. Disseram que ele tinha enlouquecido. Após o episódio foi internado numa clínica psiquiátrica, mas muitos duvidaram de sua loucura. 

Nietzsche foi um crítico ferrenho do filósofo ateniense do período clássico da Grécia Antiga, Sócrates, considerado por ele um “homem de uma visão só”, por supostamente distanciar-se da natureza e de suas forças vitais, ao usar a narrativa do triunfo da razão contra a afirmação da vida. 

Ele atribuia aos filósofos de sua época a culpa pela decadência do homem. Dizia que “aqueles que lutam com monstros devem acautelar-se para não se tornarem também um monstro. Afirmava também que “quando olhamos muito tempo para um abismo, o abismo também nos direciona o olhar”.

Nietzsche estudou a fundo o homem nos seus comportamentos e ações diante da sociedade. Suas teses se baseavam no homem real submetido a valores como elemento formador da cultura. 

Sua filosofia demonstra um esforço na direção da pluralização e da diversificação, em que a última sempre pode ser pensada apenas dentro e através da relação com o outro.

Ele nunca foi tão lido quanto na atualidade. Um dos motivos é a crise dos diversos “ismos” – ou seja, noções que guiam a vida civilizada, chamados de “industrialismo”, “liberalismo”, “positivismo”, que deixam as pessoas céticas sem a noção de verdade.

Tentou mostrar que há interesses e motivações ocultas, e não valores absolutos, em conceitos como verdade, bem e mal. Para o filósofo alemão, a vida era antes de tudo uma capacidade de acumular forças e essencialmente o esforço por mais potência. 

Nietzsche, que abominava o anti-semitismo e o nacionalismo, foi injustamente visto durante muito tempo como inspirador do nazismo por causa da edição forjada e mal-intencionada que sua irmã, Elizabeth, fez dos escritos deixados por ele.

Ele passou os últimos 11 anos de sua vida mergulhado na loucura, falecendo em 1900 de paralisia geral. O filósofo das marteladas, que se opunha a todos os dogmas da sociedade civilizada, escrevia de maneira corrente, límpida, usando muito pouca terminologia técnica, contrariamente à maioria dos outros filósofos. Seu pensamento é uma navalha que corta a carne do tempo, produzindo rupturas.

segunda-feira, 24 de agosto de 2020

Um lápis e um papel

Antonio Carlos Lua

Para Clarice Lispector – uma das maiores escritoras brasileiras do Século XX, com grande influência no modernismo – a literatura era uma questão de vida ou morte, e não um luxo ou uma afirmação existencial. Era um destino com tudo o que essa palavra carrega de mais difícil.

A escritora – que também era jornalista – desejava ir além das palavras para tocar o real. Encarava a literatura não como um instrumento, mas como um obstáculo que devia ser ultrapassado e vencido. Essa era uma posição solitária e radical que gerou muitas incompreensões.

Clarice Lispector usou muito material de suas crônicas para compor algumas narrativas. Preferia os paradoxos, os impasses, os abismos. Mas era coerente. Foi uma mulher muito sábia. 

Acreditava na potência da literatura, não se submetendo, porém, a regras, cânones, ou afirmativas consagradas. Corajosa, era fascinada pelas descobertas que o exercício da escrita lhe reservava.

Com um lápis e um papel enfrentava o desafio de dizer o que é impossível dizer dentro do código convencional da linguagem. Seu mundo era o das entrelinhas, da introspecção, das epifanias em meio ao cotidiano, das questões metafísicas, além e aquém da realidade prosaica.

Sua prosa mirava algo que não se entregava ao olhar realista. Seus objetos se situavam no escuro, fora da zona iluminada pela razão instrumental. Sondou todas as questões ocultadas pela alma que precisavam ser ouvidas, mas não deixou de enfocar o social de modo oblíquo e singular.

A obra da escritora ucraniana naturalizada brasileira é atual e até hoje decifra sentidos fugidios, buscando compreender o que se põe fora do campo do conhecido, aventurando-se e se posicionando no mundo sem clichês, sem estereótipos, sem disfarces, desmontando máscaras e mostrando o que há por trás delas. 

Clarice Lispector abominava a imagem de escritora misteriosa construída ao seu redor. Ela se dizia uma dona de casa que escrevia livros. Era bastante resguardada em relação à imprensa, mas recebia com prazer os jornalistas que queriam conhecê-la sem formalidades. Se há algo de misterioso em sua vida – o que é improvável – transpôs-se para sua obra como um modo de ser.

Sua escrita aceita o mistério como parte do universo vivido, tomando o cuidado para não decifrá-lo e com isso perdê-lo. Sua obra parece afirmar insistentemente que não sabemos tudo, não podemos e não devemos saber tudo. 

Essa zona de escuridão é justamente a condição de vermos o que não é visível na luz. Clarice Lispector pessoa e Clarice Lispector escritora não se distinguem no que almejam. Ambas querem a coisa irrevelada. O mistério, portanto, está no objeto da busca e não na autora e seu cotidiano.

Como cronista do Jornal do Brasil levantou questões relativas à sua época. Ela nunca se submeteu a qualquer patrulhamento que lhe tirasse a liberdade radical de dizer a verdade de si mesma. O processo de conscientização que sua literatura produziu nos anos difíceis da ditadura – e que produz até hoje – se deu pelo valor estético de seus textos.

A publicação das obras ‘Laços de família’ e ‘A legião estrangeira’ aproximou Clarice Lispector dos leitores. A época da publicação das obras era propícia para o desejo transgressor  expressado, abrindo canais para a necessidade de libertação e reposicionamento das pessoas. 

Muitos falam da relação de Clarice Lispector com a bruxaria.Talvez ela tenha influenciado mais os bruxos do que vice-versa. O mal é uma categoria importante na obra clariciana e talvez por aí haja correspondências com a magia e a bruxaria. Ela via o mal como pulsão transgressora de tudo o que teima em permanecer o mesmo.

Dizia sempre que havia nascido para escrever e amar. Mesmo com o amor à literatura – face luminosa da sua intensidade como escritora – ela carregou as marcas da negatividade e da redenção. Escrever, dizia Clarice Lispector, “é uma maldição. Mas uma maldição que salva”.

Ela ocupa um espaço de proeminência na literatura brasileira Apesar de ser considerada uma autora difícil, Clarice Lispector encontrou uma linguagem de comunicação das coisas mais profundas e densas de sua experiência de vida. 

O tema fundamental na obra da escritora é a própria linguagem. Ela explora o discurso, a palavra, combinações, fluências, ausências, para atravessar a palavra e pescar a não-palavra, aquilo que não pode ser dito. 

A obra de Clarice é um crescendo. Ela começa fechada, complexa e muito sintética, amalgamada, e vai se espraiando. Nos vazios e silêncios, vai recolhendo mais capacidade de expressão do que inicialmente. Sua obra transita em um tempo de grandes alterações, tanto da escrita, da comunicação literária, quanto da condição feminina.

segunda-feira, 17 de agosto de 2020

Poeta, místico, missionário

Antonio Carlos Lua

Em 1968, o Brasil assistiu o endurecimento do Governo Militar, com a publicação do Ato Institucional nº 5, dando plenos poderes para o Presidente da República decretar a intervenção nos estados e municípios, suspender os direitos políticos de qualquer cidadão pelo prazo de 10 anos, bem como cassar os mandatos eletivos federais, estaduais e municipais.

A publicação do AI-5 ocorreu no momento em que a Igreja Católica vivenciava o Concílio Ecumênico Vaticano II, convocado pelo Papa João XXIII e continuado por seu sucessor, o Papa Paulo VI. Foi o maior acontecimento religioso do Século XX, em uma das mais significativas reformas da história da Igreja Católica.

Foi nesse período que o jovem padre claretiano Pedro Casaldáliga chegou ao Brasil, vindo da Espanha para atuar em Mato Grosso, região caracterizada pelos conflitos agrários, pobreza e violência. 

Casaldáliga exerceu sua missão religiosa de forma profética e ficou conhecido pela produção literária, tanto de poesias quanto de manifestos, artigos, cartas circulares e obras com cunho político ou com temas ligados à espiritualidade, publicadas tanto no Brasil como no exterior. 

Ele escrevia pela mesma razão dos profetas bíblicos, que faziam da poesia uma forma de denúncia de injustiças e anúncio de um novo tempo. 

Em 27 de agosto de 1971, o Papa Paulo VI o nomeou bispo da Prelazia de São Félix do Araguaia, caracterizando sua proximidade com o povo e o engajamento com as causas dos índios e lavradores. Casaldáliga foi um símbolo para os movimentos sociais, mesmo quando isso representava ameaça à sua vida.

No dia 8 deste mês Dom Pedro Casaldáliga nos deixou e  voltou para a casa do Pai, onde encontrou com seus irmãos de Episcopado Dom Helder Câmara, Dom Paulo Evaristo Arns  e Dom Ivo Lorscheiter, referências para aqueles que se dedicam às causas sociais num país marcado pela desigualdade, violência e descrença.

Profeta corajoso, Dom Pedro Casaldáliga foi um poeta de mãos operosas e místico de olhos abertos. Ao publicar, em 1971, a Carta Pastoral "Uma Igreja da Amazônia em Conflito com o Latifúndio e a Marginalização Social" sofreu retaliações com ameaças de morte e de expulsão do Brasil. 

Como religioso, ele articulou travessias e abriu fronteiras para consagrar a vida num horizonte em movimento de esperança. Viveu num “palácio” de madeira humilde, totalmente desnudado. Era tão identificado com os indígenas e os lavradores que quis ser enterrado no “Cemitério do Sertão”, onde os anônimos, os condenados em vida à escravidão, jazem. 

Em um de seus poemas Casaldáliga escreveu: “Para descansar quero só uma cruz de pau como chuva e sol, os sete palmos e a Ressurreição”. Este é o epitáfio que ele pediu para ser colocado em sua tumba, no cemitério dos excluídos, em São Félix do Araguaia. Suas últimas vontades foram simples, como sua vida inteira. Sicut vita, finis ita (Morremos como vivemos).

segunda-feira, 10 de agosto de 2020

A presença do negro na literatura brasileira

Antonio Carlos Lua

A África já deveria está, há tempos, na ponta da língua dos brasileiros com a inserção do material didático "História e Cultura Afro-Brasileira e Africana" no currículo oficial da Rede de Ensino, em cumprimento à Lei 10639/03.

O material  disponibilizado pela Unesco  foi produzido com o objetivo de despertar o interesse pela literatura africana e, consequentemente, para a leitura dos escritores negros como Machado de Assis, Lima Barreto, Nei Lopes, Muniz Sodré, Paulo Lins, Ana Maria Gonçalves, Abdias do Nascimento, Silviano Santiago e o líder abolicionista Luiz Gama, primeiro escritor brasileiro a se assumir afrodescendente.

A presença do negro na literatura brasileira – escondida em séculos de colonização e eurocentrismo – embranqueceu Machado de Assis, a tal ponto que uma agência de publicidade contratada pela Caixa Econômica Federal ressaltou num comercial supostos traços caucasianos do escritor, que era negro e neto de escravos alforriados. 

Carregando nas tintas, a agência de publicidade usou um ator branco para interpretar Machado de Assis na propaganda, onde o escritor aparece embranquecido. Internautas revoltados com o que consideraram racismo protestaram e conseguiram fazer com que a Caixa Econômica retirasse o anúncio do ar.

A verdade é que o Brasil – denominado um país multiétnico – esqueceu deliberadamente dos pioneiros autores negros e pinta até hoje um retrato ambíguo de figuras como a de Machado de Assis, que já foi acusado injustamente de agir com neutralidade na questão abolicionista. 

Porém, os textos de Machado de Assis publicados nos vários jornais onde trabalhou como jornalista, contradizem o abstencionismo do romancista de “Memórias Póstumas de Brás Cubas”. O escritor usou 23 pseudônimos nos jornais para atirar petardos nas correntes políticas retrógradas e  antiabolicionistas. 

Por causa do preconceito racial, Machado de Assis teve acesso limitado ao ensino e se tornou autodidata. Pobre, negro e epilético, enfrentou enormes dificuldades em condições completamente adversas para que se tornasse, ainda em vida, um dos mais célebres escritores brasileiros de todos os tempos.

O embranquecimento do bruxo de Cosme Velho fazia parte do silencioso projeto de genocídio do negro brasileiro que viria a ser denunciado pelo escritor Abdias do Nascimento, morto em maio de 2011, nadando contra a corrente do rio da mestiçagem de Gilberto Freyre, que camuflou a memória do passado africano e negou a alteridade dos afrodescendentes. 

Nenhum país passa pela escravidão impunemente. Autores como Lima Barreto e Machado de Assis pagaram caro por isso. Lima Barreto, por exemplo, sofreu discriminação racial e era considerado um autor de subúrbio. Foi acusado de tudo, inclusive de desleixo verbal e falta de profundidade psicológica. 

Negro num Brasil eugênico, Lima Barreto testemunhou, aos 7 anos, a abolição da escravatura, mas morreu, aos 41 anos –  meses depois da Semana de Arte Moderna – dependente de álcool e deprimido, após ser internado por diversas vezes em clínicas psiquiátricas. 

Muito se fala do seu livro “Triste Fim de Policarpo Quaresma”, mas, seis anos antes, em “Recordações do Escrivão Isaías Caminha”, Lima Barreto já denunciava a hipocrisia da sociedade brasileira, que relegou os negros ao campo dos subalternos. Ele combateu energicamente o mito da escravidão benigna, que de benigna não tinha nada.

sábado, 1 de agosto de 2020

Mazelas da República


Antonio Carlos Lua

A atual conjuntura política nacional remonta ao Brasil da década de 1930, quando o historiador e jornalista Sérgio Buarque de Holanda escreveu o livro ‘Raízes do Brasil’, mostrando que o nosso país “é um campo em que as plantas crescem, mas não se sustentam". 

É uma obra que até hoje provoca muita polêmica, trazendo males históricos do  Brasil, não podendo, no entanto, ser vista como uma caixa de pandora. 

'Raízes do Brasil' é um clássico, um livro aberto, que tem sido recepcionado de forma diferente a cada geração, por analisar o Brasil abordando todas as tensões políticas que permeiam a nossa sociedade, desde o início da sua história.

Muita coisa aconteceu na história do Brasil desde o lançamento de ‘Raízes do Brasil’, em 1936. Entretanto, o livro ainda traz um substrato que nos fornece elementos para analisar e identificar no Brasil de hoje uma conjuntura semelhante àquela época. 

É por isso que é uma obra potente, fornecendo chaves de leitura e elementos importantes para analisarmos o vazio da política representativa que se observa atualmente. 

Quando o livro foi lançado havia no plano nacional uma pergunta no ar sobre o pacto político, ou seja, que forma de convivência nos era reservada por uma matriz cultural em que as relações pessoais se sobrepõem a qualquer forma objetiva de se pensar o espaço público.

Na obra, Sérgio Buarque de Holanda enfatizou que “numa terra em que todos são barões não é possível um acordo coletivo durável”. 

Para o historiador e jornalista, quando as relações de caráter pessoal prevalecem, os sujeitos ficam amarrados numa relação de compadrio que se constrói como a própria política. 

Getúlio Vargas – ex-presidente do Brasil, que cometeu suicídio, em 1954, durante uma intensa crise política – compreendeu isso ao erigir-se demagogicamente como figura paterna, como que preenchendo o vácuo de uma expectativa muito grande sobre um “provedor”, que desse conta das promessas não cumpridas da República brasileira.

Num plano mais global, o livro aborda um tema propriamente latino-americano e talvez mundial, ao discorrer sobre o papel do líder carismático, e como ele vem preencher o vazio da política representativa no enfrentamento dos seus próprios limites, sendo, porém, incapaz de amalgamar interesses e de fazer conviver civilizadamente as diferenças.  

É nesse aspecto que está a atualidade do livro “Raízes do Brasil” nos fazendo entender que com o tempo a crise de representação política se tornou um problema permanente na democracia, quando o ódio e as polarizações abrem terreno para o ressurgimento de agendas regressivas e extremamente  perigosas. 

Esse fato pode ser constatado atualmente no Brasil, onde os mecanismos da democracia são utilizados contra a própria democracia. A xenofobia, o racismo e o sexismo estão vencendo uma agenda mais inclusiva com sinais fortes de que entramos num momento de exaustão.

‘Raízes do Brasil’ é um texto em movimento e comprova que a permanência de oligarquias na República brasileira tem a ver com a manutenção de privilégios numa sociedade marcada pela origem escravista com a superioridade de uns em relação a outros. 

Embora seja uma evidência, essa questão continua sendo negada nos tempos atuais por aqueles que querem fazer tábula rasa da história do Brasil.