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domingo, 24 de setembro de 2017

Democracia sem voto

Por Antonio Carlos Lua

Democracia sem votos não existe, mas no Brasil políticos que não receberam um único voto do eleitor no processo eleitoral estão no Senado Federal no exercício do mandato e na plenitude das prerrogativas parlamentares, em flagrante violação à vontade soberana das urnas.

São os senadores suplentes, que podem ser considerados tão biônicos como aqueles que faziam parte do conjunto de medidas conhecidas como ‘Pacote de Abril’, lançado, em 1977, pelo Governo do general Ernesto Geisel, durante a Ditadura, com o apoio da Aliança Renovadora Nacional (Arena), partido conservador de sustentação do regime militar.

A suplência senatorial no Brasil assemelha-se ao sistema adotado na Roma Antiga, quando a posse de riquezas e o prestígio junto aos governantes eram os critérios de escolha dos representantes políticos.

É uma excrescência que torna o voto peça irrelevante no processo eleitoral, evidenciando os efeitos de uma democracia imperfeita, nos moldes daquela que o ex-primeiro-ministro britânico, Winston Churchill, disse ser a pior e a mais cruel para uma nação.

O senador suplente é imposto por conveniências partidárias. Sem a unção das urnas, ele distorce a representação popular, fazendo com que os níveis de fair-play político no país continuem baixos, com cada um aquilatando o valor da democracia pelos seus interesses.

Os escolhidos para suplentes são pai, filho, irmão, mulher e grandes empresários desprovidos de qualquer identificação com o povo, com o cargo e com a política.

Em numerosos casos o suplente se reveza com o titular no exercício do mandato, cuidando diretamente de seus interesses privados junto ao Estado. Ou seja, a suplência acaba funcionando como um prêmio pelo apoio financeiro.

Demasiadamente maléfica para o eleitor, a conveniência produz dividendos eleitorais consideráveis para o escolhido, que ganha assento no Senado, valendo-se de uma regra que fere princípios vitais da democracia.

O convite à negociata eleitoral é evidente. A artimanha do compadrio cria anomalias e rejeita iniciativas tópicas que tentam corrigir as distorções, sendo estas iniciativas submetidas ao paradoxo de serem votadas pelos que delas se beneficiam.

A natureza espúria do sistema da suplência senatorial evidencia uma latente contradição política. Um país que não consegue interpretar o princípio constitucional de que “todo poder emana do povo e em seu nome é exercido” está realmente fadado a continuar sendo empurrado para o Terceiro Mundo.

A suplência senatorial no cenário político não se coaduna com os ideais democráticos republicanos. Ela vulnera o princípio da representação e torna espúrio o processe político.

Sua revogação é a única maneira de recolocar a política em ambiente respeitável. Não com engodo eleitoral ou com arremedo de reforma política que tornou-se mais uma das incontáveis ilusões vendidas no Congresso Nacional.

domingo, 17 de setembro de 2017

Direito ao esquecimento


Por Antonio Carlos Lua

A controvérsia sobre a liberdade de imprensa e expressão e a preservação da intimidade e da imagem – dois direitos fundamentais garantidos pela Constituição Federal – chega ao Supremo Tribunal Federal (STF) na polêmica ação que trata do ‘direito ao esquecimento’, ou seja, o direito de uma pessoa requerer a retirada definitiva de dados pessoais que sejam considerados indevidos ou prejudiciais à sua imagem, honra e nome, de qualquer veículo de comunicação de massa.

O STF reconhece que a missão é espinhosa e está buscando um equilíbrio virtuoso para deixar que as liberdades garantam a dignidade, mas que a liberdade de um não se sobreponha à de todos os outros, de tal maneira que não tenhamos mais condições de saber qual é a nossa história, qual é o nosso passado.

O que a Suprema Corte de Justiça do país vai analisar é o que é a memória de alguém, que precisa ser resguardada e não pode ser discutida, e o que não pode ser guardado porque constitui não memória individual, mas memória coletiva. 

O resultado do julgamento no STF terá reflexos sobre os casos semelhantes – a chamada repercussão geral – definindo um entendimento único, que deverá ser seguido pelo Judiciário em todo o Brasil.

Há três linhas jurídicas de pensamento bem delineadas na discussão do tema. Os juristas que são contra o direito ao esquecimento dizem que – além de não constar expressamente na legislação brasileira – esse direito não poderia ser extraído de qualquer direito fundamental, nem mesmo do direito à privacidade e à intimidade.

Assim, um direito ao esquecimento seria, ademais, contrário à memória de um povo e à própria História da sociedade. A liberdade de informação prevaleceria sempre e a priori, à semelhança do que ocorre nos Estados Unidos.

Na defesa desse posicionamento, é importante invocar a jurisprudência mais recente do Supremo Tribunal Federal, especialmente o célebre precedente das biografias não autorizadas (ADI 4815), quando a Corte, por unanimidade, declarou inexigível a autorização prévia para a publicação de biografias, em consonância com os direitos fundamentais à liberdade de expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença de pessoa biografada.

De forma geral, vale argumentar que o direito ao esquecimento é desnecessário no Brasil, que já possui garantias constitucionais que protegem a honra, sendo a lei atual suficiente para proteger os chamados direitos de personalidade, isto é, a dignidade da pessoa, nos aspectos físicos, psíquicos e morais.  

Entretanto, em contraposição a esse entendimento, os defensores do direito ao esquecimento apontam que ele não apenas existe, como deve preponderar sempre, como expressão do direito da pessoa humana à reserva, à intimidade e à privacidade.

A alegação é de que na esteira da cláusula geral de tutela da dignidade da pessoa humana – valor supremo na ordem constitucional brasileira – esse direito prevaleceria sobre a liberdade de informação acerca de fatos pretéritos, não atuais. 

Argumentam que entender o contrário seria rotular o indivíduo, aplicando “penas perpétuas” por meio da mídia e da internet.

Os juristas dessa corrente amparam-se na decisão proferida pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ), em 2013, no caso da Chacina da Candelária, no qual aquela Corte reconheceu um direito ao esquecimento que definiu como “um direito de não ser lembrado contra sua vontade” (REsp 1.334.097/RJ). 

Aludem, ainda, à experiência européia que  em tese jurídica contrária à experiência norte-americana  inclina-se pela prevalência do direito ao esquecimento.

Os precedentes desse direito estão na ideia de que, por exemplo, um indivíduo que tenha cumprido pena na prisão não seja prejudicado por isso ao procurar um emprego e se reinserir na sociedade, uma vez que seu nome pode ser encontrado em poucos cliques nos motores de busca do Google, aparecendo, fatalmente, a notícia sobre sua condenação.

Na discussão do polêmico tema, surgem, no entanto, juristas que assumem uma posição intermediária, com o entendimento de que a Constituição Federal não permite hierarquização prévia e abstrata entre liberdade de expressão e privacidade, da qual o direito ao esquecimento seria um apenas um desdobramento.

Enfatizam que – figurando ambos como direitos fundamentais – não haveria outra solução tecnicamente viável que não a aplicação do método de ponderação, com vistas à obtenção do menor sacrifício possível para cada um dos interesses em colisão. 

Defendem também que o tema não pode ser tratado de forma binária, já que existe uma grande margem entre o sim e o não para aplicação do direito ao esquecimento.

O Supremo Tribunal Federal, por meio de audiências públicas, reuniu todos os subsídios para julgar, com equilíbrio, o caso em análise. Uma coisa é certa: estaremos diante de um julgamento que será difícil de esquecer.

domingo, 10 de setembro de 2017

Déficit democrático

Por Antonio Carlos Lua

Numa sociedade construída sob a égide do machismo e do patriarcalismo, a representatividade política das mulheres no Parlamento brasileiro continua sendo balizada por expressivo quadro de iniquidade, prevalecendo ainda os valores e referenciais masculinos nas instâncias decisórias.

Mesmo com a Constituição Federal de 1988 – que representou um marco na luta por igualdade de gênero, trazendo um aparato normativo que é referencial no tocante ao direito das mulheres – as estatísticas não apontam redução na espiral de desigualdade, uma vez que os estereótipos de gênero continuam destinando aos homens as atividades do espaço público e às mulheres, as do espaço privado.

Embora ocupem hoje campos importantes em profissões que até há pouco tempo eram exercidas predominantemente pelos homens – reafirmando a máxima de que competência não tem gênero – as mulheres ainda enfrentam mecanismos de neutralização instituídos para tornar desigual a sua participação no exercício do poder político. 

Os partidos políticos fazem pouco esforço para cumprir a Lei 12.034/2009, segundo a qual todas as legendas são obrigadas a ter pelo menos 30% de candidaturas femininas.

A atual Carta Magna é perfeita quanto ao tratamento dos sexos. Além disso, as importantes inovações introduzidas no Código Civil, de 2002, e as pequenas mudanças efetivadas ao longo dos anos no Código Penal, de 1940, extinguiram inúmeros dispositivos que diminuíam ou subjugavam a figura feminina. 

Apesar disso, o machismo permanece enraizado na política brasileira. O termo ‘déficit democrático de gênero’ não está na agenda política do país, impedindo o acesso das mulheres às instâncias de poder.

Historicamente, o Parlamento brasileiro sempre marginalizou as mulheres, impondo uma clara obstrução política para não levar o sistema representativo ao universo feminino. 

Ao longo dos séculos, a representação política sempre foi um 'affair' masculino no Brasil, que promoveu um 'apartheid' das mulheres, isolando-as dos debates partidários e delimitando um quadrado como se somente ali elas pudessem se manifestar politicamente.

As Constituições do Império (1824) e da República Velha (1891) não concederam às mulheres o direito de votar e nem de serem votadas, situação que persistiu até as primeiras décadas do Século XX. 

Embora desde 1932 as mulheres tenham obtido o direito de votar (jus suffraggii) e de serem votadas (jus honorum), na prática, elas continuaram excluídas das instâncias políticas de decisão.

Mesmo que o segmento feminino represente 53% do eleitorado e tenha capacidade de contribuir para a construção de um projeto emancipatório para a sociedade, a presença de mulheres em posições de comando na política no Brasil é mais baixa do que em países como o Haiti, Ruanda, Afeganistão, Iraque, Paquistão, Síria, nos levando a ocupar a vexatória 154ª posição no ranking mundial de representação feminina no Legislativo, produzido pela ONU.

Isso acontece porque as práticas partidárias excludentes permanecem operando sobre as mulheres, mantendo-as afugentadas da composição formal do poder político, reflexo de uma visão patriarcal conservadora e de um modelo de cidadania que privilegia a imagem masculina no espaço público.

O que as mulheres buscam hoje é a igualdade de direitos políticos, direitos humanos, direitos constitucionais legítimos, direito ao respeito, à dignidade, à educação, à moradia, à saúde, ao trabalho, à cultura, à cidadania.

Não é possível fechar os olhos para a realidade perversa que as mulheres herdaram desde a longínqua história das civilizações. É preciso uma tomada de consciência radical por parte da sociedade, que deve se engajar na luta contra esse flagelo social milenar.

segunda-feira, 4 de setembro de 2017

Limites da imunidade

Por Antonio Carlos Lua

Os políticos brasileiros não têm uma percepção de si mesmos como potenciais infratores da lei e  em tempos de moral social degenerada  querem se tornar invisíveis aos olhos da Justiça, imitando Giges, personagem do livro “A República”, do filósofo da Grécia Antiga, Platão, fundador da Academia de Atenas.

Na obra, Platão narra que, após uma tempestade, seguida de um tremor de terra, o chão se abriu e formou uma enorme cratera, onde Giges, um camponês, cuidava do seu rebanho. 

Surpreso e curioso, Giges entrou na cratera e descobriu um cavalo de bronze cheio de buracos, através dos quais enfiou a cabeça, encontrando, no fundo do abismo, o cadáver de um homem, que trazia apenas um anel em um dedo. Ele tirou o anel e tratou de fugir do local.

Mais tarde, reunindo-se com outros camponeses para fazer o relatório do rebanho ao Rei, Giges colocou o anel no dedo e girou por acaso o engaste para o interior da mão e imediatamente tornou-se invisível para os demais presentes. 

Admirado com a descoberta desse poder e seguro de si, dirigiu-se, sem titubear, ao Palácio, onde seduziu a rainha, assassinou o Rei, usurpou o trono e deu início a sua longa dinastia, cometendo inúmeros crimes.

É assim que muitos políticos se comportam favorecendo-se da invisibilidade que a imunidade parlamentar lhes oferece, usando suas prerrogativas para agir contrariamente às virtudes da Justiça, subvertendo os valores morais da sociedade, como se fossem imunes à legislação vigente no país.

Uma das maiores mazelas sociais do Brasil – a corrupção – impera porque muitos políticos, em atos que não têm nenhuma conexão com o efetivo exercício da atividade política, cedem lugar às manobras escusas como se vivêssemos numa aristocracia, onde uma elite política se coloca acima da lei.

A Constituição Federal define, em seu artigo 53, a imunidade como direito dos parlamentares de falar, opinar e votar de forma livre e soberana, sendo estes invioláveis por suas opiniões, palavras e votos, protegidos de retaliações ou perseguições.

O problema é que muitos políticos confundem essas prerrogativas com privilégios pessoais e tentam transformar o instituto num "guarda-chuva" de práticas ilícitas generalizadas em relações privadas que caracterizam desvio de finalidade do instituto da imunidade parlamentar.

Essa visão de que a coisa pública não é de ninguém é decorrência dos privilégios políticos que marcaram o processo de formação do Estado, fazendo com que o Brasil  que formalmente é uma República  insista em ser ainda um país de súditos.

Os "yahoos" da política não deixam o Brasil concretizar o seu ideal republicano. Se eles lessem o noticiário da Escandinávia seriam capazes de dar um rim, cada um, para viver longe do exótico conceito nórdico de democracia.

Eles esquecem que a imunidade não é pelo mandato, mas sim para o mandato. O parlamentar a detém para o exercício de sua função, e não pelo exercício dela. É protegido para ser, e não por ser. 

É princípio basilar do Estado Democrático de Direito a responsabilização de qualquer cidadão que infringe a lei, independentemente de sua graduação ou cargo que exerça.

Privilégios desvirtuados não podem ser considerados garantias constitucionais, mas sim ofensa à ordem pública. 

Prerrogativas obscuras traduzidas nas possibilidades de permitir desmandos, atos explícitos de corrupção, peculato, estelionato e outros golpes ainda não batizados na seara política brasileira representam a falência do Estado Democrático de Direito.