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domingo, 6 de outubro de 2019

Vícios históricos


Antonio Carlos Lua

A Constituição Federal – lei fundamental suprema do país, que serve de parâmetro de validade a todas as demais espécies normativas, situando-se no topo do ordenamento jurídico – está completando 31 anos de existência, exercendo nesse período uma influência marcante em todos os ramos do Direito. 

A atual Carta Magna – que revogou antigas orientações constitucionais que regravam um Estado autoritário – foi promulgada simbolizando a liberdade democrática, com ênfase na soberania, cidadania, dignidade da pessoa humana, valores sociais do trabalho e da livre iniciativa e o pluralismo político. 

As mudanças que ocorreram ao longo desses 31 anos exigem, no entanto, uma avaliação. Assim, será possível saber se as cláusulas pétreas – fundamentais para o cidadão e para a sociedade – ainda continuam sendo o núcleo fundamental do nosso ordenamento jurídico, e se as perspectivas otimistas que existiam na época da Assembleia Nacional Constituinte foram, de fato, consolidadas. 

Nos deparamos com algumas conclusões desanimadoras. A atual Carta Magna foi a que mais sofreu alterações com as reformas de Estado, capitaneadas pela onda neoliberal, que se abateu inclusive sobre os direitos previdenciários, após mais de três décadas do início do processo de redemocratização do país. 

As garantias constitucionais não estão sendo respeitadas. A violência, a injustiça social e a corrupção se agravaram. O país ainda não conseguiu transformar direitos declarados em direitos efetivos. 

Quando a Constituição foi promulgada, acreditava-se que ela seria o suficiente para transformar a realidade do Brasil. Infelizmente, o país ainda carrega vícios históricos de injustiça social, de absoluta confusão entre o público e o privado. 

É lamentáveis verificar a falta de efetividade das leis brasileiras e admitir que ao longo desse anos o país foi palco de um verdadeiro festival de normas de todos os tipos, a maioria desfavoráveis aos cidadãos. 

São mais de 4,35 milhões de novas regras federais, estaduais e municipais editadas. Das 4,5 milhões de novas normas aprovadas nos últimos 25 anos, 155.954 mil são federais e – além das mais de 70 emendas – incluem duas leis delegadas, 80 leis complementares, 4.762 leis ordinárias, 1.162 medidas provisórias originárias, 5.491 reedições de medidas provisórias, 10.590 decretos federais e 133.793 normas complementares, o correspondente a uma média de 18,57 normas federais editadas por dia. 

A quantidade de regras editadas corresponde a 518 novas normas por dia, ou 776 por dia útil, gerando um emaranhado confuso de assuntos, trazendo instabilidade e insegurança jurídica para os cidadãos brasileiros, que ficam impossibilitados de entender conteúdo das leis, inclusive para saber seus direitos e obrigações. 

No âmbito estadual, foram editadas mais de 1.136.185 normas, sendo 259.889 leis complementares e ordinárias, 376.994 decretos e 499.301 normas complementares. Em média, foram editadas 135,28 normas por dia. Os municípios brasileiros são responsáveis pela edição de 3.061.526 normas, divididas em 542.745 leis complementares e ordinárias, 577.500 decretos, e 1.941.282 normas complementares.

Das 4,35 milhões normas criadas a partir da promulgação da atual Constituição Federal, mais de 275 mil se referem a tributos. Dessas novas normas tributárias, 29,5 mil são federais, 85,7 mil estaduais e 159,8 mil municipais. Chama a atenção a quantidade de taxas e impostos criados e modificados – na maioria dos casos, aumentados – no período.

Foram produzidas mais de 33 normas tributárias por dia, com a edição de 6,1 a cada hora útil. Ocorreram também 15 reformas parciais de natureza tributária, que resultaram na criação de inúmeros tributos, entre eles a Cofins, Cides, CIP, CSLL, entre outros.

Do total de normas editadas, 13,02% (566.847) permanecem em vigor. Atualmente, 20.082 normas tributárias estão em vigor. Cada empresa cumpre, em média, 3.507 normas tributárias. Para realizar o acompanhamento das modificações da legislação, as  empresas gastam cerca de R$ 45 bilhões por ano. Só para o ICMS, existem no país 27 legislações diferentes. 

No Brasil, para ser considerado um especialista em impostos o cidadão deve conhecer pelo menos 30.384 artigos, 91.764 parágrafos e 293.408 incisos.  Nunca o país produziu tantas leis quanto nas últimas duas décadas, muitas delas destinadas à lata de lixo da História por inconstitucionalidade ou irrelevância. 

O fracasso das regras absurdas não inibe a fúria legiferante do Poder Legislativo. Atualmente tramitam no Senado mais de 700 projetos de lei e, na Câmara Federal, mais de quatro mil proposições para criação de normas.

Foram mais de 73 emendas e mais seis emendas de revisão desde a sua promulgação. Para se ter uma ideia, a Carta Magna dos Estados Unidos, que tem 34 artigos e 225 anos, recebeu até agora apenas 27 emendas. 

Diante de tantas e tão extravagantes normatizações resultantes da compulsão na produção de regras legais, as leis essenciais também acabam negligenciadas. Falta senso de objetividade aos legisladores brasileiros, que desconhecem o ensinamento do historiador romano Cícero, para quem “o mais corrupto dos Estados tem o maior número de leis”. 

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