No dia 13 de março de 1888, a Princesa Isabel se preparava para assinar, em praça pública, a Lei Áurea, instituindo a Abolição da Escravatura. Entre as pessoas que acompanhavam o ato estava o menino negro Lima Barreto que, aniversariando naquela data, olhava uma multidão de escravos aguardando a liberdade.
Anos depois, essas recordações marcaram a sua obra como jornalista e escritor, quando ele se contrapôs à versão da “história oficial”, afirmando que, mais uma vez, os negros foram objetos, e não sujeitos, de sua própria história, quando uma “bondosa” princesa os libertou da escravidão.
Como jornalista e escritor, Lima Barreto mostrou que a verdadeira história – a que não se conta – é bem outra, e inclui séculos de lutas pela liberdade, com milhares de quilombos colocados em pé contra a tirania escravocrata.
Lima Barreto, na sua heroica e ininterrupta luta, deu uma contribuição fundamental à literatura e à imprensa brasileira, apesar do imenso racismo contra ele. Denunciou as injustiças sociais e apontou as dificuldades das primeiras décadas da Primeira República.
Na sua militância na imprensa, dizia sempre que o jornalismo, pelas exigências do imediatismo, jamais poderia está calcado na superficialidade e que nem tudo que é provável pode ser considerado verdadeiro.
A notícia – afirmava ele – é um produto que, da mesma forma que o pão comprado diariamente na padaria, necessita estar com todo frescor que se exige ou que se espera, com o jornalista cartografando o dia a dia, destrinchando-o para o leitor sequioso da realidade.
Com relação à literatura, Lima Barreto falava que sua missão era fazer as almas se comunicarem umas com as outras, contribuindo para o perfeito entendimento entre elas, ligando-as mais fortemente, reforçando, assim, a solidariedade humana, ajudando as pessoas a se entenderem melhor, no único intuito de sua felicidade.
O ponto intermediário entre o escritor e o jornalista drenou e selecionou as marcas da trajetória de Lima Barreto, cuja obra é indispensável a quem se propõe estudar o jornalismo no Brasil na Primeira República.
Com as barreiras do preconceito racial, do seu alcoolismo, da falta de reconhecimento literário, dos parcos rendimentos financeiros e da loucura que marcou a sua luta pela sobrevivência, colocou em seus ombros o peso da humanidade, fardo que os jornalistas e escritores são obrigados também a carregar diante dos incontáveis desafios.
Como jornalista, Lima Barreto procurou sentir o que realmente se desenhava na alma brasileira, estendendo seu olhar perspicaz sobre tudo que afetava a sociedade.
Foi quando o escritor deu vez ao seu talento como jornalista para expressar sua indignação. O jornalista, por sua vez, também cedeu espaço para o escritor colocar seu trabalho em prol daquilo que acreditava ser correto.
Dessa forma, o jornalismo e a literatura se entrelaçaram na vida de Lima Barreto. Ele percebeu que mesmo que o jornalismo e a literatura tivessem alguns pontos de bifurcação – criando afluentes que originam áreas que lhe são próprias – era impossível ignorar suas ligações. Com esse entendimento, seguiu reunindo o que estava disperso no jornalismo e na literatura.
Entre tantas decepções sociais na sua vida, a segunda recusa da Academia Brasileira de Letras ao seu nome, nem chegou, na verdade, a surpreendê-lo. Apesar de lhe concederem uma certa projeção como jornalista e escritor, as instituições culturais o mantinham à distância, ao passo que ele continuava parodiando-as e ridicularizando-as.
As críticas à Academia Brasileira de Letras levaram seus membros a se posicionarem contra o seu ingresso naquela casa de cultura, por entenderem que o seu modo de pensar, estilo de vida e de escrita não correspondiam à imagem de um escritor comme il faut, respeitador das conveniências, digno do prestígio da categoria e merecedor de consagração.
O interessante é que hoje os escritores que consideravam Lima Barreto indigno de ingressar em seu ilustre círculo, caíram em absoluto esquecimento.
Enquanto isso, os livros do antigo subversor e outsider Lima Barreto são bastante procurados em livrarias e bibliotecas, principalmente “Triste Fim de Policarpo Quaresma”, romance que transcende o âmbito estritamente literário, sendo uma obra indispensável para o Brasil compreender a si mesmo.
“Triste Fim de Policarpo Quaresma”, fez Lima Barreto ser bastante discutido e celebrado como redescobridor do país no ano 2000, por ocasião da comemoração dos 500 anos do “descobrimento” do Brasil pelo navegador português Pedro Álvares Cabral.
O romance – publicado em série no folhetim do ‘Jornal do Commercio’ – mal foi levado em consideração pela crítica, recebendo, porém, aprovação unânime, em 1915, ao ser lançado como livro.
O primeiro livro de Lima Barreto – “Memórias do Escrivão Isaías Caminha” – também é uma obra marcante e traça uma radiografia da sociedade brasileira, com um detalhado quadro do jornalismo e de suas reverberações na vida das pessoas. O romance é uma passarela na qual desfilam os mais variados tipos envolvidos com a prática jornalística.
“Memórias do Escrivão Isaías Caminha” mostra a rapidez de pensamento de Lima Barreto como escritor e como jornalista. Aliás, a palavra jornalista é a que define a sua profissão no registro de entrada no Hospício Nacional do Rio de Janeiro, em 1919, quando foi internado para tratamento em decorrência do alcoolismo e dos fantasmas da própria loucura.
Lima Barreto sempre criticou o racismo, bem como as outras ideologias dominantes da época, como o positivismo de Augusto Comte, inspirador da República dos marechais e inscrito até hoje no lema “Ordem e Progresso” da bandeira brasileira.
Se posicionou contra os valores da classe dominante e tinha o entendimento de que literatura devia ser sincera, dando destaque aos problemas humanos e sociais, trazendo ideias, concepções de mundo.
No seu rico repertório de crônicas e artigos jornalísticos, nunca escondeu sua classe, sua cor, sua origem, enfrentando todas as adversidades colocadas em seu caminho.
Foi um jornalista e escritor em guerra com o seu tempo, enxergando melancolicamente longe. Com suas convicções e sentimentos atacava a corrupção, batia no conservadorismo dos jornais e clamava por uma literatura de combate que incomodasse os poderosos.
Não se censurava, agindo sempre pelo coração, por impulso, por emoção, por vocação, sendo sempre direto e implicante, não deixando escapar nenhuma oportunidade de denunciar os desmandos sociais, dando valor à radical veracidade do que ao refinamento de linguagem e composição.
Lima Barreto morreu jovem, com apenas 41 anos, deixando-nos uma obra fundamental, um marco da literatura e do jornalismo.
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