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domingo, 24 de novembro de 2019

Gabriel García Márquez: a literatura e o jornalismo como lugar de encontro


Antonio Carlos Lua

Quando o jornalista colombiano, Gabriel García Márquez, lançou – há meio século – o romance ‘Cem Anos de Solidão’, ainda não era reconhecida no mundo a grande matriz cultural que constitui a América Latina. 

O livro – uma das melhores obras hispano-americanas – criou paradigmas de identidade, contribuindo para a reinvenção de um continente plural, que agrega circunstâncias múltiplas e abarca uma gama considerável de culturas e práticas sociais.

Sobre a narrativa da obra mais célebre do jornalista colombiano, a primeira premissa a ser pensada é a que se refere à circularidade, com os fatos sendo sempre uma repetição com nova roupagem de fatos anteriores. Os personagens são espelhados e multiplicados uns nos outros. As histórias são releituras umas das outras.

O romance permite uma visão privilegiada sobre a Colômbia, com a exposição clara do imaginário e da simbologia que perpassa a consolidação do país, onde a vida é uma luta pelo mínimo necessário e a fratura que divide as classes pobres das elites que as desprezam.

‘Cem Anos de Solidão’ é uma busca pela identidade latino-americana, revelando sua história, decifrando suas origens, tendo a literatura e a arte como lugar de encontro. É um livro extraordinário, que exerce uma espécie de encantamento permanente, com uma narrativa impregnada de duplicidades e antagonismos. 

A crítica literária cunhou a expressão “realismo mágico” ou “realismo fantástico”, para classificar “Cem Anos de Solidão”, cuja principal característica é lidar com situações inusitadas e, até, irreais, como se estas fizessem parte do cotidiano. 

Com a obra, Gabriel García Márquez – vencedor do Prêmio Nobel da Literatura, em 1982 – fez eclodir a bomba literária na América Latina. Foi a partir do livro que a literatura mundial começou a enxergar os escritores latino-americanos, abrindo as portas da cultura ocidental.
‘Cem Anos de Solidão’ é um marco literário sem precedentes e se firmou como clássico, não apenas da literatura latino-americana, como também da literatura mundial. Publicado em 1967, foi o livro mais lido do chamado boom da literatura latino-americana. 

Sedutora pelo enredo, a obra – estudada pela crítica literária em numerosos ângulos e facetas – relaciona jornalismo, literatura, lendas e mitos da América Latina, mostrando que no universo cultural do continente o real e o irreal convivem e se complementam.

A paisagem estabelecida por Gabriel García Márquez no livro é a da coleção de histórias, lendas e mitos do continente latino-americano. Dialogando com magia, ele  busca na cultura popular os elementos de sustentação literária.

A obra é uma releitura magistral da relação que a Colômbia construiu historicamente dentro da ideia de Nação que as elites andinas representadas por Bogotá se identificavam. Nela encontramos lado a lado episódios que poderiam ser chamados de “realistas” no sentido tradicional do termo e que poderiam estar presentes em qualquer romance realista.

‘Cem Anos de Solidão’ continua sendo fundamental na criação de uma identidade da Colômbia, onde existe hoje um forte movimento cultural que se deve, em grande medida, a obra de Gabriel Garcia Márquez. Assim, podemos dizer que se Cervantes fundou a Espanha, Gabriel García Márquez fundou a Colômbia.
Além de ‘Cem Anos de Solidão’, o jornalista Gabriel García Márquez – um dos escritores mais admirados e traduzidos, com mais de 40 milhões de livros vendidos em 36 idiomas – é autor de obras clássicas como ‘O Amor nos Tempos do Cólera’, ‘Ninguém Escreve ao Coronel’ e ‘Crônica de uma Morte Anunciada’. 

Gabriel García Márquez nasceu em Aracataca e criou um território eterno chamado Macondo, onde convivem imaginação, realidade, mito, sonho e desejo. 

Assim como o escritor Guimarães Rosa e o ensaísta, escritor e músico cubano, Alejo Carpentier, Gabriel García Márquez tenta em suas obras retratar e estabelecer a cultura popular, sendo este o elemento de legitimidade de suas narrativas. 

Tanto Gabriel García Márquez como Guimarães Rosa e Alejo Carpentier fizeram viagens para dentro. Em fevereiro de 1952, Gabriel García Márquez faz a sua “mítica viagem” à Aracataca, povoado colombiano onde nasceu e de onde teria surgido sua vocação de escritor.

Em junho do mesmo ano, ou seja, três meses depois, Guimarães Rosa fez uma longa viagem pelo sertão. Nessa viagem ele desenvolveu a pesquisa para a produção do livro ‘Grande sertão: veredas’ e outras obras, a exemplo do ‘Buriti’. 

Em janeiro de 1953, o cubano Alejo Carpentier termina o seu mais importante livro, ‘Los pasos  perdidos’, obra que narra uma viagem ao interior de um país sul-americano por um artista frustrado, que teve a oportunidade de revitalizar sua força criadora. 

No livro ‘Buriti’, de Guimarães Rosa, Miguel retorna ao sertão em busca de seu passado e encontra o amor em Maria da Glória depois de uma vida vazia na cidade. 

Ou seja, dessa forma, tanto Gabriel García Márquez como, Guimarães Rosa e Alejo Carpentier colocam a viagem a razão de ser de suas obras,

Gabriel García Márquez nem sempre foi uma unanimidade como nos parece hoje. Partes de sua obra foram censuradas na antiga União Soviética, onde passou uma temporada escrevendo uma série de reportagens sobre a vida no bloco comunista, na década de 1950. 

A tradução feita nos Estados Unidos passou inicialmente despercebida, e, nos países árabes, como o Irã, os livros eram vendidos no mercado negro, pois não havia permissão para publicá-los. Até mesmo na Colômbia, ele inicialmente não foi uma unanimidade. 

Amigo de Fidel Castro, ele não era visto com bons olhos pelo governo da Colômbia, o que dificultou a aceitação da obra pelo particular posicionamento que o relacionava com o pensamento utópico de esquerda, que depois da Revolução cubana, começava a ter grande acolhida em todos os países latino-americanos e caribenhos.

Por conta de sua forte relação com a esquerda, Gabriel García Marquez teve que sair da Colômvia, na década de 1970, protegido diplomaticamente pela embaixada do México, depois da emissão de uma ordem de prisão contra ele, na qual era acusado de cooperar com a guerrilha e apoiar as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farcs), criada em 1964 numa ação política do Partido Comunista Colombiano. 

A profissão de jornalista – exercida durante muitos anos por Gabriel García Márquez – fez com que ele testasse em seus livros muitas de suas técnicas narrativas de documentário, com longas reportagens escritas em forma de romance, como ‘Notícias de um sequestro’, ‘A aventura de Miguel Littín clandestino em Chile’,’Relato de um náufrago’, entre outras publicações do jornalista.

São textos híbridos, formados pela mistura de romance e reportagem. Contudo, não se pode esquecer que Gabriel García Márquez se formou na escola jornalística norte-americana da qual saíram também nomes como o do escritor e jornalista norte-americano, Truman Capote. 

Gabriel García Márquez – que faleceu em 17 de abril de 2014 – partia da ideia de que a reportagem é uma construção linguística, que pretende ter como referencial a “realidade”. Mas como construção linguística, estaria sujeita mais à própria linguagem que aos imperativos do fato.

Gabriel García Márquez iniciou a carreira de jornalista no “El Espectador', o jornal mais importante da Colômbia. Dizia sempre que ser repórter era a melhor profissão do mundo. Ele justificava isso a partir da ideia de que o repórter escuta as histórias alheias e tem por obrigação contá-las a outros.

Ponto de vista

‘Cem anos de solidão’ é um livro sedutor pelo enredo, com várias gerações se sucedendo. É um romance com sopro épico. A obra dá notícia de um mundo fenecido, um mundo soterrado pela modernização das relações de mercado, mundo que no romance aparece na forma de uma consciência irracional, ou pré-racional, presente em grande parte dos personagens. 

Cem anos de solidão contribuiu para modificar a visão que o restante do mundo tinha da América Latina. Ele fez parte do "boom" dos anos 1960 e 1970, quando grandes escritores latino-americanos, particularmente hispano-americanos, entraram em circulação na Europa e nos Estados Unidos, algumas vezes em tradução para o francês e o inglês. 

Foi uma revelação para os europeus cansados de narrativas pálidas, autocentradas, ligadas a um mundo solipsista, de indivíduos sem rumo vivendo em cidades opressivas. 

Escritores como Gabriel Garcia Márquez sopraram nas brasas do romance e deram um novo fôlego para a narrativa ocidental, enquanto narravam as mazelas do continente americano, contando as histórias locais que estavam soterradas, que nunca tinham encontrado voz literária, porque se tratava de imaginário muito ligado ao mundo indígena, de gente miserável que não se tinha integrado à cidade moderna.

Há características que aproximam a obra ‘Cem anos de solidão’ de sagas como ‘O tempo e o vento’, de Erico Veríssimo. Há, em primeiro plano, uma multiplicidade de personagens, cujas histórias são contadas por várias gerações. 

Sob esse ponto de vista, pode-se fazer uma aproximação entre o fato de García Márquez compor a cidade de Cem anos de solidão, Macondo (que já havia aparecido, por exemplo, na obra O enterro do diabo), com características da cidade onde nasceu, Aracataca, assim como em O tempo e o vento pode-se estabelecer uma ligação entre Santa Fé e Cruz Alta.

Essas questões têm bastante relação. Um escritor e roteirista brasileiro chamado Doc Comparato  relata que García Márquez conheceu O tempo e o vento e admirou muito o modo como Erico Verissimo tinha equacionado o relato das várias gerações e tempos. 

Ele teria afirmado que depois da leitura do clássico de Erico é que ele teria encontrado o caminho para escrever Cem anos. Quanto ao aspecto biográfico, seguramente há algo de depoimento verdadeiro nas cidades imaginadas pelos dois grandes narradores.


O livro Cem anos de solidão é como uma saga familiar profundamente histórica que dá notícia interna do funcionamento da opressão e do funcionamento do choque radical entre um mundo que funciona pela lógica pré-mercantil e outro em que essa regra já está no comando, tudo isso contado com maestria, misto de lirismo, caráter épico e humor.


quarta-feira, 20 de novembro de 2019

Zumbi: símbolo de luta e resistência


Antonio Carlos Lua

O Dia da Consciência Negra, comemorado nesta quarta-feira, 20 de novembro – data da morte em combate de Zumbi dos Palmares – é o momento para rememorar as conquistas, reconhecer os avanços e refletir sobre os desafios e obstáculos ainda a superar na luta por uma sociedade mais equânime, capaz de reconhecer a sua origem e a sua história a partir da herança cultural negra

Herói negro genuinamente brasileiro que teve sua trajetória negligenciada durante muito tempo pela historiografia oficial, Zumbi foi líder do Quilombo dos Palmares, comunidade formada na Serra da Barriga, em Alagoas, que representa um dos mais significativos movimentos de resistência e luta contra a opressão.

Zumbi nasceu com o corpo e o espírito livres da escravidão. Com poucos dias de vida ele é levado por tropas militares após um ataque à sua comunidade. Recém-nascido, Zumbi é entregue a um padre que o batiza com o nome de Francisco. O religioso o educou, o alfabetizou e ensinou-lhe Latim. Considerado muito inteligente pelo padre, o menino torna-se coroinha aos dez anos.

Aos 15 anos de idade Francisco foge para o Quilombo dos Palmares, assumindo o nome africano de Zumbi. Passa então a lutar por liberdade à frente de um exército formado por negros fugidos, índios e brancos pobres. 

Em sua trajetória de lutas está Dandara dos Palmares, sua companheira de vida e de combate na defesa do quilombo. Dandara se tornou ícone da força feminina na resistência contra a escravidão, representando a importância do papel das mulheres na história.

Após décadas de combates e vitórias, o Quilombo dos Palmares foi aniquilado pelo forte armamento de fogo e grande contingente militar. No último confronto, em 20 de novembro de 1695, Zumbi foi morto lutando.

domingo, 17 de novembro de 2019

O pecado original da nossa República


Antonio Carlos Lua

Em 15 de novembro de 1889, um grupo de militares liderados pelo marechal Manuel Deodoro da Fonseca destituiu o imperador Pedro II e instalou um governo provisório republicano. 

Unindo-se aos latifundiários contrários à abolição, os militares transformaram os Estados em feudos dos coronéis da política e colocaram o Brasil sob a tutela do Estado por quase um Século. 

Ressentidos com o fim da escravidão, eles instalaram um sistema político arcaico e quase feudal, transformando o Brasil numa vulgar República de chefetes de aldeia e caudilhos regionais

Embora a historiografia tradicional ainda aponte que o marechal Manuel Deodoro da Fonseca foi o líder do movimento, sabe-se que, de fato, a República foi proclamada na Câmara-Geral do Rio de Janeiro, então capital do Brasil. Esse teria sido apenas o ponto alto de um longo movimento republicano que tensionava o Império. 

A verdade é que a celebração dos 130 anos da instalação da República não é uma festa plena. Vivemos numa grande República que ainda não pratica valores republicanos dentro do lastro dos princípios de igualdade, que nunca foi um valor, uma qualidade extensiva para o país.

Passados 130 anos da Proclamação da República, permanece um sentimento de mal-estar, de um projeto que ainda não deu certo, mesmo com os vários movimentos republicanos – Revolução Pernambucana, Guerra de Canudos e Sabinada – que tentaram trazer um legado para o Brasil. 

Na Revolução Pernambucana – movimento que eclodiu no dia 6 de março de 1817 no Estado de Pernambuco – quatorze revoltosos foram executados pelo crime de lesa-majestade, a maioria enforcados e esquartejados. Outros foram fuzilados. Centenas morreram em combate ou na prisão. 

A Guerra de Canudos ocorreu entre 1893 e 1897. Foi o maior movimento de resistência à opressão dos grandes proprietários rurais. Houve um verdadeiro massacre, com o extermínio de mulheres, idosos e crianças. Muitos foram degolados durante a invasão com o bombardeio do Exército. Quase não restaram sobreviventes. 

A Sabinada foi um movimento contrário à Regência, ocorrido entre 1837 e 1838, na Bahia, que já havia sido palco da Conjuração Baiana, em 1798, da Federação dos Guanais, em 1832, e da Revolta dos Malês, em 1835. A província já tinha um histórico de revoltas e lutas. 

O médico e jornalista, Francisco Sabino Álvares da Rocha Vieira, foi o principal mentor da revolta, que não desejava a independência da província da Bahia, mas sim a instalação de uma República independente do Império Brasileiro até o fim da Regência.

Além da Revolução Pernambucana, Guerra de Canudos e Sabinada, outros conflitos ainda ocorreram como as Guerrilhas do Tocantins, a Revolta da Armada, a Revolução Federalista, a Guerra do Contestado, as “revoluções” em 1923, 1924, 1930 e 1932 e os levantes dos comunistas e dos integralistas, numa média de um confronto militar a cada cinco anos. 

O certo é que com a Proclamação da República, em 15 de novembro de 1889, a espada de Dom Pedro mudou de mão, mas o perfil liberal inspirador das nossas primeiras Constituições – pouco amenizado em 1934, com o reconhecimento da função social da propriedade – não ficou ausente nem mesmo na Constituição de 1988. 

Isso pode ser constatado examinando-se, com cuidado, as muitas Emendas Constitucionais que a nossa Carta Magna já sofreu e o padrão predominante da sua interpretação e aplicação..

Se, antes de 1988, havia fidelidade ideológica ao liberalismo, por parte da Administração Pública, o fato de ele agora ser antecedido pelo prefixo “neo”, revigorou-o de modo desastroso. 

No artigo 170 da Constituição Federal vigente está escrito que “a ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por finalidade assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da Justiça Social”. 

A realidade, no entanto, vem atestando que a liberdade da iniciativa econômica se refletiu em liberdade garantida apenas para as coisas, as mercadorias. Dogmática, mercadocêntrica e isenta de questionamento, ela engoliu a valorização do trabalho, a segurança prevista para a existência digna dos cidadãos e não tem nenhum interesse por Justiça Social.

Isso pode ser constatado na preocupação dos governos brasileiros com as políticas sociais compensatórias. Elas visam compensar uma desigualdade social criada e reproduzida pela liberdade que sequestra as demais – a do poder superior ao do Estado, no caso, o capital. 

Reformas importantes e capazes de modificar a sua estrutura, como a agrária, a tributária e a política – indispensáveis à liberdade de todos – só caminham à custa de remendos novos em pano velho.

Ao primeiro impacto o pano se encarrega de aumentar o rasgão da nossa República, embora não faltem advertências contra essa situação, convenientemente ignoradas para não permitir libertações de muitos, em nome de “liberdades” já impostas por poucos. 

domingo, 10 de novembro de 2019

João Cabral de Melo Neto e o emblema da miséria nordestina


Antonio Carlos Lua

João Cabral de Melo Neto – poeta e escritor que viveu em luta contra as próprias emoções – tentou domar, secar, objetivar os sentimentos com a faca das palavras, com uma poesia contida, dura, sobrecarregada de dúvidas, hesitações e tensões. 

Com a alma cheia de conflitos, João Cabral de Melo Neto sempre foi um poeta impessoal. Sem poemas autobiográficos, ele deixou – em certo momento da sua vida – de ler poemas porque não suportava mais a emoção dos versos. 

Lutou muito para se conter, para se esconder, para não se confessar, para não falar de si, mas – contra sua vontade – deixou sempre muita coisa escapar. Esse aspecto de luta, de conflito extremo, é a origem da força da poesia de João Cabral de Melo Neto. 

Embora tenha escrito um poema em que cita Clarice Lispector como alguém que gostava de falar na morte, ele também tratava da questão em muitos de seus poemas, mostrando pontos em comum com a escritora, embora os dois se mostrassem, aparentemente, muito diferentes, antípodas. 

Na verdade, João Cabral de Melo e Clarice Lispector se encontram na mesma paixão pela palavra. Para Clarice, a literatura era uma espécie de religião sem Deus. Para Cabral, era uma carpintaria, uma engenharia. Para ambos, a poesia foi a coisa mais importante de suas vidas. Essa entrega absoluta à literatura conduziu aos grandes livros que os dois escreveram.

João Cabral de Melo Neto falava dos males – severidade, repressão íntima, fobias – que ficaram de sua educação com os irmãos maristas. Declarava-se ateu – embora ressaltando que acreditava no inferno. Melhor pensar que, na verdade, ele temia o inferno, isto é, o castigo. 

A melancolia ficou encoberta durante quase toda a vida de João Cabral de Melo Neto, que, indiscutivelmente, foi um dos maiores poetas brasileiro do Século XX. Em tempos de retirantes globais, podemos citar “Morte e Vida Severina” como sua obra mais marcante e significativa para a literatura brasileira.

Não há como fazer uma leitura de “Morte e Vida Severina” sem ter em mente o contexto social e econômico da época em que a obra foi escrita (1954/1955). No Nordeste da década de 1950, a morte era uma força precoce e devastadora. 

Calor, seca, desnutrição, pobreza, concentração fundiária, coronelismo. Este é o mundo árido e brutal onde o personagem Severino empreende sua epopeia trágica enunciada conforme a tradição medieval pelo escritor, que concebeu versos preferencialmente heptassílabos (redondilha maior), variando vocábulos regionais com outros de registro erudito. 

João Cabral de Melo Neto nasceu em Recife (Pernambuco) e passou sua infância nos engenhos de açúcar de propriedade de sua família. Neste ambiente arraigado na tradição fundiária e econômica do Nordeste, costumava ler cordéis para os empregados, impregnando-se de referências próprias do ambiente regional. 
A geografia, os traços regionais e as condições sociais dos anos 1950 foram decisivas para a constituição da poesia de João Cabral de Melo Neto. 

João Cabral era diplomata. Trabalhando, em Londres, em 1959, durante o governo de Getúlio Vargas, surgiu uma denúncia de que ele e outros quatro colegas estavam implantando uma célula comunista no Itamaraty, época em que o Partido Comunista do Brasil estava na ilegalidade. 

Um despacho presidencial de março de 1953 afastou ele e os outros companheiros de trabalho do serviço diplomático. João Cabral retornou para Recife, a fim de trabalhar no escritório do pai e garantir o sustento da família. Ele retomou a carreira diplomática em 1954, depois de recorrer ao Supremo Tribunal Federal. 

Nesse intervalo de tempo, encontrou Maria Clara, que era filha de Aníbal Machado, seu amigo. Ela pediu que o poeta escrevesse um auto de Natal para encenar com o seu grupo. Assim surgiu ‘Morte e Vida Severina’. Maria Clara, porém, leu o texto e o devolveu, alegando que não teria como montá-lo. 

Na época, o editor José Olympio queria lançar a primeira coletânea do poeta. Como “Morte e Vida Severina’ era extensa, o autor retirou as marcações próprias da montagem teatral e o poema integrou o livro ‘Duas águas’, lançado em 1956, sendo muito bem acolhido pelos escritores, intelectuais alinhados ao pensamento de esquerda. 

O também poeta e diplomata Vinícius de Morais ficou maravilhado com a história de Severino. A princípio, João Cabral ficou contrariado, pois sua pretensão era alcançar com sua poesia os analfabetos que ouviam cordel na feira de Santo Amaro, em Recife – o que não deixava de ser um tanto ingênuo, tendo em vista a elaboração formal do poema. 

Dez anos depois da estreia editorial, o texto ganhou mais projeção com a montagem teatral dirigida por Silnei Siqueira. Era 1966, quando João Cabral de Melo Neto recebeu a carta do jovem diretor solicitando autorização para montar um espetáculo em que ‘Morte e Vida Severina’ seria musicado por outro estreante, o compositor e cantor Chico Buarque de Holanda. 

No livro ‘A literatura como turismo’ (Companhia das Letras), a cineasta Inêz Cabral, filha do poeta, diz que ele ficou preocupadíssimo ao saber que sua poesia ganharia música. Porém, nunca se sentiu no direito de cercear qualquer criação nascida de seu trabalho.

Em 2007, na apresentação que fez da edição de ‘Morte e Vida Severina’, lançada pela Editora Alfaguara, o escritor, dramaturgo, letrista e poeta paraibano, Bráulio Tavares, aponta que, para Gilberto Freyre, havia pelo menos dois nordestes: o agrário e o pastoril; o litorâneo da cana-de-açúcar e o sertanejo das fazendas de gado. 

Estabelecendo uma lógica paralela, Bráulio Tavares propôs que, a partir da poesia de João Cabral, também se pode identificar dois Nordestes: o seco e o úmido; o da pedra e o da lama; o que é mumificado vivo pelo sol e o que é apodrecido pelo mar. 

‘Morte e Vida Severina descreve a caminhada do retirante Severino que percorre a linha do rio até Recife, o mangue e o mar, a fim de escapar da seca. Na primeira obra, a voz que emana do texto é do poeta. Na segunda, do próprio rio, que trata de si mesmo em primeira pessoa. São diversos personagens espalhados ao longo do leito que se enunciam. 

O título do poema já lança uma senha para se entender o universo descrito, ao inverter o sintagma vida e morte – a morte precede a vida – e ao adjetivar o substantivo próprio Severino. 

A esposa de João Cabral de Melo Neto, Stella Maria Barbosa de Oliveira, morreu em 1986. Depois disso, ele se casou com a poeta Marly de Oliveira. Durante toda a sua vida sofreu com intermitentes dores de cabeça, tanto que a aspirina era um traço distintivo em sua vida e mote para alguns textos. 

Ao final da vida, estava cego e deprimido. Avesso à religiosidade – mesmo que este universo seja latente em sua obra mais conhecida, que já ganhou mais de 100 edições – conta-se que, quando morreu, em 1999, estava de mãos com Marly, orando.