ANTONIO CARLOS LUA
A escravidão deixou cicatrizes profundas em nossa história. Mesmo que a Lei do Ventre Livre (antecessora da Áurea) tenha determinada, em 28 de setembro de 1871, que as mulheres escravizadas dariam à luz apenas bebês livres – não sendo permitido o nascimento de nenhum escravizado em solo brasileiro – as bases da escravidão permaneceram, tendo como um dos seus principais defensores o consagrado escritor cearense, José de Alencar.
O posicionamento de José de Alencar a favor da escravidão pode ser resumido em uma série de cartas escritas entre os anos de 1867 e 1868, endereçadas ao Imperador D. Pedro II, sob o título de ‘Cartas de Erasmo de Roterdã’, nas quais o escritor cearense mostra sua retórica racista, defendendo a manutenção da escravidão no Brasil.
Na época, José de Alencar era então deputado no Rio de Janeiro, eleito pelo Ceará, e tentava convencer o imperador a abandonar a ideia de abolir a escravatura. Naquele período, o Imperador – que fazia grande pressão pelo fim do comércio humano – ameaçava até desistir do trono se os parlamentares não votassem pelo fim dos cativeiros.
Nas cartas, José de Alencar valia-se das técnicas da retórica clássica relacionada às conquistas de Roma Antiga à moderna ideologia imperialista. Depois que a liberdade dos escravos se tornou uma conquista, a série de cartas do desapareceu e não entrou nas obras completas do escritor cearense, publicadas em 1959. Até serem redescobertas, em 2008, elas ficaram desaparecidas por 140 anos.
José de Alencar afirmava que “se a escravidão não fosse inventada, a marcha da humanidade seria impossível". Para ele, escravidão fazia parte da tradição brasileira e era importante para a identidade nacional. Com essa ideia, o escritor dizia que o país não deveria ceder às pressões abolicionistas da França e da Inglaterra, cuja influência jamais poderia salvar um país de costumes bárbaros, expondo uma faceta malograda da sua personalidade.
Na verdade, o que o autor do açucarado romance ‘Iracema’ postulava era a política de manutenção do trabalho escravo defendida pelos chamados saquaremas, em oposição à política que o combatia, em tese defendida pelos conservadores, aliados do trono e da realeza.
O posicionamento de José de Alencar em relação à escravidão é, sintomaticamente, um petardo na consciência das novas gerações que só conhecem o escritor consagrado pelo cânone do romantismo, através de seus livros obrigatórios nas aulas de literatura.
Ele era brilhante como escritor, medíocre como político e insensível como defensor do comércio de seres humanos. Foi ao mesmo tempo, criador e criatura de sua própria trajetória pessoal.
A escravidão era intrínseca na história de vida de sua família. O pai do escritor, o famoso senador Martiniano de Alencar, em 3 de outubro de 1853 – há seis dias do nascimento de José do Patrocínio, considerado, o mais ferrenho tribuno da abolição – levaria a um cartório do centro do Rio de Janeiro a longa lista de seus filhos naturais, para reconhecê-los, por escritura pública. Como o exemplo vem de casa, a escravidão e o poder corriam no sangue do romancista.
José de Alencar pertence hoje ao passado. Se não fosse isso, não faria falta alguma se suas Cartas a favor da escravidão continuassem no estado de letargia a que permaneceram todo esse tempo.
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