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sábado, 23 de março de 2024

Uma contraposição à tirania


ANTONIO CARLOS LUA

A democracia – que surgiu na Grécia como um sistema político alternativo à tirania – visa criar um ambiente social de livre discussão e argumentação, para que ideias antagônicas possam ser debatidas, evitando que desacordos ideológicos sejam resolvidos pela força.

Ela foi implantada em Atenas, por volta de 510 (antes de Cristo), quando Clístenes liderou uma rebelião vitoriosa contra o último tirano que governou a cidade-estado. As reformas políticas adotadas por Clístenes visavam resolver graves conflitos sociais decorrentes da estratificação social em Atenas, já que os aristocratas detinham o poder político e econômico sobre comerciantes, artesãos, camponeses e escravos.

Estes últimos grupos sociais haviam apoiado uma série de reformas anteriores, realizadas principalmente por Drácon e Sólon, mas que não haviam sido suficientes para resolver os conflitos.

O regime político e democrático instituído por Clístenes tinha por princípio básico a noção de que “todos os cidadãos têm o mesmo direito perante as leis”. Entretanto, apenas os homens atenienses maiores de 21 eram considerados cidadãos, excluindo da vida política as mulheres, os estrangeiros, os escravos e os jovens.

A democracia ateniense era, portando, dessa forma, elitista, patriarcal e escravista, porque apenas uma pequena minoria de homens proprietários de escravos poderia exercê-la. Ela teve seu fim por volta de 404 (antes de Cristo), quando a cidade-estado foi derrotada por Esparta na Guerra do Peloponeso, voltando a ser governada por uma oligarquia. 

Trazendo a questão para o momento atual, constatamos que, mesmo sendo todos nós cidadãos, compartilhando do mesmo ‘ethos democrático’, ainda nos deparamos com  contradições seculares que inviabilizam a construção de um regime verdadeiramente democrático no país, onde o processo político se deu com a reprodução de heranças coloniais, num processo político disfuncional, sem fidelidade com o povo.  

Passamos por uma recessão democrática. Estamos tendo, talvez, a última chance de mostrar que a democracia é o melhor caminho para o progresso social. Caso continuem se repetindo os escândalos e as ineficiências que prevaleceram nas últimas décadas, a bela ideia de uma sociedade verdadeiramente democrática pode sucumbir diante da descrença geral da sociedade.

A desinformação e a pseudociência

ANTONIO CARLOS LUA

As eleições municipais de 2024 entraram na pauta política nacional. Em comum – além dos eventos democráticos – está a preocupação com as ‘Deepfakes’, prática criminosa que consiste no uso da tecnologia de inteligência artificial para manipular ou produzir imagens credíveis de situações que nunca aconteceram, trocando o rosto de pessoas em vídeos, sincronizando movimentos labiais, expressões e demais detalhes, com resultados impressionantes e bem convincentes.

Ao invés de depender de edição manual, o criminoso, por meio da ‘Deepfake’, precisa apenas de uma fonte para reconhecer o modelo do rosto da “vítima”, mapear a estrutura da cabeça destino e fazer a sobreposição. 

Por mais que o foco do ‘Deepfake’ seja a troca de rosto em vídeos, engana-se quem pensa que a prática se restringe a isso. A técnica também é utilizada para a manipulação de áudios, onde podem ser criadas gravações que simulam a voz de determinada pessoa, facilmente compartilhável em mensageiros como o WhatsApp.

Com os avanços tecnológicos, o método criminoso – que traz riscos para a democracia e para o pleito eleitoral – tem se tornado cada vez mais sofisticado. Na prática, as ‘Deepfakes’ utilizam técnicas similares aos efeitos especiais usados em produções de Hollywood, onde se insere digitalmente uma pessoa que originalmente não faz parte do contexto. 

A técnica mais usada é a chamada “troca de cabeças”, que utiliza uma “pessoa-origem” e insere a imagem na “pessoa-destino”. Assim, com o uso de softwares que usam algoritmos de inteligência artificial é possível transferir o rosto da “pessoa-origem” para o corpo da “pessoa-destino” de forma que pareça que a “pessoa-origem” realmente faz parte do vídeo.

Essa técnica – que foi utilizada pelo diretor James Cameron no filme recorde de bilheteria ‘Avatar’, em 2009, dando vida aos gigantes azuis do mundo de Pandora – usa um mecanismo de aprendizado de máquina, dentro das técnicas de inteligência artificial, para fazer essa máquina criar imagens que nunca existiram, de forma barata e rápida. 

A popularização das ‘Deepfakes’ vem ocorrendo desde 2017, quando rostos de celebridades começaram a ser utilizados em filmes pornográficos. Mas não demorou muito até esse fenômeno chegar na política.

Com as ‘Deepfakes’, criminosos podem fazer você falar o que quiserem, colocar você em qualquer lugar do mundo. O pior. Não precisam de você. Podem criar as pessoas que quiserem com as características e pensamentos que bem entenderem, em

combinações de algoritmos, geradas a partir de técnicas da inteligência artificial. A prática tem avançado a passos largos no Brasil e na velocidade atual das redes sociais e do WhatsApp mina a reputação de figuras públicas, em vídeos extremamente realistas, que colocam as vítimas em situações constrangedoras e inusitadas, servindo perigosamente para a desinformação política.

As ‘Deepfakes’ representam a mais nova ameaça à cybersegurança, sem que ainda se saiba como combatê-los. Não há regulação, normatização, legislação ética sobre a sua má utilização com os geradores de textos falsos, imagens falsas, vídeos falsos, clonagem não só de vozes, mas também de pessoas.

Ao mesmo tempo em que a tecnologia evolui para facilitar nossas vidas, trazendo facilidades e soluções interessantes para a evolução humana, ela também é utilizada por criminosos para modernizar seus ataques e fazer novas vítimas com consequências irreversíveis no primeiro momento. Há tempos estamos lidamos com a desinformação em diversos níveis.

Agora, com a evolução dos meios tecnológicos de comunicação, enfrentamos desafios desconhecidos, que causam grande impacto em nossas vidas. Ainda que conceber pessoas digitalmente não seja uma novidade, uma vez que técnicas como essa são amplamente utilizadas na indústria cinematográfica, sua aplicação fora dos estúdios tem desdobramentos dramáticos, ao se fazer uso de tecnologia no âmbito da política para fragilizar os processos democráticos.

Com quantidade de fotos disponíveis nas redes sociais, qualquer pessoa pode se tornar vítima. Os criminosos só precisam das fotos para treinar seus algoritmos quando quiserem usá-las para roubar identidade, chantagear ou divulgar notícias negativas sobre políticos ou pessoas famosas ou influentes.

A verdade é que vivemos hoje um perigo real, com a criação de mundos paralelos, com máquinas potentes, hardwares, guiados por mentes com domínio tecnológico nos apresentando vídeos tão perfeitos sem que possamos perceber sua falsificação, manipulando o sentimento coletivo.

Vivemos num mundo dispótico, onde prevalece a desinformação e a pseudociência, levando ao emburrecimento e à celebração da ignorância, com as redes sociais levando centenas de milhões de pessoas a se informar apenas por meio das Fake News sem nenhuma preocupação de confronto com os fatos da realidade.

A civilização baseada na investigação científica e na busca da verdade – desde o Renascimento, nos Séculos XV e XVI, e o Iluminismo, nos séculos XVIII e XIX – está seriamente ameaçada.

Império da lei

ANTONIO CARLOS LUA

Neste exato momento, algum brasileiro ou brasileira, em algum lugar do País, está cumprindo ao menos uma lei que não deveria ter entrado em vigor, por ser inconstitucional. Oito em cada dez leis julgadas – no mérito – pelo Supremo Tribunal Federal (STF), são consideradas inconstitucionais no todo ou em parte. A forma de editar uma lei, mais do que o seu conteúdo, está entre os principais erros cometidos.

É pública e notória a constatação de um número infindável de leis inconstitucionais em vigência no País. O Poder Legislativo aprova uma lei e sabe que depois tem um encontro marcado com o Poder Judiciário para rediscuti-la.

No Brasil, é comum que leis sejam editadas para atender interesse de poucos, que não teriam o direito que conquistaram se determinadas normas não estivessem no ordenamento jurídico.

Tal situação apenas escancara aquilo que já vem acontecendo há muito tempo e que acaba sendo paradoxalmente desprezada pelo Poder Legislativo, responsável pela criação e edição de diplomas legais.

O Brasil supera as democracias do mundo em número de leis questionadas, colocando o Poder Judiciário como a terceira arena de discussão, por ter que apreciar medidas legislativas, sendo bastante demandado para a verificação de possíveis inconstitucionalidades que viciam inúmeras legislações.

A despeito da inconstitucionalidade de leis federais, a criação de leis estaduais e municipais denuncia uma série de fatores já conhecidos de todos, mas que, até agora, não foram resolvidos.

Nessa direção, é possível detectar leis totalmente inconstitucionais, ora pela falta de competência das instâncias legislativas para a sua edição, ora pelo desvio de finalidade de atos normativos com o objetivo de favorecer demandas de caráter ilícito.

Como consequência óbvia da ineficiência e dos equívocos na criação de legislações, o Poder Judiciário encontra-se abarrotado com a chegada de inúmeras Ações Diretas de Inconstitucionalidade, Arguições de Descumprimento de Preceito Fundamental, além dos Mandados de Injunção.

Isso acaba prejudicando os processos cujas demandas sofrem com a duração alongada de seus julgamentos, além de fazerem brotar outros processos correspondentes aos desvios de finalidade de atos de agentes públicos, definidos como atos de improbidade administrativa.

Assim, o aumento da demanda e a consequente perda da qualidade na criação de leis remetem à necessidade de um controle jurisdicional da sua constitucionalidade, promovendo um crescente protagonismo do Poder Judiciário em todas as suas instâncias.

É importante ressaltar que todos esses fatores que provocam a inconstitucionalidade de diplomas legais, são responsáveis pela crescente judicialização da política.

De acordo com o sistema jurídico adotado no Brasil, as leis gozam de presunção de constitucionalidade e, por isso, tão logo publicadas, passam a integrar o ordenamento jurídico, entrando em vigor na forma de suas próprias prescrições.

Sabemos, porém, que as leis, em seus respectivos processos de produção – quanto à forma e conteúdo – devem estar alinhadas e em perfeita sintonia com Constituição Federal. Quando assim não ocorre, cabe aos interessados questionar a sua constitucionalidade.

Muitas leis sancionadas não se encaixam à realidade social pela centralização de poder e pela distância de certos legisladores distanciados do cotidiano das pessoas. Embora a quantidade de leis aprovadas possa ser um termômetro para medir o protagonismo do Poder Legislativo, não há relação entre muitas leis aprovadas e um bom Parlamento, até porque o legislador também tem função de fiscalizar o Poder Executivo.

No mundo moderno, a lei é o princípio da autoridade. É a lei que define os limites da particularidade dentro da universalidade. É o império da lei o garantidor da liberdade. Fora da lei, reina a arbitrariedade, gerando um ingrediente negativo no conturbado contexto de questionamento de normas.

Na verdade, no caso do Brasil, a explicação para a significativa produção de leis inconstitucionais está em nossas raízes. Se fizermos uma análise histórica de nossa formação cultural, constataremos que o estatismo brasileiro não é um acaso, e sim uma obra de séculos. Isso se reflete na opinião dos cidadãos.

O veneno em nossa mesa

ANTONIO CARLOS LUA

Dados da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO/ONU) apontam que o Brasil continua liderando o ranking dos países que mais usam agrotóxicos, embora não seja o campeão mundial de produção agrícola. Aprovados em grande escala, os agrotóxicos receberam o nome simpático de “defensivos agrícolas” e ganharam a afeição no país, que libera cada vez mais venenos na mesa do brasileiro.

O uso excessivo de agrotóxicos no Brasil para atender às demandas da agricultura de exportação, vem colocando o país – principal destino de pesticidas proibidas no exterior – como uma espécie de latrina tóxica com o uso de produtos comprovadamente nocivos, seja porque causam a contaminação de recursos hídricos seja porque também se mostram altamente prejudiciais à saúde humana.

Por que o Brasil lidera o ranking de uso de agrotóxicos? Temos mais pragas que os demais países? A ciência vem mostrando os imensos riscos dos agrotóxicos para as pessoas e para a fauna, mas, no entanto, os dados científicos não convenceram o Brasil em relação aos efeitos perversos dessas pesticidas na contaminação de rios e solos, constituindo-se uma ameaça à biodiversidade, gerando um debate emblemático para pensarmos o futuro da população no país.

Altamente maléficos, os agrotóxicos causam sérios danos ao ser humano, que vão desde alterações genéticas, como as malformações de embriões, até efeitos mais agudos. Eles estão presentes na nossa comida, na água que bebemos, no ar que respiramos e nos lugares em que nossas crianças brincam. Até mesmo nossas sementes melhoradas já são pensadas para usar agrotóxicos.

Os dados sobre o consumo de agrotóxicos usados na agricultura no Brasil são alarmantes. Imagine tomar um galão de cinco litros de veneno a cada ano. É o que os brasileiros consomem de agrotóxico anualmente, segundo laudo científico do Instituto Nacional do Câncer (INCA). Mais de 70% dos alimentos ‘in natura’ consumidos no país estão contaminados por agrotóxicos.

Desses alimentos – segundo a Anvisa – 28% contêm substâncias não autorizadas. Isso sem contar os alimentos processados, que são feitos a partir de grãos geneticamente modificados e cheios dessas substâncias químicas, que estão altamente associadas à incidência de sérias doenças genéticas.

O Brasil possui – desde a década de 1970 – legislações que regulamentam o registro, a produção, o uso e o comércio dessas substâncias danosas em seu território. Além da relativa frouxidão dessas legislações, exemplificada pela liberação de produtos proibidos em diversas regiões do planeta, a grande fragilidade está na fiscalização e nas medidas adotadas para que as normas sejam cumpridas.

Se formos mais a fundo nessa discussão, constataremos que é uma contaminação intencional. Em termos jurídicos, tem o crime culposo quando a pessoa não teve a intenção de cometê-lo e doloso quando essa

intenção fica provada e caracterizada. No caso em questão não é um crime culposo. Não é culpa do vento que mudou o agrotóxico de direção, mas do agricultor que cometeu um ato inseguro e intencional. Existe a intenção de poluir para atingir o alvo dele – no caso, os insetos, as pragas. Ele aceita conscientemente essa consequência.

O emblemático legado de José Saramago



ANTONIOCARLOS LUA

O saudoso escritor, romancista, poeta e tradutor, José Saramago (1922/2010), agraciado, em vida, com o Prêmio Nobel de Literatura (1998) e o Prêmio Camões (1995) – ambos de reconhecimento internacional – completará, em 18 de junho deste ano, 14 anos distante do mundo terreno da literatura. 

O escritor – que também era jornalista com atuação em veículos de imprensa como comentarista político – iniciou sua atividade literária em 1947, com o romance “Terra do Pecado”. Em 1980, alcançou notoriedade com o livro “Levantado do Chão”. Anos depois o sucesso se repetiu com “Memorial do Convento”.

Em sua trajetória na literatura, Saramago procurou destacar o fator humano que se esconde por detrás dos acontecimentos mais díspares. Escritor produtivo, publicou diários, romances, contos, peças teatrais, crônicas e poemas, eivados de aflição intelectual, de inconformismo, de denúncia e de insaciável fome de justiça social. 

Em 1980, alcançou notoriedade com o livro “Levantado do Chão”. Anos depois o sucesso se repetiu com “Memorial do Convento”. O seu reconhecimento na literatura veio com o controverso romance ‘O Evangelho segundo Jesus Cristo’, no qual ele mergulha profundamente em assuntos teológicos.

Mesmo sendo ateu, Saramago se mostrou imerso numa cultura moldada pela ideia de Deus, impregnada no DNA da civilização Ocidental. Era apaixonado pela Teologia e pelos personagens bíblicos em geral.

Apesar do ateísmo, ele conhecia a ideia de Deus. Isso o seduzia fazendo com que produzisse as melhores páginas da literatura universal contemporânea, se comportando como se fosse uma espécie de quinto evangelista, dando sua versão para os fatos, por meio da ficção. Intelectual considerado sem nenhuma admissão metafísica, José Saramago escreveu até os últimos anos de sua vida, assinando obras de grande relevância.

Partidário convicto do pessimismo antropológico – mas profundo conhecedor do espírito humano – partia do princípio de que nós, como seres humanos, não somos bons e não temos coragem de reconhecer isso. 

Na trama do livro ‘Ensaio sobre a Cegueira’ – um de suas obras mais conhecidas, adaptada para o cinema, em 2008, pelo cineasta brasileiro Fernando Meirelles – ele afirmou que a espécie humana não melhorou sequer minimamente, com o mundo dos cegos abrindo o caminho para o mundo dos bárbaros.

José Saramago se preocupou com a realidade de seu tempo e, não obstante à sua visão distópica do mundo, nos ajudou a refletir sobre o comportamento humano, especialmente nos momentos mais complexos e imprevisíveis da vida. Com sua visão humanista, relançou, em janeiro de 2010, o livro “A Jangada de Pedra”, direcionando toda a renda da edição para as vítimas do terremoto no Haiti.

Polêmico e contundente em suas críticas, Saramago comparou – em 2002 – a situação nos territórios palestinos com o campo de concentração nazista de Auschwitz, durante um encontro entre a

delegação de membros do Parlamento Internacional de Escritores e o ex-líder palestino, Yasser Arafat, em Ramallah. Até hoje, não faltam a admiradores a José Saramago. Ele reinventou a literatura do Século XX e converteu-se em uma espécie de herói das letras lusófonas.

Escritor raro com uma obra extensa, adotou um estilo singular na produção de suas obras, carregadas de ideias e reflexões, com muitas vírgulas, ausência de aspas e longas digressões filosóficas.

O seu legado comporta dimensões e um alcance raros, para além da sua obra literária. Num tempo em que nos defrontamos com crises e ameaças que põem em causa o futuro da Humanidade, sua obra revela-se importante nos planos social, ideológico, político e ético. Os romances, contos, peças de teatro e poemas de José Saramago tornam o poeta português uma referência para o presente e para o futuro.

A Tríplice Aliança e a carnificina no Paraguai


ANTONIO CARLOS LUA

Em março de 1870, há 154 anos, chegava ao fim a Guerra do Paraguai, o maior e mais letal conflito armado ocorrido na América Latina, que teve início em 1864 com o Brasil, a Argentina e o Uruguai formando a Tríplice Aliança, arquitetada pela Inglaterra para dizimar a população paraguaia. 

As consequências drásticas da guerra refletem até hoje no Paraguai que, na época, destoava nas américas pelo seu desenvolvimento socioeconômico, mantendo independência em relação ao imperialismo inglês, que exercia forte influência sobre o Brasil, a Argentina e o Uruguai.

Antes da guerra, o Paraguai, praticamente, não possuía analfabetos. Seu desenvolvimento agrícola permitia-lhe produzir tudo o que sua população necessitava e sua atividade industrial era significativa. 

O país tinha a indústria mais avançada da América do Sul, com ferrovias, estaleiros, indústrias, metalúrgicas, têxteis, de calçados, de louças, de materiais de construção, de instrumentos agrícolas, de tintas e de papel, além do telégrafo e da grande Fundição de Ibicuí.

A balança comercial no país era sempre favorável e a moeda era forte e estável. Suas exportações valiam duas vezes mais que as importações. O Paraguai tinha eliminado a oligarquia, a escravidão, a violência, a miséria e o analfabetismo. Era o único país sul-americano que não tinha dívida externa ou interna, com a economia crescendo sem a interferência de empréstimos estrangeiros.

As bases do Tratado de Tríplice Aliança que massacrou o Paraguai tinham como objetivo estabelecer a partilha de uma grande fração do seu território, retirando sua soberania sobre os seus rios, responsabilizando o país por toda a dívida de guerra, estabelecendo também o saque e a destruição de suas instalações industriais. 

O Paraguai ficou arrasado com a guerra. Sua população foi reduzida a uma pequena parcela e sua economia foi destruída. Desde o episódio, o país nunca mais se recuperou e é hoje um dos países mais pobres da América Latina.

Na época, a Inglaterra exportava aproximadamente 70% da sua produção, constituída por produtos industrializados. Ela necessitava de novos compradores para estas mercadorias. Além de não ser um grande exportador destes produtos, nem um voraz consumidor de mercadorias inglesas, o Paraguai impedia a entrada dos capitais provenientes da Grã-Bretanha, com seu modelo econômico independente.

No período, os produtos industrializados do Paraguai já começavam a abastecer a América do Sul, o que não era bom para o comércio britânico que entrou em uma crise que acentuou ainda mais sua necessidade de destruir a República Guarani, que possuía terras férteis e excelentes para o cultivo do algodão – matéria-prima vital para a fortíssima indústria têxtil da Inglaterra, que até então dependia das provisões dos Estados Unidos.

Os capitalistas ingleses estavam inquietos com a promissora experiência de desenvolvimento paraguaia, que poderia influenciar a política econômica de outros países sul-americanos. Portanto, não foi por acaso que a Inglaterra estimulou e alimentou a Guerra da Tríplice Aliança contra o  Paraguai, financiando os aliados – Brasil, Argentina e Uruguai – com grandes empréstimos financeiros. 

No contexto histórico da época, os países da América Latina tinham suas economias voltadas para a Inglaterra, que fornecia a maior parte dos produtos industrializados. Além do comércio, as estradas, as instituições bancárias e as maiores empresas eram inglesas.

No conflito, cerca de 90% da população masculina paraguaia – com idade superior a 20 anos – foi assassinada pelas tropas brasileiras, causando um desastre demográfico que arrasou o país, deixando uma mancha vergonhosa na história do Brasil. 

O dado mais estremecedor da guerra foi que a maioria das vítimas paraguaias não eram soldados, mas sim membros da população civil, incluindo meninos, velhos e mulheres, que também morreram nas frentes de batalha. 

Com o Exército paraguaio praticamente exterminado, o general Luís Alves de Lima e Silva, o ‘Duque de Caxias’ – que liderava as tropas brasileiras no Paraguai – perguntou ao imperador Dom Pedro 2º: "Quanto tempo ainda precisamos para terminar a guerra, para transformar em fumaça e pó toda a população paraguaia, para matar até os fetos no ventre das mulheres? Foi Duque de Caxias que também lançou cadáveres de soldados guaranis coléricos no rio Paraguai.

Na época, crianças paraguaias com idade entre 6 e 8 anos idade – aterrorizadas no calor da batalha – se agarravam às pernas dos soldados brasileiros, chorando, pedindo que não as matassem. Mas não havia piedade. Elas eram degoladas no ato. Quando as mães recolhiam os corpos dos filhos e ainda havia feridos, os soldados brasileiros tocavam fogo no local. 

Mesmo com a desproporcional vantagem bélica e a enorme disparidade entre o tamanho e o poder de fogo entre as forças aliadas do Brasil, Argentina e Uruguai e os soldados paraguaios, a guerra só veio a ser encerrada em 1º de março de 1870. Isso porque havia uma cláusula no pacto da Tríplice Aliança, que previa que o conflito só terminaria com a morte do presidente paraguaio, Solano López.

O episódio mais traumático na guerra foi quando, em 16 de agosto de 1869, na batalha de Campo Grande (ou Acosta Ñu, para os paraguaios), cerca de 20 mil soldados brasileiros por determinação do general Duque de Caxias, lançaram um pesado fogo de artilharia contra aproximadamente 3.500 menores paraguaios, criando uma verdadeira carnificina. Devido ao episódio, o Dia da Criança no Paraguai é celebrado no dia 16 de agosto.

sexta-feira, 8 de março de 2024

O desafio de modernizar o Código Civil

ANTONIO CARLOS LUA

Elaborado para adequar a legislação à evolução da sociedade e ao texto constitucional de 1988, o atual Código Civil passa, no momento, por uma nova reforma no Congresso Nacional, onde estão sendo feitas alterações em grande parte de sua essência e de sua estrutura, para inserção de mudanças sinalizadoras de uma nova época.

A última reforma do Código Civil ocorreu em 2002, modificando o texto original de 1916, cujo trabalho de elaboração coube ao jurista cearense e professor da faculdade de Direito de Recife, Clóvis Beviláqua.

Os textos do Código de 1916 e de 2002, que tratam da codificação das leis civis, foram movidos por ideias jurídicas distintas. Projetado para uma sociedade rural e patriarcalista, o Código de 1916 tinha um espírito fortemente individualista, baseando-se nos princípios liberais clássicos da propriedade privada quase que absoluta e na autonomia privada irrestrita.

Na seara do Direito de Família, a legislação colocava o homem em posição de preponderância em relação à mulher, consagrando a família constituída pelo casamento como a única a merecer proteção do Estado. Em função disso, não tardou em envelhecer, diante de fenômenos como a urbanização, a emancipação da mulher e a sociedade de massas.

Ao contrário da legislação de 1916 – que se revestia de uma visão com forte dose de conservadorismo – o Código Civil de 2002 priorizou os avanços da ciência e da tecnologia para reger as relações sociais numa estrutura cultural marcada por novos valores. Responsável pela sua elaboração, o jurista Miguel Reale procurou trazer uma legislação mais permeável às mudanças, levando em consideração as relações da vida em sociedade. 

O Código de 2002 trouxe mais de dois mil artigos que alteraram questões centrais da vida da população. Mesmo assim, sofre, até hoje, muitas críticas. Antes de entrar em vigor, ele passou 26 anos tramitando no Parlamento Federal. 

Enquanto o projeto dormia nas gavetas do Congresso Nacional, o velho Código de 1916 permanecia em vigor e o legislador começou a criar microssistemas protetivos para a mulher, para a criança, adolescente e para o consumidor. 

Na fase de elaboração, muitas emendas foram feitas a fim de adequá-lo ao texto constitucional. Apesar do longo tempo de tramitação legislativa, o texto conseguiu eliminar muitas ideias ultrapassadas.

Assim como a Carta Magna de 1988, o atual Código Civil em vigência foi concebido sob a terceira geração dos Direitos Humanos, ou seja, valorizando a dignidade da pessoa humana e a solidariedade que deve estar presente na sociedade contemporânea massificada. 

Trata-se de uma lei que soube explorar as chamadas cláusulas gerais, como a função social, os bons costumes e a boa-fé, entre outras questões que careciam de conceituação estática e definida. Dessa forma, promoveu uma renovação doutrinária e jurisprudencial, com destaque para a grande quantidade de obras e estudos publicados acerca das inovações apresentadas. 

Malgrado algumas imperfeições, o Código Civil de 2002 representou um notável avanço para as instituições civis. Diversos novos institutos foram inaugurados com a legislação. 

No âmbito dos contratos, importantes inovações surgiram com a previsão de regras gerais, notadamente aquelas que consagram os princípios da função social e da boa-fé objetiva (artigos. 421 e 422), as que regem o contrato preliminar e as que inserem no seu bojo o instituto da resolução por onerosidade excessiva.

Mesmo com alguns avanços, há quem aponte defeitos no Código Civil de 2022, considerando o mesmo anacrônico, revelando uma sociedade que não mais existe. Vários juristas o taxam de “desatualizado” com um texto muito confuso, pouco linear, sendo apenas uma cópia reciclada do Código de 1916. 

Mas as críticas não se voltam apenas ao Código Civil de 2002. Elas também são dirigidas à nova proposta em discussão no Congresso Nacional, classificada por alguns juristas como “bomba ideológica” por alterar radicalmente os conceitos de família na legislação. 

Diante disso, é necessário que as mudanças a serem efetivadas pelo Congresso Nacional na reforma do Código Civil sejam antecedidas de uma abordagem cautelosa, trazendo consigo incontroverso caráter humanista, almejando a proteção dos interesses socialmente relevantes da personalidade humana, considerando as transformações sociais, a expansão das leis especiais e a legalidade constitucional, que impõem uma mudança significativa em relação aos objetivos da codificação civil.