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terça-feira, 19 de maio de 2020

Um dilema sem precedentes

Antonio Carlos Lua

A pandemia põe à prova nossos recursos emocionais, impondo uma desintoxicação profunda que, em certo aspecto, é benéfica por aliviar a carga da nossa hiperatividade cotidiana, nos levando a uma espécie de introversão obrigatória.

Perdemos os nossos hábitos e, talvez, a possibilidade de vivermos juntos como antes, ao ver, agora, a atmosfera depressiva e o retrato sem cor das cidades. 

Após nos fazerem acreditar que a ciência detinha o controle de todas as esferas da vida, constatamos que, apesar dos avanços científicos, um microscópico vírus nos faz cair de bruços em nossa impotência frente a ele.

A configuração sociológica nos remete à experiência apocalíptica, não de que o mundo acabou, mas de  que nada será mais como antes, não por razões ideológicas, mas sim por motivos científicos.

Apesar de tudo, o trauma coletivo da quarentena traz um aspecto positivo ao nosso alcance. Em vez de nos separar na dor, ele tornou nossas existências mais coesas, com algumas características em comum com a vida dos monges.

Agora, temos a convicção de que todos somos igualmente humanos e de que não há humanos que sejam mais humanos do que outros. Ou seja, após a pandemia não haverá nova humanidade. Haverá humanos que, com a mesma condição, não serão melhores nem piores.  

Nos sentimos mais unidos em uma comunidade feita de solidões, combatendo o desespero de uma doença perigosamente mortal, que irrompeu ferozmente em nosso cotidiano, alterando nossas vidas substancialmente.

Agora, o ‘nós’ deve prevalecer sobre o ‘eu’ com o caráter individualista dando lugar à ideia coletiva não só de liberdade, como também de solidariedade. Não poderá mais haver máscaras e ilusões. 

O recado que o vírus nos traz aponta para a necessidade de cuidarmos da Casa Comum e não esquecermos que muitos não têm casa e nem comida numa sociedade individualista, insensível, odiosa, intolerante e insustentável.

Três bilhões de pessoas no mundo – entre elas 900 milhões de crianças – não têm sequer água e sabão para lavar as mãos e se prevenir do novo coronavírus.

Na África, ao sul do Saara, 63% da população, ou seja, 258 milhões de pessoas, não têm como lavar as mãos. Cerca de 47% dos sul-africanos – o equivalente a 18 milhões de pessoas – não possuem instalações básicas para lavar as mãos. 

Na Ásia Central e Meridional, 22% das populações – o equivalente a 153 milhões de pessoas – também não possuem instalações para lavar as mãos. Mais de 50% de bengaleses urbanos (29 milhões de pessoas) e 20% dos indianos urbanos (91 milhões de pessoas) também não têm como lavar as mãos.

No Leste da Ásia, não têm como higienizar as mãos 28% dos indonésios urbanos (41 milhões de pessoas) e 15% dos filipinos urbanos (7 milhões de pessoas).

domingo, 17 de maio de 2020

O jogo mortífero e a lógica da cova rasa

Antonio Carlos Lua

A curva ascendente de infectados e mortos com a Covid-19 mostra o jogo mortífero da política macabra contra os vulneráveis jogados hoje à própria sorte com a estúpida incompetência dolorosamente revelada na ingovernabilidade destrutiva de Bolsonaro, que equaciona os vivos e os mortos utilizando a sinistra lógica da cova rasa.

O país vive hoje um dos piores momentos da sua história, ao tornar-se evidente o sacrifício de vidas em prol do funcionamento de uma máquina fundada na desigualdade e na injustiça, quando um fascista aproveita-se de uma pandemia para minar as instituições e alimentar sua ânsia de poder.

Com um discurso em favor da morte e mil tensões em sequência, Bolsonaro vem adotando a política de avestruz num clima de apocalipse e de guerra santa fanatizada, com seus fantasmas espectrais provocando ruídos no próprio governo cuja queda está na ordem do dia.

O primeiro consenso que podemos extrair da pandemia é o fracasso e a negligência do Governo Federal, que ao incorporar a inércia e a indiferença norte-americana em relação à letalidade do novo coronavírus perdeu um tempo precioso que custou e custará dezenas de milhares de vidas.

Agora, a situação piorou. A descrença se transformou em ação política, convertendo a arrogante postura governista em verdadeiro desdém organizado contra a sociedade brasileira. 

A realidade se impõe e o caos se agrava no Brasil, que é a única Nação – com exceção da Bielorrússia – cuja autoridade máxima não só minimiza a força avassaladora do novo coronavírus, como também  defende que as mortes devem fazer parte da rotina do país, custe o que custar. 

Na verdade, Bolsonaro quer escolher quem vai sobreviver e quem vai morrer, com suas políticas de controle através da morte – a chamada necropolítica – com milhares de cidadãos submetidos a condições de vida que lhes conferem o estatuto de “mortos-vivos”. 

Com uma manifestação abertamente mortífera, Bolsonaro ensaia um salto para o abismo multiplicando polêmicas e disputas políticas vazias com a produção contínua de bodes expiatórios, valorizando rixas improdutivas em seus círculos de fanatismo e canalizando energia antissistêmica para a exposição da população à morte. 

domingo, 3 de maio de 2020

As câmaras de eco dos fascistas online

Antonio Carlos Lua

Estamos cruzando as portas de um novo tipo de civilização – a digital – com as modernas tecnologias levando à conectividade de tudo, em registros digitais cuja integridade é garantida pelo uso de complexas criptografias. 

Não é preciso ser marxista para entender que os novos modos de produção estão tendo repercussões em cascata nas esferas da sociedade, na política e na cultura. 

Diante das mudanças, confrontam-se duas narrativas. Uma é catastrófica com o fim do trabalho humano. A outra – triunfalista – com as máquinas fazendo o esforço no nosso lugar. 

Não há dúvidas de que a civilização digital tem efeitos positivos em termos de prosperidade material, de oportunidades de escolha, de acesso ao conhecimento, interação e trocas em escala global. Hoje, basta um clique para ter acesso a todos os tipos de informação, inclusive aquelas sobre o que os políticos estão fazendo, em todos os níveis de governos.

Mas é preciso separar o joio do trigo. Existe o outro lado da moeda, que é a inundação das notícias falsas – as chamadas fake news – que funcionam como câmaras de eco dos fascistas online, com os discursos de ódio racial, étnico, religioso e de práticas manipuladoras da pós-verdade.

Existem três tipos de fake news. O primeiro é o boato espontâneo, que nasce do nada e se alastra como fogo. O segundo tem a intenção de fazer dinheiro. É quando a manchete chama atenção e a pessoa desatenta clica e chega a um site cheio de publicidade. O terceiro tem objetivo político e ocorre quando várias notícias falsas surgem ao mesmo tempo colocando histórias no ar, sem que se consiga descobrir e mapear o seu percurso.

O mundo está, convenhamos, perdido no que se refere a relação entre tecnologia e política. Em cada manifestação de políticos nas redes sociais surgem mais dúvidas do que certezas. Há uma verdadeira desinformação, através de uma miríade de posts ad hoc (com um fim específico) para influenciar a orientação política de milhões e milhões de usuários das redes sociais. 

Hoje, os humanos – e não os robôs – são os principais responsáveis pela disseminação de informações enganosas, que se espalham mais rapidamente do que as notícias reais por uma margem substancial, embora se destruam também mais amplamente do que a verdade em todas as categorias de informação. As informações falsas, com histórias inexatas e notícias imprecisas, são mais replicadas do que as histórias reais, verdadeiras.

Na discussão sobre as notícias falsas é pertinente saber se é possível eliminar a mentira da política. A informação duvidosa, distorcida e quase inverossímil deve ser criminalizada no debate político? Se a resposta for sim, então uma das primeiras providências a adotar é proibir o marketing e as técnicas de publicidade nas eleições. 

A propaganda – seja comercial ou política – seleciona elementos positivos de um candidato e os superdimensiona ou os contextualiza de modo a atrair as atenções para algo que não é efetivamente encontrado na realidade. Dito de outro modo, ela exagera, distorce.

Os governos e governantes só falam a verdade? Não! Os países convivem até mesmo com legislações que protegem ações obscuras alegando defender a sociedade. São as razões de Estado. 

Para citar um único exemplo, devemos relembrar as denúncias de Edward Snowden, ex-administrador de sistemas da CIA e ex-contratado da NSA, que trouxe a público documentos ultrassecretos que deixavam clara a vigilância norte-americana a cidadãos comuns, num escândalo que fez alterar legislações mundo afora. 

Seguindo a espetacularização que se tornou norma em nossa sociedade, algumas autoridades deveriam declarar guerra às chamadas fake news, eliminando as inverdades, os exageros e as distorções do Congresso Nacional.

Dizem que os chineses possuem exércitos prontos a teclar e a postar inúmeras mentiras e notícias falsas para alterar o resultado de eleições. Qualquer um pode contratar os chineses, a máfia russa, as empresas de negócios escusos que atuam criminosamente na rede mundial de computadores. 

A propaganda paga impulsionada nunca será transparente diante das mediações políticas e faz prevalecer as inverdades, as adulterações e deformações dos fatos, suas causas e consequências. São as notícias falsas que sustentam as escolhas políticas, sendo as mesmas um dos instrumentos de manipulação e luta pelo poder político. 

Empiricamente, é muito fácil constatar que a democracia brasileira convive hoje com grandes mentiras, que destilam o ódio, o racismo, a homofobia, a misoginia e o fundamentalismo religioso, sem os elementos constitutivos daquilo que é verdadeiro.

Quase todas as guerras modernas começaram a partir de mentiras, de notícias falsas. No caso dos Estados Unidos, praticamente nenhuma guerra que o país realizou deixou de se valer de uma notícia falsa como ponto de partida. 

Basta lembramos as supostas armas de destruição em massa do Iraque, nunca encontradas. A essa notícia falsa devemos a morte de 400 mil crianças e um embargo que impediu a chegada de remédios no Iraque 

Muitas vezes, quando os políticos citam números em seus discursos, eles fingem ser objetivos, quando na verdade escondem debaixo do tapete suas escolhas subjetivas. 

O problema em torno da informação na contemporaneidade se torna mais grave porque as discussões ocorrem em ambientes de midiatização extremamente forte e precisam obedecer e se submeter, antes de tudo, às regras de certas mídias.

A maioria das controvérsias políticas contemporâneas são falsas, graças ao trabalho de desinformação que cria múltiplas e contraditórias hipóteses poluindo a esfera do debate, neutralizando a capacidade dos fatos verdadeiros alcançarem as pessoas.

Vários fatores colaboram para que as pessoas sigam consumindo e reproduzindo notícias falsas, entre elas aquela relacionada à ideia de dissonância cognitiva, segundo a qual somos propensos a acreditar no que agrada às nossas ideias preestabelecidas e a não acreditar naquilo que as confronta, independentemente do que os fatos digam a respeito.

Em razão disso, o trabalho das agências de checagem de informação, que têm se multiplicado mundo afora, é insuficiente para impedir o agravamento do fenômeno das ‘fake news’ e da manipulação da informação. 

O que está na base desse processo de crença nas mentiras não é apenas a ignorância. Quando se constrói mentiras que agradam a um grupo, mesmo que sejam desmascaradas, elas seguem funcionando naquele grupo e usadas e reproduzidas por ele. Aquele que as desmascara recebe de volta simplesmente o ódio. Exemplos recentes comprovam isso.